BTG e os investidores que apostam na grilagem
No Matopiba, o caso de terras ancestrais que foram roubadas por ruralistas e vendidas para uma das empresas do banco. Grupo lucra com o obscuro mercado de “imóveis estressados”, muitas vezes em terras públicas. Justiça é morosa para enquadrar trambiques
Publicado 03/06/2025 às 18:35

Por Julia Dolce, especial para O Joio e o Trigo
Em entrevista para um podcast de conversas com gestores, Ricardo Cardoso, CEO do grupo Enforce, empresa do Banco BTG Pactual, explica que a origem do grupo está no que chama de “imóveis problemáticos”.
Já em um vídeo do programa de trainee da Enforce, a head de gestão de pessoas da empresa, Marcelle Xanthopoylos, define as atividades exercidas como “um negócio bastante específico” e “não tão conhecido no mercado”. O negócio em questão é o mercado de gestão de ativos estressados, ou, como apresentou a mediadora do trainee, “portfólios imobiliários desafiadores”.
O conceito de um imóvel “estressado” costuma fazer referência às propriedades inadimplentes ou com outros problemas financeiros. A Enforce tem até um site para revenda de “imóveis com descontos”. Entretanto, o termo também pode servir de eufemismo para propriedades envolvidas em conflitos fundiários com povos e comunidades tradicionais.
É o caso de três fazendas localizadas dentro da comunidade de Fundo e Fecho de Pasto de Capão do Modesto, em Correntina (BA), e que foram compradas em 2022 por uma das várias empresas do grupo Enforce, a ENF SPE VII.
As fazendas em questão, Tamarã II, III e IV, assim como outros imóveis vizinhos, tiveram suas matrículas bloqueadas pelo juiz de Correntina Matheus Agenor Alves Santos, em maio de 2023.
Os proprietários dos imóveis são réus em um processo que judicializou uma ação discriminatória aberta pela Procuradoria Geral do Estado da Bahia, em abril de 2021. No caso das fazendas Tamarã, a proprietária que vendeu os imóveis para a ENF SPE VII é listada como ré no processo.
O processo tem como objetivo destinar como terra pública ocupada por povo tradicional cerca de 11 mil hectares da Gleba Capão do Modesto, que “ingressaram indevidamente no patrimônio dos particulares”.
A ação objetiva também pôr fim a um “grave conflito fundiário existente na área ora objeto”.

As comunidades tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto no oeste da Bahia têm práticas centenárias de criação livre de gado, caça e coleta de frutas do Cerrado, em territórios coletivos dos chamados “Gerais”.
Nas últimas décadas, e mais intensamente a partir do início dos anos 2000, entretanto, esses Gerais vêm sendo cercados e desmatados por fazendas que impactam diretamente os modos de vida tradicionais das comunidades.
O fecheiro Antônio Santos Silva é a quinta geração da sua família, uma das 50 que formam a Capão do Modesto, a viver na comunidade. “O tronco velho desse Capão do Modesto, a primeira pessoa que chegou aqui, foi o bisavô da minha mãe”, conta.
Para Antônio, as empresas que compram fazendas na região ignoram a comunidade centenária. “Até onde eu sei, o território é nosso. Nunca vendemos um palmo de terra para ninguém. Quando vierem para cá, eles têm que saber que tem mais de 300 anos que os moradores estão aqui dentro”, protesta.
Segundo o fecheiro, a chegada das fazendas há pouco mais de uma década tirou a paz da comunidade, impedindo-a de acessar seus territórios, expulsando e matando seu gado e contratando empresas de segurança que ameaçam os fecheiros.
Imóveis grilados
Antônio denuncia que os imóveis sobrepostos ao território do fecho são fruto de uma grilagem de terras. “Eles compram sabendo que é papel grilado”, afirma.
A origem ilegal das três fazendas Tamarã, de propriedade da ENF SPE VII, já foi investigada em uma pesquisa publicada em parceria entre a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR), a Campanha em Defesa do Cerrado e o Instituto Federal Baiano.
Casal José Pereira de Souza e Zulmira Pereira de Souza têm imóvel com valor de “duzentos e dezesseis reis”, localizado o “Sítio do Capão”, registrado no cartório de Santa Maria da Vitória (BA), sob a matrícula nº 6.423. Imóvel seria herança de um espólio transmitido em 1960. Registro omite uma série de dados obrigatórios.

Juiz de Correntina bloqueia matrículas sobre Fecho do Capão do Modesto, inclusive fazendas Tamarã.
O estudo demonstra que as matrículas dessas fazendas têm importantes vícios de origem, tendo sido desmembradas de uma matrícula original, de número 5336, que foi aberta no ano de 2006 no cartório de Correntina, a partir da transferência de outra matrícula encerrada em um município vizinho, Santa Maria da Vitória (BA).
O estudo analisou as certidões de inteiro teor dos imóveis sobrepostos ao Capão do Modesto, nas quais constam todos os dados das matrículas desses imóveis, e constatou que a matrícula original em Santa Maria da Vitória, de número 6.423, é um registro ilegal, sem delimitação válida e com omissão de dados obrigatórios.
O registro em questão indica que, em 1960, uma propriedade avaliada em“duzentos e dezesseis réis” teria sido transmitida ao casal José Pereira de Sousa e Zulmira Pereira de Sousa por meio de uma herança. Em 1993, o casal teria requerido ao então juiz de Santa Maria da Vitória, por meio de uma petição, a averbação de 16.400 hectares na região.
“Em um passe de mágica, surge então um latifúndio de milhares de hectares, com 273 módulos fiscais, que sequer estava registrado no cartório do próprio município”, revela o estudo.
A partir de 2007, a matrícula 5336 foi desmembrada em muitas outras, entre elas as fazendas Tamarã II, III e IV, que juntas, reúnem cerca de 2.500 hectares. Elas passaram a ser registradas em nome da Agropecuária Sementes Talismã Ltda.
Em 2018, a agropecuária entrou com um pedido de recuperação judicial devido a um endividamento de R$250 milhões. Em seguida, sua credora, a Eco Securitizadora de Direitos Creditórios do Agronegócio S.A, incorporou as fazendas. A empresa é uma das rés listada na ação discriminatória da PGE, sendo apontada como proprietária das fazendas Tamarã.
Em 7 de agosto de 2023, entretanto, um relatório enviado à PGE pelo titular do cartório de Correntina atribuiu a propriedade das fazendas à empresa ENF SPE VII. De acordo com a certidão de cadeia dominial de um dos imóveis, eles foram comprados pela empresa do banco BTG Pactual em junho de 2022. A cadeia dominial é o histórico cronológico de proprietários de determinado imóvel.

Embora a ação discriminatória só tenha sido judicializada pela PGE alguns meses depois, em 13 de dezembro de 2022, ela já existia em caráter administrativo desde 2021.
Segundo Maurício Correia, advogado e pesquisador da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, é improvável que a Enforce não tivesse ciência sobre o conflito fundiário e a vigência da ação administrativa.
“É improvável que a empresa não tenha realizado uma análise de risco ao adquirir esses títulos, no momento da aquisição já havia uma ação judicial do estado da Bahia requerendo a anulação das matrículas. Isso revela como a especulação estimula a violação de direitos das comunidades”, afirma o advogado.
Durante a fase administrativa da ação discriminatória, a Procuradoria instaura uma comissão especial com a função de identificar posses e títulos existentes em determinada área. Nessa etapa, é feita a análise da regularidade desses títulos para entender se a área em questão é pública e se existe ocupação de povo ou comunidade tradicional.

Morosidade
Em 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que, se a ação discriminatória constatar que há imóveis privados sobrepostos às terras públicas, o próprio poder Executivo pode decretar o cancelamento das matrículas em questão. No entanto, é mais comum que os órgãos optem por pedir esse cancelamento por via judicial, como ocorreu na ação da comunidade Capão do Modesto.
Na justiça, entretanto, o processo é moroso, podendo durar décadas, como explica Correia.“O conflito se agrava e empurram para o Judiciário, para tirar o conflito de cima do Executivo. Mas, às vezes, mandar para o Judiciário significa que haverá uma questão se arrastando ali por 20 anos ou mais. E nesse caso há provas suficientes [da grilagem], tanto é que o juiz determinou o bloqueio dessas matrículas”, explica.
Enquanto a ação discriminatória tramita, desde maio de 2023 as matrículas das fazendas sobrepostas ao Capão do Modesto estão bloqueadas. Com isso, elas não podem ser vendidas, pedir empréstimos ou hipotecas.
Na ocasião da determinação, o juiz Matheus Agenor Alves ordenou que todas as proprietárias das fazendas fossem intimadas e que o cartório de Correntina organizasse todos os processos até a réplica. “O cartório não cumpriu nada do que ele pediu. Zero”, revela Correia. Segundo o advogado, até agora, apenas uma fazenda se manifestou nos autos.
A reportagem tentou contato com o cartório, questionando o cumprimento das decisões do juiz Matheus Agenor Alves, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem.
Consultada, a PGE-BA respondeu que a ação discriminatória está em fase de instrução e que o Estado ainda realizará a análise das informações apresentadas, inclusive aquelas remetidas pelo cartório de Correntina.
Ativos estressados
A opção da Enforce pela compra das fazendas Tamarã semanas antes do início do litígio da ação administrativa sobre o fecho do Capão do Modesto pode parecer uma decisão estranha. A atividade principal da empresa, entretanto, dá pistas para explicar a escolha.
Segundo Carla Morsch, pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Mudanças Sociais, Agronegócio e Políticas Públicas (Gemap) do CPDA, o Programa de Pós Graduação de Ciências Sociais, em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), a ideia de imóveis rurais estressados pode estar relacionada a casos de grilagem de terras. “Como uma estratégia financeira de ganho de capital de grande potencial”, avalia.
“Terras agrícolas com conflitos fundiários, sem documentação clara ou em disputa judicial podem entrar nessa categoria de ativos estressados. Muitas vezes são áreas também com ocupação tradicional e sem regularização formal. Elas podem aparecer aí talvez como uma fatia potencial dessa estratégia”, explica Morsch, que pesquisa a financeirização da terra na região do Matopiba — acrônimo criado para nomear a última fronteira agrícola brasileira, que envolve os estados do Maranhão Tocantins, Piauí e o oeste da Bahia, onde se localiza o fecho do Capão do Modesto.
Amplamente utilizado nos Estados Unidos para descrever imóveis que teriam um alto potencial de reconversão de valor após a crise imobiliária de 2008, o termo “ativos estressados” vem se popularizando mais recentemente no Brasil.
“Isso mostra que o mercado está mais interessado nesse tipo de ativo. E o mercado de terras agrícolas, obviamente, estando inserido nesse caos fundiário que é a realidade brasileira, tende a se beneficiar enormemente de possíveis ganhos extraordinários advindo desse tipo de negociação”, avalia a pesquisadora.
Segundo Morsch, o processo de lucrar com imóveis que têm problemas judiciais envolve o “desestresse” do ativo. “É quase como uma limpeza do papel, da terra, como uma etapa da reestruturação do ativo para que ele retorne ao mercado com uma grande valorização. Seja através da grilagem, onde se forjam documentos, desocupam à força com muitas camadas de violência, ou mesmo por meio de decisões judiciais duvidosas”, explica.
Regularização de imóveis “estressados”
A região oeste da Bahia foi palco de exemplos bem sucedidos do uso do sistema judiciário para regularizar imóveis “estressados”. A própria ação discriminatória de Capão do Modesto é resposta a uma operação que investigou o pagamento de propina para magistrados do Tribunal de Justiça da Bahia em troca de sentenças favoráveis à grilagem de mais de 360 mil hectares na região. A operação, decretada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), ganhou o nome de Faroeste.
Morsch avalia que a compra de imóveis estressados pode ser entendida como uma aposta de que o conflito, ou a ação judicial, vai se desenrolar de forma positiva para os imóveis grilados. “Agora, essas empresas normalmente não apostam alto sem algum cálculo prévio do potencial de ganhar essa ‘aposta’”, aponta.
O caso das fazendas Tamarã, bem como de outras fazendas sobrepostas às comunidades de Fundo e Fecho de Pasto no Oeste da Bahia, mostram que a financeirização da terra tem complexificado questões estruturais do campo brasileiro.
“Há uma despersonificação do conflito fundiário, que antes era localizado na figura do latifundiário X, que você sabia quem era, conhecia a família. As pessoas atingidas muitas vezes nem sabem que [as empresas] existem, que são os que estão por trás desses processos”, pondera Morsch.
Presidente da Associação de Moradores de Capão do Modesto, o fecheiro Antônio afirma nunca ter ouvido falar da empresa sócia do BTG Pactual. “Tem horas que chegam umas empresas que a gente nem sabe de onde estão vindo, nem o nome. Depois colocam as placas na calada da noite e já marcam território”, lamenta.
Milícia armada
Se a ENF SPE VII e seus administradores — os empresários André Duarte Montuori, Alexandre Camara e Silva e Roger Halmenschlager da Silva, todos partners do BTG Pactual — são desconhecidos pelos moradores de Capão do Modesto, ao longo da última década, outros nomes se apresentaram como representantes da área grilada pelas fazendas Tamarã.
A Agropecuária Talismã, dona da fazenda que deu origem à atual matrícula da Tamarã, é denunciada por uso de serviço de milícias privadas, sob fachada de empresas de segurança, para expulsar famílias de fecheiros que utilizavam as áreas dos imóveis da agropecuária para o pastoreio de animais.
Os moradores dos fechos denunciam que, por anos, os milicianos invadiram suas casas, ameaçaram matar seu gado e chegaram a atirar contra moradores. Antônio tem cerca de 20 boletins de ocorrência abertos na delegacia de Correntina denunciando agressões do tipo.
Entre as principais empresas denunciadas está a Estrela Guia, que, a partir de 2018, substituiu, na região, a atuação da Empreiteira & Segurança CE do Corrente LTDA. Essa última é de propriedade do policial militar Carlos Erlani Gonçalves Santos, conhecido como “Cabo Erlani”, preso no último 25 de abril pela Operação Terra Justa.
A operação foi deflagrada por policiais da Companhia Independente de Ações no Cerrado (Cipe) da Polícia Civil e pelo Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público da Bahia. Cabo Erlani é acusado de integrar grupo miliciano armado que atua há dez anos no oeste da Bahia por meio de ameaças, lesões corporais e grilagem de terras.
“Minha casa foi invadida não sei quantas vezes, por ele e por outros capangas”, denuncia o fecheiro Antônio.
A atuação das milícias privadas é anterior à compra das fazendas pelo grupo Enforce.
A reportagem procurou o grupo Enforce para posicionamento por telefone e Linkedin, mas não obteve resposta até a publicação. Contatado, o banco BTG Pactual respondeu que não vai comentar o caso.
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