O Brasil na “guerra dos semicondutores”

Apostas de alto risco de Washington, com sanções a Pequim, ameaçam romper cadeias produtivas e podem prejudicar o próprio Ocidente. Diante da disputa, surge uma oportunidade para reconstruir indústria brasileira em atividade estratégica

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Por Elaine Santos, no Jornal da USP

Neste espaço onde escrevo todos os meses tenho tentado estabelecer um fio condutor sobre as matérias-primas consideradas essenciais para as chamadas “tecnologias do futuro” e a forma como cada parte do globo vem delineando suas estratégias. Meu objetivo é introduzir no debate público o modo como estas políticas demonstram aspectos comerciais, industriais e tecnológicos que se entrecruzam com dinâmicas militares próprias deste sistema econômico. Portanto, nos últimos meses, escrevi sobre a liberalização do mercado do lítio no Brasil, sobre o projeto europeu de autonomia estratégica e acerca do pacote climático aprovado nos Estados Unidos, que exigirá um aumento na produção de minerais.

A indústria de semicondutores faz parte deste escopo e nos últimos meses podemos dizer que a escalada que tensiona China, Estados Unidos e Taiwan aprofundou-se um pouco mais. Nas últimas semanas de outubro, o governo de Biden publicou um conjunto de controles de exportações incluindo medidas para cortar o acesso da China a certos semicondutores fabricados em qualquer lugar do mundo que utilizem equipamentos norte-americanos. Além disto, também aprovaram a CHIPS and Science Act de 2022, cujo objetivo é aumentar a competitividade, a inovação e a segurança dos Estados Unidos no que tange aos semicondutores. Com investimento da ordem de 50 bilhões de dólares para esta área, o país pretende reconstruir suas cadeias de suprimentos de forma mais doméstica e menos dependente da economia chinesa. A política europeia segue a mesma toada e em 2021 publicou seu European Chips Act, que definiu a necessidade de criar um ecossistema europeu de semicondutores de última geração.

Este processo de redefinição das cadeias pode ser exemplificado através da indústria de microeletrônica e semicondutores e resumido em três pontos: liderança tecnológica para o país que possui os semicondutores mais avançados, integridade nas etapas de produção de semicondutores garantindo que as informações ali contidas na sua programação são confiáveis, e o suprimento, que assegura a manutenção do poderio militar para o país que o desenvolve.

Além disto, e em uma cultura altamente digitalizada como a nossa, os semicondutores são utilizados em praticamente tudo, sensores, chips, smarthphones, videogames, cafeteiras, lavadoras, computadores, veículos, etc. A utilização em veículos foi o que fez sua demanda crescer nos últimos anos e esta demanda deve aumentar ainda mais com a popularização dos veículos elétricos. Vale lembrar que a União Europeia pretende proibir a venda de veículos com motor de combustão a partir de 2035.

Todos estes temas estão visceralmente relacionados a uma nova configuração geopolítica chinesa frente à globalização. E as sanções aos semicondutores, peças fundamentais na construção das modernas tecnologias da informação e comunicação, evidenciam um perfil imperialista ofensivo de Washington, enquanto a China aparece com uma reação mais defensiva. As análises a partir da China são sempre reveladoras, pois demonstram um país extremamente avançado em termos tecnológicos, dentro de um processo de desenvolvimento em que o Estado se coloca como sujeito e objeto de uma nova construção geopolítica, como é demonstrado no livro A expansão econômica e geopolítica da China no século XXI, organizado pelo professor Javier Vadell.

Para ter dimensão do impacto global deste país, o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, esteve na Argentina no último outubro e comentou que nos dias atuais todos os grandes debates passam pela China e que nenhum problema sério da humanidade, como é o que caso das mudanças climáticas, poderá ser decidido sem o compromisso desta grande potência. Segundo Josep Borrell, “a China é um sócio, é um competidor e é um rival”, um sócio porque para alguns países da Europa a China é um grande mercado, um competidor porque produz tudo de forma altamente competitiva e difícil de ser combatida, e é também um rival, porque representa um sistema político radicalmente diferente.

Neste sentido, pressionar a produção industrial de semicondutores altamente conectada em um padrão tecnológico dominado por poucas empresas poderá intensificar conflitos, fragilizar ou até paralisar esta cadeia e é certo que nenhum país conseguirá, a curto prazo, ser autossuficiente, como afirmou Mao Ning, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China.

No livro recém-lançado Chip War: The Fight for the World’s Most Critical Technology, Chris Miller comenta que ao realocar suas cadeias tecnológicas em outros países, os Estados Unidos perderam o controle dos seus principais componentes de semicondutores, contribuindo não só para uma possível escassez, como também para que seu adversário, a China, pudesse preencher esta lacuna e se impor. Para se ter uma ideia de como estas cadeias se alteraram nas últimas décadas, a fabricação de semicondutores modernos nos Estados Unidos passou de 37% em 1990 para 12% atualmente, demonstrando o tamanho da dificuldade para banir a China das relações comerciais, mesmo com elevados investimentos.

Neste cenário e longe de esgotar este debate, interessa ao Brasil se posicionar com uma política de Estado relacionada aos setores estratégicos, como venho demonstrando insistentemente no tema dos minerais críticos e que contempla também a produção de semicondutores. Temos o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), a única fabricante de semicondutores da América Latina em via de ser fechada dentro do programa de desestatização do atual Ministério da Economia; temos a Companhia Brasileira de Lítio (CBL), que vem desenvolvendo pesquisas importantes junto ao IPEN. Obviamente que dado o nosso caráter dependente não faremos frente à China, tampouco aos Estados Unidos, porém não podemos somente assistir ao jogo de xadrez sem sequer experimentar jogá-lo.

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