Como Israel sabotou o Brasil na ONU

Bastidores de uma trama no Conselho de Segurança. Tel Aviv, sem assento no organismo, apoiou-se nos EUA para derrubar proposta de cessar-fogo da diplomacia brasileira. Efeito colateral desejado: bloquear relações do Brasil no Oriente Médio

Gilad Erdan, embaixador israelense na ONU, em discurso no Conselho de Segurança, usando no peito a estrela amarela que é símbolo da perseguição dos judeus pelos nazistas Imagem: UN Photo/Evan Schneider
.

Por Ana Clara Costa, na Piauí

Irado com os pedidos de cessar-fogo em Gaza feitos pela Organização das Nações Unidas (ONU), o embaixador israelense na entidade, Gilad Erdan, disse recentemente que a ONU é “irrelevante” e “sem legitimidade”. Apesar das críticas, porém, seu país tem atuado nos bastidores do Conselho de Segurança para reivindicar mudanças nas resoluções votadas, mesmo sem ter uma cadeira permanente no órgão e tampouco integrar o grupo de dez países que ocupam cadeiras rotativas, do qual o Brasil faz parte. O canal que tem usado para essas articulações, via de regra, é a diplomacia americana.

Quando o chanceler brasileiro Mauro Vieira assumiu a presidência temporária do Conselho, em outubro, e propôs uma resolução que pedia o cessar-fogo em Gaza, a diplomacia israelense discordou publicamente do texto. Embora o Brasil tenha conseguido a aprovação de doze membros e a abstenção de dois — até então, o melhor resultado para uma resolução sobre o Oriente Médio em sete anos — o veto americano inviabilizou a proposta. No Conselho de Segurança, o veto de um membro permanente faz com que as discussões retornem à estaca zero. À época, Erdan publicou em suas redes sociais um agradecimento aos Estados Unidos por barrar o que ele considerava uma “resolução muito ruim”. 

Outras propostas de resolução chegaram a ser apresentadas durante a presidência brasileira: duas enviadas pela Rússia e uma pelos Estados Unidos, mas foram derrubadas logo na largada por apresentarem pontos opostos — como o cessar-fogo, que era defendido pelo texto russo e ignorado pelo americano. A do Brasil foi a que chegou mais perto de prosperar.

Como a presidência rotativa brasileira duraria apenas um mês, Vieira decidiu negociar a apresentação de uma nova proposta de resolução sobre o conflito no apagar das luzes de outubro. O embaixador brasileiro na ONU, Sérgio Danese, cuja atuação no Conselho de Segurança vinha sendo elogiada em Brasília, construiu um novo texto em consenso com os outros nove países membros não permanentes. Esse placar já garantiria, logo de cara, maioria mais do que suficiente para a aprovação. Dessa forma, restaria a Danese o desafio de negociar as abstenções dos Estados Unidos, da China e da Rússia, membros permanentes que historicamente apresentam vetos (a França e o Reino Unido, que também integram o grupo dos cinco permanentes, não usam esse expediente desde 1989).

No final de outubro, chegou ao Itamaraty a informação de que a China estava propensa a votar a favor do texto, o que animou a delegação brasileira. Já Moscou sinalizou que poderia se abster. Enquanto isso, a posição dos Estados Unidos ainda era ambígua porque, embora a embaixadora americana na ONU, Linda Thomas-Greenfield, estivesse inclinada a apresentar a abstenção, Washington ainda preferia o veto. Mas o Brasil tinha esperanças de que Thomas-Greenfield conseguisse convencer o Departamento de Estado de sua posição. A ideia de Vieira era apresentar o texto no último dia de sua presidência, em 31 de outubro, para que fosse apreciado na gestão seguinte, já com as aprovações negociadas.

Ocorre que, na véspera da apresentação, a diplomacia americana sugeriu emendas que não haviam sido combinadas com os demais membros e que, portanto, precisariam ser renegociadas. Diante do pouco tempo que restava para a presidência brasileira, esse trâmite burocrático impediria que o país apresentasse o projeto. Entre os pedidos dos Estados Unidos estavam a retirada do cessar-fogo e a exclusão das críticas à ordem de evacuação de Gaza, dada por Israel logo no início do conflito. Nos bastidores, os diplomatas da delegação americana, num rompante incomum de sinceridade, afirmaram que as emendas vinham a pedido da diplomacia israelense. Diante das sugestões dos Estados Unidos, a Rússia também propôs pontos — opostos aos americanos — dificultando ainda mais o cenário. A resolução terminou engavetada.

Segundo diplomatas ouvidos pela piauí, não é incomum que países que não integram o Conselho de Segurança articulem para terem seus interesses contemplados pelos membros permanentes. Chamou a atenção, no entanto, a prontidão dos Estados Unidos em atender Israel, sem ressalvas, em um ambiente tão conflagrado.

O Brasil foi sucedido pela China na presidência rotativa, que não demonstrou interesse em apresentar nenhuma proposta. Quem tomou a dianteira do tema foi Malta — propondo um texto sobre a proteção de crianças vítimas do conflito. Também nesse episódio houve gestão israelense, em especial do próprio embaixador do país no Brasil, Daniel Zonshine— o mesmo que se reuniu com a oposição e com Jair Bolsonaro no Congresso, em 9 de novembro. Zonshine defendeu junto a diplomatas do Conselho de Segurança, entre outras coisas, que a resolução previsse proteção às crianças israelenses. 

Incorporando esses pontos, a resolução proposta por Malta terminou aprovada no dia 15, sem veto dos Estados Unidos, que se absteve. A embaixadora Thomas-Greenfield alegara que não poderia votar favoravelmente a uma resolução que não condenasse o Hamas, como era o caso do texto enviado por Malta. Mas concordou com a abstenção. Segundo diplomatas brasileiros ouvidos pela piauí, há poucas dúvidas de que a abstenção americana tenha tido o aval de Israel, embora publicamente, em suas redes sociais, o embaixador Erdan tenha criticado o texto.

Richard Gowan, diretor para temas de ONU do think thank International Crisis Group, postou em suas redes um questionamento que muitos diplomatas se faziam em Brasília na tarde do dia 15: um mês depois da proposta brasileira ter sido vetada pelos Estados Unidos, um texto muito similar, de autoria de Malta, fora aprovado sem veto. Por quê?

No Itamaraty, há quem acredite que a aprovação, a essa altura, advenha da escalada da pressão da comunidade internacional e da própria ONU para que o Conselho de Segurança saia da inércia. Mas há também aqueles que veem no veto americano ao texto brasileiro traços de retaliação de Israel ao Brasil.

No governo, a comunicação com Israel tem sido feita por Mauro Vieira, por meio da chancelaria — e se dá, em geral, em termos muito protocolares. Embora não arrisque falar publicamente em retaliação, o Itamaraty não conseguiu detectar se Zonshine agiu a mando de Israel quando se reuniu com Jair Bolsonaro no Congresso (o diplomata depois se explicou dizendo não saber que o ex-presidente iria ao evento e alegou ser normal que os corpos diplomáticos dialoguem também com a oposição). Tampouco houve explicações para a demora na liberação dos brasileiros em Gaza — Israel insinuava ser um problema do Egito, embora coubesse ao exército israelense o controle da passagem de Rafah. Celso Amorim, assessor especial do presidente, chegou a ligar para seu homólogo nos Estados Unidos, Jake Sullivan, em busca de apoio. Não se sabe até hoje se a liberação dos brasileiros em Gaza resultou dessa ligação.

O episódio em que o governo israelense atribuiu à Mossad a investigação sobre membros do grupo terrorista Hezbollah no Brasil, num inquérito que antecede os ataques do Hamas, também ficou sem explicação oficial.

O núcleo da diplomacia mais próximo do PT avalia que as situações estão interligadas e têm como pano de fundo as relações do Brasil com o Irã. O país do Oriente Médio foi recentemente admitido nos Brics e o presidente Lula chegou a conversar com o presidente do Irã, Ebrahim Raisi, depois da eclosão do conflito em Gaza. O país é acusado de ser um dos financiadores do Hamas. Na avaliação desse grupo, as atitudes de Israel (sobre o Hezbollah e a ida ao Congresso) tiveram o objetivo de mobilizar o lobby pró-Israel no país, em especial a comunidade evangélica, além de tentar “constranger” o Brasil em suas relações com o Irã, segundo um interlocutor do Palácio do Planalto ouvido pela reportagem. 

O próprio embaixador israelense na ONU tem mencionado em suas intervenções que, diante de todo o horror perpetrado pelo Hamas no início do conflito, não é o líder do grupo, Yahya Ibrahim Al-Sinwar, o inimigo mais perigoso. Segundo suas postagens nas redes sociais, o perigo maior seria o aiatolá Ali Khamenei, principal liderança do Irã, a quem ele se refere como o “Hitler” atual. “O regime iraniano é o regime nazista dos nossos tempos. E o Hamas é um dos seus esquadrões da morte”, escreveu, em 31 de outubro.

Depois da chegada do primeiro grupo de brasileiros vindos de Gaza, em 13 de novembro, o presidente Lula escalou o tom das críticas a Israel. Numa declaração dada na noite em que recebeu os palestinos, disse que “se o Hamas cometeu um ato de terrorismo, o Estado de Israel também está cometendo um ato de terrorismo”. Em seu gabinete, contudo, a estratégia era modular o tom até que todos os brasileiros e familiares de brasileiros que estiverem em Gaza consigam deixar o local. Embora outros países da América Latina, como o Chile e a Colômbia, tenham chamado seus embaixadores de volta diante dos ataques crescentes a alvos civis em Gaza, o Brasil nunca cogitou seguir a mesma linha. Pelo menos não enquanto houvesse brasileiros na região do conflito. 

O que o governo deseja fazer, e não deve demorar, é pedir a troca do embaixador israelense no país. O pedido não deverá ser feito publicamente, mas entre chancelarias, sob a alegação de que a conduta de Zonshine extrapolou os limites da diplomacia, ao agir com intuito aparente de interferir em questões internas do país. 

Celso Amorim tem usado as brechas permitidas pela linguagem diplomática para passar recados. Internamente, diz “não querer crer” que a atitude de Israel em relação ao Brasil seja retaliação. Traduzindo para um vocabulário prático, significa que o governo percebe a movimentação israelense, mas ainda hesita em ser categórico sobre suas intenções. Diante da escalada do tom de Lula, o presidente israelense Isaac Herzog ligou para o petista no dia 16, no intuito de acalmar os ânimos. Na chamada, pediu que o Brasil apoiasse os apelos de Israel pela libertação dos reféns pelo Hamas.

Foi a segunda vez que os dois se falaram desde o início do conflito. Lula respondeu que reforçaria o pedido pela libertação, mas também reivindicou que Israel não demorasse tanto tempo para liberar os brasileiros que integram a segunda lista para sair de Gaza. O saldo, na avaliação do Planalto, é de que o país não deseja o Brasil no coro dos críticos.

Leia Também: