Os massacres em presídios e a terceirização da morte

Quatro dias antes de Altamira, Pastoral Carcerária lembrava tragédias de Manaus e advertia: Estado, que executou presos em episódios como Carandiru, agora transfere tarefa para facções criminosas — em presídios privatizados…

Cada vela uma vida perdida: missa em 3 de junho em memória dos 55 mortos em massacre no sistema prisional em Manaus | Foto: Luisa Cytrynowicz/Pastoral Carcerária Nacional
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Por Pastoral Carcerária, no Ponte Jornalismo

“Estão na prisão, pagando porque erraram. Estão pagando o que a quem? Batendo neles, ressuscitamos os mortos? Deixando-os de cueca, amontoados em sessenta numa cela que cabe seis, devolvemos alguma satisfação às mulheres que sofreram violência? Dando comida estragada, purificamos a juventude que usou a droga que eles venderam? Beliscado-os com alicate e passando spray de pimenta na cara deles, indenizamos de alguma forma as pessoas assaltadas? Massacrando os negros pobres que conseguiremos vencer o crime organizado? Eles têm que pagar. Se eles pagam, quem está recebendo?” (Pe João Poli – coordenador estadual da Pastoral Carcerária do Amazonas. Reflexão do dia 12/06/2019)

Faz dois meses que ao menos 55 pessoas foram assassinadas dentro de quatro unidades prisionais de Manaus, no Amazonas. Essa realidade não é nova. Em janeiro de 2017, foram ao menos 56 mortes em uma das unidades em que, neste ano, a tragédia se repetiu. Em um período de menos de 3 anos, a marca oficial dos 111 mortos nos presídios de Manaus tem ares de história revisitada. Mas ainda que seja impossível não pensar nos 111 presos, quase todos pretos, do massacre do Carandiru, os mais de 25 anos que nos separam deste episódio trazem elementos mais complexos à tragédia que se desenrola nos últimos anos.

O acirramento da tensão entre grupos rivais, em espaços de luta pela sobrevivência – nos quais as taxas de mortalidade são assustadoras – é instrumentalizado pelo Estado em todos os cantos do país, funcionando enquanto ferramenta de gestão do ambiente explosivo que é o prisional. Mas o mecanismo de garantia de uma certa ordem é, também, aquele que pode ser acionado para deixar morrer uma parcela: basta transferir de cela, misturar pavilhões ou, então, deixar de entrar na hora marcada.

Se em 1992 a Polícia Militar entrou na unidade prisional paulista e assassinou a tiros mais de uma centena de pessoas, o processo de encarceramento em massa que se armou no Brasil nas últimas décadas formou um aparato de destruição de tamanha brutalidade que o Estado sequer suja mais os dedos de sangue.

Em relação ao massacre que agora completa dois meses, a inteligência da Secretaria de Administração Penitenciária do Amazonas já havia advertido o poder público sobre a iminência das mortes. E nada foi feito para evitá-las. Além disso, durante o episódio, que se desenrolou ao longo de dois dias, familiares relatam ter recebido como resposta “deixa eles se matarem” ao pedirem a entrada da polícia para evitar que a contagem de corpos sem vida aumentasse. 

A transferência do ceifamento de vidas também se revela no fato de que, tanto em 2017 quanto em 2019, os massacres em Manaus ocorreram em unidades cuja administração era realizada pela empresa Umanizzare.
Em outras palavras, no Amazonas o Estado comercializa, a altos valores, a restrição de liberdade de milhares de pessoas, resultando na prestação de um serviço terceirizado e lucrativo que sequer garante a vida dos seus custodiados. A empresa afirmou em nota estar trabalhando em conjunto com a Secretaria de Administração Penitenciária do Amazonas para a “retomada da normalidade dentro das unidades”.

No entanto, conforme relatório de visita divulgado pelo Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura em 2018, a dita normalidade se caracteriza por práticas como racionamento de água, insuficiência de colchões, ausência de medicação, má qualidade dos kits de higiene e irregularidade na entrega, restrições às visitas íntimas e de assistência religiosa.

Se o Estado e as empresas interessadas seguem firmes na política de aprisionamento, os familiares de pessoas custodiadas nestas unidades, a equipe da Pastoral Carcerária da Arquidiocese de Manaus e outros parceiros dão o recado da busca incansável por notícias de seus entes encarcerados, da luta pela retomada das visitas familiares e da assistência religiosa, pela garantia de direitos básicos dos presos, pela atuação das instituições do sistema de justiça.

Desde o massacre, familiares organizaram manifestações no ramal – entrada do complexo prisional manauara – e no Fórum, realizaram diversas reuniões e idas coletivas ao Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Amazonas para denunciar a barbárie. Também em São Paulo uma manifestação na sede da Umanizzare marcou um mês do massacre. 

Nas reuniões em Manaus, houve a certeza de que sem uma mobilização e pressão fortes, a situação não mostrava possibilidades de melhora. Nesse sentido se construiu a ideia de realizar uma denúncia internacional, o que resultou na apresentação de um pedido de audiência temática à Comissão Interamericana de Direitos Humanos no último dia 11.

Como apontado no pedido, “a falta de comprometimento do Estado brasileiro na reversão do processo de superencarceramento e na tomada de medidas para a não repetição de massacres, evidenciada na cíclica produção de mortes em Manaus, estabelece a necessidade e a urgência de apresentar o tema a esta ilustre Comissão, de modo a constranger o Estado e impedir que aconteça um novo massacre, por meio de uma reversão da política de encarceramento em massa vigente no Brasil.”

Mais que uma audiência de poucos minutos, o que se objetiva é demarcar que as vidas tiradas nas masmorras brasileiras têm valor. E é para frear a expansão dessa máquina que têm devastado comunidades inteiras que familiares, movimentos e organizações têm se articulado. Como categoricamente afirmado pela familiar de um preso de Manaus presente no Seminário da Amparar (Associação de Amigos e Familiares de Presos), em São Paulo: “Lá a gente cansou de aceitar, de acatar”.

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