Uma noite para a liberdade

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Relato do debate que revelou, em São Paulo, como o Brasil pode avançar, se sair da letargia atual e abraçar os princípios da Cultura e Comunicação livres

Por Via Tropicaline.

Entre hashtags e streamings, o debate de quarta-feira (23/4) à noite no auditório Ibirapuera, realizado pela Casa da Cultura Digital,  Overmundo e Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV, canalizava experiências e a expectativas de um momento histórico. Abrindo as provocações, o video Remixofagia dava uma pista do clima tropical que seguiria a discussão.

A primeira apresentação foi do professor de direito de Stanford e criador do Creative Commons, Lawrence Lessig, falando sobre direito autoral e democracia. Lessig defende que uma democracia baseada na abertura e compartilhamento pode combater a infraestrutura da corrupção, explicando que “estamos em meio a uma revolução”, e que “as tecnologias que poderiam ser de liberação se tornam tecnologias de repressão”. Entusiasta da cultura digital brasileira, faz um apelo : “Vocês no Brasil precisam pegar e nos mostrar o que pode ser feito dessa revolução. Vamos deixar o Brasil liderar essa luta novamente!”. Resta saber se a caríssima ministra da cultura Ana de Hollanda estava acompanhando o debate através da internet.

O sociólogo e ciberativista Sergio Amadeu começa sua fala animado e provoca : “Os tempos mudaram: saiu Lula, entrou Dilma, saiu Gil, entrou Ana de Hollanda, saiu Creative Commons, entrou o Ecad”. Sobre o tema do evento, “Qual o futuro da musica no digital?“, responde : “Será o futuro da criatividade” e explica que “a internet mudou o ecossistema de comunicação: nas redes digitais o difícil não é falar, é ser ouvido“. Ele ainda critica o atual sistema de copyright no mundo, e em especial a legislação brasileira de direito autoral, segundo ele, “uma lei que protege uma obra até 70 anos apos a morte do autor,sob o argumento de incentivar a criação do autor…que já morreu“. Amadeu explica a tendência mundial de “substituir a cultura da liberdade pela cultura da permissão“, criando restrições normativas como o copyright e leis contra cibercrimes, que ao invés de proteger o autor ou o usuário, acaba por ferir liberdades digitais e bloquear a inovação. E termina sua aplaudida intervenção convidando para o Forum de Defesa da Internet dias 13 e 14 de outubro em SP.

A crise da matrix meta global marca o inicio da próxima apresentação, no melhor estilo Ivana Bentes, diretora da Escola de Comunicação da UFRJ. Sobre a atual crise no MinC, explica que “estamos disputando hoje modelos de cultura, de capitalismo. Não estamos disputando só o Ministério da Cultura, mas o governo Dilma (“que nós elegemos”, lembra), que pode guinar para um certo conservadorismo“. Segundo ela, o precariado cognitivo tem deixado de ser exceção no mundo do trabalho atual, e fragmentação e colaboração são características intrínsecas dessa nova cultura digital. Neste sentido, a continuidade de programas como os Pontos de Cultura devem ser encarados como tecnologia social a ser aplicada na política pública, para além de um simples programa social do governo.

Seguindo as provocações iniciais, é aberto o debate. Defendendo que “pirataria também é desobediência civil, o músico e ex-Ministro da Cultura Gilberto Gil, começa ironizando o atual estágio do capitalismo no século XXI : “A porca de muito gorda já não anda, a faca de muito usada já não corta ».

A jovem deputada Manuela Avila, uma das principais defensoras da cultura digital no plano institucional, coloca que estas transformações estão para além da cultura e acontecem também na política, lembrando que o Estado anda muito mais devagar que a sociedade. Sobre as defasagens e imprecisoes da proposta de lei de Cibercrimes, também conhecida como « AI5Digital », explica que essa é a historia do Estado, criminalizar o que não conhece”.

A deputada pergunta “Quando iríamos pensar dez anos atrás que a cultura seria pauta de uma enorme crise no governo?”, e Cláudio Prado responde : “Agradeçamos então ao Bush por ter acelerado a queda do império e à Ana de Hollanda por ter gerado essa discussão.

Nesta discussão sobre uma nova cultura politica na era digital, o professor da FGV e diretor do Creative Commons Brasil, Ronaldo Lemos, defende que “os princípios da internet como descentralização, transparência, inovação e acesso sem barreiras tem o potencial de influenciar as as instituições: a politica, os estados, a criação de leis“.

Sergio Amadeu comenta que uma vez, ao ser chamado de radical durante um debate, respondeu “Eu não sou um radical, pelo contrario, sou um conservador: quero conservar a internet livre, do jeito que foi construída“, e Gil retruca : Eles também, mas querem conservar a internet no que os interesse, reduzi-la a seu modelo, anterior“. Lemos complementa : Querem transformar a internet em uma grande TV a cabo”.

O debate chega na questão do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL), e Gil lembra de quando conheceram a experiência de Piraí, no interior do Rio de Janeiro, que investira em uma potencial infraestrutura de banda larga na cidade. O PNBL vem sido discutido pelo governo federal desde 2009 e atualmente encontra-se em retrocesso, em função das concessões feitas às empresas de telecomunicação e internet nas ultimas negociações. Ele comenta o limite de download de 300 Mb no pacote de internet que sera oferecido pela Telebras (empresa publica que sera reativada para equilibrar o mercado de conexão à internet), explicando que trata-se de uma «escassez induzida». Assim, busca-se desincentivar que consumidores que possam pagar pelos pacotes oferecidos pelos fornecedores privados contrate os serviços da empresa publica, que se limitaria assim a cobrir a parte do mercado que possui acesso precário à internet hoje.

Amadeu defende que “é preciso cabear o Brasil com fibra ótica, estamos falando de um plano para o futuro. Em diversos países banda larga é uma questão de infra estrutura. No Brasil, não encontra-se no PAC (Plano de Aceleração do Crescimento), e sim no Ministério das Comunicações“. “E com dinheiro do FUST (Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações)” , complementa Ronaldo Lemos.  Os recursos do Fundo vêm basicamente da taxa paga para obtenção de concessões de serviços de telecomunicação e radiofrequência e do imposto pago pela população sobre a oferta de serviços de telecomunicações. Tem gerado polêmica a decisão de usar recursos do Fundo em alguns pontos do PNBL, por usar verba pública para suprir as metas que deveriam ser de responsabilidade das empresas privadas da oferta de serviço.

Ronaldo Lemos chama atenção para a posição estratégica do Brasil no cenário internacional e defende que o pais “precisa ter um laboratório no estilo do (Massachussets Institut of Technology), voltado para a inovação tecnológica para paises em desenvolvimento – proposta igualmente defendida pelo pesquisador e ciberativista Felipe Fonseca no livro « Laboratórios do pós digital ».

Ivana Bentes provoca : “A oposição já entendeu que os Pontos e a Cultura Digital são essenciais para o desenvolvimento do pais, qual o problema com a nossa esquerda?“. Gil comenta a crise do atual sistema de propriedade intelectual : “Já são 400 milhões de licenças Creative Commons no mundo inteiro, se juntarmos tudo o que é arrecadado pelos Ecads da vida, nao chegamos a 1/10 disso“, e conclui sua participação tropicalista no debate : “é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte“.

Encerrava-se assim um encontro memorável (ou pelo menos a transmissão via streaming), que teve ao mesmo tempo papel de fazer um balanço da cultura digital hoje no Brasil e no mundo, ser um espaço de celebração da revolução digital em curso, e um impulsionador para a continuidade das movimentações daqui em diante. O gravação das discussões ficara disponível durante um mês,neste link (até o momento desta publicação o vídeo ainda não estava no ar).

Apesar dos netbooks da Apple na mesa, da trilha sonora autoral na abertura e fechamento da transmissão e da tecnologia de streaming em software proprietário o dia 24 de agosto de 2011 e o #DebateGilLessig fizeram historia na cultura digital brasileira.

(E quem sabe no próximo não vemos uma discussão ainda mais polêmica – e revolucionária – com Hidelbrando Pontes, Greg Frazier e Caetano Veloso na mesa, transmitida direto de um Ponto de Cultura equipado com software livre e com trilha sonora do catálogo do Fora do Eixo e do iTeia?)

(Obrigada Thiago Skarnio pelas fotos e links)

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