Como exterminar o futuro do ensino público

Reitores e docentes denunciam cunho privatista do “Future-se”, que irá desresponsabilizar governo em manter instituições. População também perde: interesse empresarial afetará pesquisa voltada à sociedade e prejudicará áreas estratégicas

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Por André Antunes, na EPSJV/Fiocruz

Professores, movimento estudantil, associações, sindicatos docentes e movimentos sociais do campo educacional reagiram com apreensão ao lançamento do Future-se, apresentado pelo Ministério da Educação (MEC) em um evento no auditório do Instituto de Pesquisa Anísio Teixeira (Inep) em Brasília no dia 17 de julho. Segundo a Pasta, o programa, que fica em consulta pública até o dia 15 de agosto, tem como objetivo o “fortalecimento da autonomia administrativa, financeira e de gestão” das universidades e institutos federais, por meio de parcerias com entidades de caráter privado, as Organizações Sociais (OSs), e do fomento à captação de recursos próprios, bem como o estímulo ao chamado empreendedorismo no meio acadêmico, como aponta seu próprio nome oficial: Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras.

Lançado poucos meses após manifestações de massa tomarem as ruas de várias capitais do país contra o contingenciamento anunciado pelo MEC nos recursos de custeio das instituições federais de ensino superior da ordem de R$ 5,8 bilhões – e que, segundo vários reitores, ameaça inviabilizar seu funcionamento até o final de 2019 – o programa foi recebido com desconfiança pelas associações que representam os reitores das instituições federais.

Durante coletiva de imprensa realizada após a apresentação do Future-se, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) cobrou do MEC a suspensão do contingenciamento nos recursos discricionários das instituições, que gira em torno de 30% em média, mas que segundo a associação chega a 54% em alguns casos, como na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). A entidade ressaltou ainda que não foi ouvida pelo MEC antes da formulação do programa, e que pretende formar grupos de trabalho para avaliar o Future-se e formular propostas a partir do que foi apresentado pelo ministério.

Já o Conif, o Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, também reiterou que não foi ouvido pelo MEC durante a elaboração do programa, e convocou uma reunião extraordinária nos dias 31 de julho e 1º de agosto para discutir e elaborar um posicionamento institucional sobre o Future-se. Segundo nota emitida em maio pelo conselho, o contingenciamento anunciado pelo MEC no final de abril compromete entre 37% e 42% dos recursos de custeio das instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, ou cerca de R$ 900 bilhões.

Gestão por OSs e fundo de investimentos

O Future-se vai funcionar por meio de contratos de gestão entre a União, universidades e institutos federais e organizações sociais. Segundo a minuta do projeto de lei de criação do programa, as OSs terão como atribuição, além de apoiar a execução de atividades vinculadas aos três eixos do programa – que são: ‘governança, gestão e empreendedorismo’; ‘pesquisa e inovação’; e ‘internacionalização’ – a de apoiar a execução de planos de ensino, pesquisa e extensão, gerir recursos relativos a investimentos em empreendedorismo, pesquisa, desenvolvimento e inovação e também auxiliar na gestão patrimonial dos imóveis das instituições participantes do programa, cuja adesão, segundo o MEC, é facultativa.

Durante a apresentação do programa, o secretário de Educação Superior do Ministério, Arnaldo Lima, evocou em vários momentos como um exemplo a EBSERH, sigla para Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, criada em 2011 para gerir os hospitais universitários. Segundo Lima, hoje as universidades direcionam 55% de suas despesas discricionárias para cinco áreas: vigilância, gestão de mobiliário, limpeza, água e contratos de terceirização. “A gente quer isentar os reitores dessa tarefa, assim como a EBSERH fez genialmente, para que os reitores, estudantes e professores pensem em pesquisa, pensem em dar aula”, ressaltou o secretário.

No caso do Future-se, as organizações sociais contratadas terão também entre suas atribuições gerir os recursos de um Fundo de Autonomia Financeira das Instituições Federais de Educação Superior, vinculado ao Ministério da Educação, e que de acordo com a minuta do projeto de lei do programa será composto pelas receitas decorrentes do aluguel e da concessão de uso de terrenos e imóveis ociosos de propriedade das instituições, da “prestação de serviços” como estudos, pesquisas, consultorias e projetos, de matrículas e mensalidades de pós-graduação lato sensu, de doações feitas às instituições e até mesmo da comercialização de bens e produtos com a marca das instituições e da cessão de seus campi ou edifícios para serem “patrocinados” por empresas privadas, como acontece hoje com os estádios de futebol. Segundo o MEC, o valor estimado de aporte para o fundo é de R$ 102 bilhões, dos quais R$ 50 bi virão na forma da cessão, pelo Ministério da Fazenda ao MEC, de imóveis de propriedade da União que hoje estão ociosos.

O ministro da Educação, Abraham Weintraub, afirmou durante o lançamento do programa que o modelo do Future-se mira no que acontece em universidades do Canadá e dos Estados Unidos, onde esses tipos de fundos são comuns. Weintraub também afirmou que o programa visa facilitar e ampliar uma prática que hoje já existe para captação de recursos pelas universidade, que são as parcerias público-privadas para o desenvolvimento de pesquisas e projetos específicos. “O Future-se coloca o Brasil no mesmo patamar de países desenvolvidos. Nós buscamos as melhores práticas e adaptamos para a realidade brasileira. A maioria das medidas já acontece aqui. Nós vamos potencializá-las”, disse o ministro.

Segundo o MEC, as instituições atualmente já geram cerca de R$ 1 bilhão em receitas próprias, mas o dinheiro acaba não beneficiando-as diretamente porque o que é que arrecadado vai para a Conta Única do Tesouro. O Ministério defende que o Future-se vai desburocratizar o recebimento desse dinheiro.

Reação

Porém, mesmo os gestores que defendem a flexibilização do uso de recursos extraorçamentários pelas universidades federais veem problemas no que está sendo proposto pelo Future-se. O reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Rui Vicente Oppermann, em matéria publicada no site da instituição no dia 19, alertou que delegar a administração do patrimônio e da gestão acadêmica das universidades para organizações sociais seria abrir mão da autonomia acadêmica e de gestão das instituições garantidas pela Constituição Federal de 1988.

Já Flávio Nunes, reitor do Instituto Federal Sul-Riograndense (IFSul), que representou o Conif no lançamento em Brasília, divulgou uma nota no dia 18 afirmando ser contrário ao programa. De acordo com ele, o Future-se fere a autonomia institucional pedagógica e administrativa das instituições. Em entrevista ao Portal EPSJV, Flávio se disse preocupado especialmente com dois trechos da minuta do projeto de lei do Future-se: um que determina que as instituições que aderirem ao programa deverão se comprometer a “adotar diretrizes de governança” estabelecidas pelo MEC; e outro que estabelece, como competência das organizações sociais contratadas, o apoio à execução de planos de ensino, extensão e pesquisa. “A gente percebe que as OSs poderão ir muito além do que está sendo colocado nesse momento inicial. Na minha interpretação, e eu acho que grande número de reitores também tem tido interpretação parecida, é que podemos ter sim ingerência, com a possibilidade da criação de organizações sociais para cuidar do ensino, da extensão, da pesquisa, abrindo essa brecha para a privatização”, afirma Flávio.

Eblin Farage, secretária-geral do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), também alerta para o que chama de “cunho privatista” da proposta. “O governo está se desresponsabilizando de garantir a universidade pública. Ele joga a responsabilidade pelo financiamento da pesquisa sobre os próprios professores, que terão que ir atrás de financiamento privado para produzir conhecimento direcionado para interesses privados, e não para o avanço da ciência e da tecnologia para a melhoria das condições de vida da população como um todo”, afirma.

Para ela, ainda que o governo afirme que a adesão ao programa é voluntária, as universidades e institutos federais não terão alternativa senão aderir ao Future-se, uma vez que a perspectiva é de redução cada vez maior dos recursos públicos para a educação superior por conta do teto de gastos.  “Já estávamos funcionando de maneira muito precária. Aí o governo, ao mesmo tempo em que contingencia mais de 30% de um orçamento de custeio das universidades, que já vinha sofrendo cortes desde 2015, lança esse programa para supostamente aumentar a captação de recursos. Ou seja, não é uma alternativa, é uma imposição. Ou você vai buscar parceria ou a universidade não vai sobreviver”, critica.

Ex-reitor da UFRJ e pesquisador da área de educação, Roberto Leher argumenta que a proposta de ampliar as parcerias entre laboratórios de universidades e empresas como forma de garantir recursos para o custeio das instituições não faz sentido. “Atualmente, o marco legal de ciência e tecnologia já não apresenta nenhum obstáculo intransponível para que grupos de pesquisa estabeleçam parcerias, acordos e outras formas de colaboração com o setor privado. Mas o financiamento à pesquisa por meio de contrato com empresas não resulta em recursos para o que nós chamamos de custeio da universidade; os recursos são dirigidos aos laboratórios onde as pesquisas serão realizadas. Ao contrário, normalmente isso envolve um gasto adicional do custeio geral da universidade”, afirma Leher. E cita acordos para o desenvolvimento tecnológico firmados entre laboratórios da UFRJ e a Petrobras como exemplo, que segundo ele acarretam contas de energia elétrica de até R$ 1,2 milhão por ano ao laboratório.

“Isso é o orçamento de custeio da universidade quem paga. Então a pesquisa, a interação com o setor produtivo, via de regra, aumenta o gasto de custeio, e não reduz. É claro que muitas vezes esses contratos permitem desenvolvimentos tecnológicos importantes para a universidade e o país, mas em nenhuma hipótese nós podemos enxergar nesses contratos do setor produtivo a solução para o custeio. Ao contrário: mais contrato de pesquisa, mais gasto de custeio”, ressalta o ex-reitor da UFRJ.

Ele lembra que hoje os recursos extraorçamentários captados pelas universidades federais acabam na Conta Única do Tesouro, sendo destinados, por exemplo, para o pagamento de juros e do serviço da dívida pública, que em 2019 consumiu em torno de 44% do orçamento da União, recursos sobre os quais não incidem os efeitos da Emenda Constitucional 95, do teto de gastos. “Isso obviamente é um desestímulo para que a universidade busque captar. Se houvesse real disposição de melhorar a gestão financeira das universidades poderia se falar em ampliar a liberdade que elas têm de utilizar seus recursos próprios. Há muitas medidas práticas que poderiam ser tomadas para melhorar a gestão financeira, mas não é isso que está sendo falado”, avalia.

Andrea Caldas, pesquisadora de Políticas Educacionais da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e integrante do grupo de pesquisa Relações Público-Privadas na Educação da UFRGS, expressa preocupação com outra dimensão do Future-se bastante enfatizada durante a apresentação do MEC no dia 17, que é a de condicionar o financiamento de pesquisas aos seus potenciais resultados econômicos. “Essa ideia de que o mercado vai definir o quê é prioritário na universidade implica que de modo geral você vai ter uma priorização do que tem retorno imediato. Então aquelas pesquisas de base, que são importantes inclusive para as pesquisas mais instrumentais, correm o risco de não ter financiamento. E no mundo todo, de modo geral, as pesquisas de base são financiadas pelo Estado, porque elas precisam de um tempo maior de maturação, de desenvolvimento”, diz Andrea.

Ela afirma ser “uma ilusão” apostar que um programa como esse vai significar mais recursos vindos da iniciativa privada para o desenvolvimento de pesquisas dentro da universidade no Brasil, onde historicamente são os recursos públicos que financiam a maior parte das pesquisas. “Esse programa tem muito mais a ver com a interferência na gestão do que com o alardeado objetivo de trazer novos recursos para a universidade”, aponta Andrea, que teme, no entanto, que a proposta seja “sedutora” para alguns segmentos da universidade. “Eu acho que há um grande risco de que algumas pessoas acreditem que vão poder trazer mais recursos para suas pesquisas. Inclusive o governo fala explicitamente que professores, mesmo com dedicação exclusiva, vão poder vender serviços, consultorias, explorar comercialmente eventuais patentes. Estão tentando investir nessa sedução”, avisa.

Financeirização da educação

Allan Kenji, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que estuda a atuação dos grupos empresariais na educação e sua vinculação com o capital financeiro, também vê perigos no que ele chama de “submissão do ensino superior e da pesquisa aos interesses privados”. Kenji cita o exemplo da tecnologia de internet 5G, que hoje se encontra no centro de uma guerra comercial entre China e Estados Unidos. “A automatização de processos industriais, engenharia de dados de grande volume, de big data, a telemedicina, robótica, uma série de outras formas de automação dependem da velocidade e da qualidade de sinal que o 5G vai significar. Para chegar à tecnologia do 5G foi necessário um conjunto de pesquisas desenvolvidas na China em áreas como transmissão de ondas e comportamento de partículas que não tinham resultado econômico imediato”, afirma. E complementa: “Então além das pesquisas na área de humanas e sociais, em que é difícil de mensurar o retorno econômico, uma proposta como a do Future-se ameaça também o desenvolvimento científico em áreas estratégicas, como o desenvolvimento de satélites, telecomunicações, medicina, entre outras, que dependem de muita pesquisa de base”.

Ele avalia que a aposta nos fundos de investimento revela que, para o governo, o retorno econômico das pesquisas é central. Mas para Kenji a proposta dos fundos como forma de financiamento das universidades é perigosa também por outros motivos.  Isso porque há diferenças importantes entre um fundo patrimonial – que foi o termo utilizado pelo MEC durante a apresentação do Future-se e é o modelo usado pelas universidades dos Estados Unidos citadas como exemplos, como Harvard –  e um fundo de investimento, que é o que está no texto da minuta de projeto de lei do programa.

Segundo ele, o fundo patrimonial atua sobre bens imobiliários e é uma forma de tornar líquido um patrimônio. Um exemplo de como isso se daria é a concessão de um terreno de propriedade da universidade ou da União para uso, por determinado tempo, por uma empresa privada, que em troca paga uma determinada quantia ao fundo. “O fundo continua sendo o proprietário desse terreno, recebendo-o de volta no futuro, mas no presente ele tem dinheiro nas mãos para fazer aplicações. Ele pega uma parte desse recurso e mantém no fundo para aplicação e a outra parte ele reverte em financiamento das instituições”. É o que acontece em Harvard, por exemplo. Mas de acordo com Allan, nem a minuta do PL e nem a apresentação do Future-se esclareceram como isso será feito no Brasil. “O secretário [Arnaldo Lima] em sua apresentação não disse que uma parte dos recursos do fundo iriam para as instituições de ensino superior; ele disse que eles seriam destinados para aplicações e o que rendesse de juros e dividendos destas aplicações é que iriam para as IES”, pontua.

Já o fundo de investimento, segundo o pesquisador, é mais amplo do que o patrimonial, sem se limitar a um patrimônio físico. “Ele pode trabalhar, por exemplo, com patrimônio monetário, cotas de capitais, e aplicar no mercado financeiro, como acontece hoje de uma maneira limitada com os fundos de pensão, que pegam o dinheiro de aposentadorias e investem no mercado financeiro. Então ele é mais amplo que o fundo patrimonial”, explica Kenji.

O problema, diz ele, é que por conta disso os fundos de investimento têm muito mais chance de apresentarem prejuízo do que um fundo patrimonial. Foi o que aconteceu com o fundo de pensão Postalis, vinculado aos servidores dos Correios. “O que este fundo faz hoje é recapitalizar em cima dos trabalhadores dos Correios, que foram reonerados nas folhas de pagamento para recompô-lo. No caso do Future-se, são as organizações sociais que vão fazer a gestão dos riscos desses fundos de investimento, e no caso de um prejuízo, elas podem, por exemplo, decidir liquidar patrimônio físico da universidade para se recapitalizar”, alerta, lembrando que parte do patrimônio de várias universidades federais como a UFRJ e a UFSC , por exemplo, é muito valorizada pelo mercado imobiliário.

Ele argumenta que a experiência das universidades americanas deveria ser tomada como advertência, e não como exemplo. “Por lá, o que acontece tradicionalmente é, uma vez composto o fundo patrimonial, a universidade perde completamente a autonomia para gerir ensino e a pesquisa. Como tem metas e o financiamento passa a ser condicionado pela avaliação do cumprimento dessas metas de gestão, cada vez mais o grupo gestor do fundo é quem controla a disposição dos recursos. A reitoria vai perdendo importância na tomada de decisões estratégicas”, alerta, complementando que isso aconteceu inclusive com as universidades de elite americanas, como Harvard. “Chegou ao ponto dela, por exemplo, ceder seu nome para assegurar a qualidade de cursos oferecidos por terceiros, como uma marca, que inclusive não pertence mais à universidade, e é licenciada em nome do fundo patrimonial”, revela.

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