Agro 4.0: tecnologia para mais desigualdade no campo

Digitalização promete mais eficiência – e, no Brasil, cai como luva para o discurso “pop”. Agronegócio já emplaca edital para empresas de extração de dados. Valiosos, abririam imensa vantagem para megaempresas contra produção familiar

.

Por Joyce Souza, na Le Monde Diplomatique Brasil

O avanço das tecnologias digitais sobre todos os terrenos da vida humana é uma realidade incontornável já há algumas décadas. Apesar da nitidez em que se nota a marcha das tecnologias digitais nos centros urbanos, ainda não está de todo claro o impacto que essas tecnologias terão no campo. De acordo com o relatório Digital Technologies in Agriculture and Rural Areas, apresentado pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em 2019, o setor agrícola passará por uma revolução digital que será a mais transformadora e disruptiva entre todos os setores, porque não alterará somente a forma de cultivo, mas todos os elos da cadeia agroalimentar.

Segundo os pesquisadores responsáveis pelo estudo, Nikola Trendov, Samuel Varas, e Meng Zeng, a digitalização e a automação inteligente devem contribuir com 14% do PIB global em 2030, o equivalente a cerca de US$15 trilhões no valor de hoje.

Como em todos os setores indústrias, a tecnologia digital tem sido apresentada como algo fundamental e imprescindível também para a operação do setor agroalimentar, que movimenta US$7,8 trilhões e emprega 40% da força de trabalho global. A justificativa é que sem o seu uso o setor não poderá crescer no ritmo adequado nas próximas décadas e com isso não atingirá a necessidade da população mundial, que deverá passar de 7,6 bilhões em 2018 para bem mais de 9,8 bilhões em 2050.

Tecnologias, como blockchain, inteligência artificial (IA), machine learning, robótica, entre outras, têm apresentado benefícios econômicos, ambientais e alimentares em suas aplicações no mundo. Por exemplo, há pesquisas e casos que demonstram que o uso de blockchain para a rastreabilidade de cadeias alimentares gera agilidade na detecção de alimentos em más condições, permitindo uma reação eficaz, como na detecção de surtos em fontes específicas da cadeia por onde o alimento passou. As aplicações da IA têm auxiliado no melhor uso de recursos na agricultura. Por sistemas de monitoramento 24×7 (24 horas por dia, 7 dias por semana) atrelados a sensores e a modelos de predição é possível antecipar ou melhor avaliar determinadas decisões, como a necessidade e o tempo de irrigação do solo, entre outras. Outro exemplo é o uso de robôs agrícolas, também conhecidos como agribots, que estão sendo utilizados em diversos processos na pecuária e na agricultura, apresentando redução dos custos de produção, melhoria da qualidade dos produtos e aproveitamento de insumos como fertilizantes, água e solo.

Porém, apesar das vantagens apresentadas em alguns estudos e das promessas feitas pelas corporações de tecnologia, o próprio relatório da FAO aponta que nos próximos 10 anos haverá uma mudança dramática no sistema agroalimentar, impulsionada por essas inovações e tecnologias digitais avançadas, com impactos em toda a cadeia de produção e valor do campo.

O emprego dessas tecnologias alterará desde o comportamento de agricultores, fornecedores de insumos, empresas de processamento e redes de varejo, responsáveis pela definição de preços e comercialização de produtos, até as preferências e demandas do consumidor. De acordo com Sérgio Amadeu, em Tudo sobre Tod@s: redes digitais, privacidade e vendas de dados pessoais (2017), essas escolhas de consumo poderão se dar por meio de um processo de modulação comportamental, desenvolvido a partir da categorização de perfis e de padrões de comportamento – gerados por meio da coleta, monitoramento e análises de dados pessoais. Este processo no campo resultará em estratégias e ações certeiras para induzir as pessoas a consumirem produtos específicos das corporações do agronegócio que conseguirem adentrar no universo da digitalização de suas produções. Por fim, a posse dos dados dos consumidores finais poderá viabilizar análises das imbricações do consumo, como os impactos na saúde de quem consome ou não produtos industrializados ou alimentos com agrotóxicos. Este volume de dados poderá ser comercializado, por exemplo, com seguradoras, indústrias farmacêuticas, entre outros, bem como servir de fonte para a criação de estratégias de negócios para atender uma demanda futura.

Ilustração: Cesar Habert Paciornik

Brasil e o Agro 4.0

O Brasil busca se inserir a todo custo nesse terreno de gestão do agronegócio hiperconectada, altamente otimizada, individualizada, inteligente e orientada por dados.

Além da criação da Câmara do Agro 4.0 em agosto de 2019, como parte do Plano Nacional de Internet das Coisas, os Ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), da Economia (ME) e da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) lançaram, no dia 03 de setembro de 2020, o primeiro edital do programa Agro 4.0, visando investir R$4,8 milhões em 14 projetos pilotos de adoção e de difusão de tecnologia 4.0 no agronegócio.

De acordo com informações presentes no edital, um dos itens comum a todas as quatro categorias de seleção (insumos; segmento primário/produção e colheita; segmento secundário/indústria de transformação; e integração de segmentos, incluindo segmento terciário) está a capacidade de rastreamento e monitoramento da cadeia em que atuarão, ou seja, monitoramento de ponta a ponta. Isso exigirá que as 14 empresas, entidades e/ou startups selecionadas coletem, armazenem e analisem dados da área de atuação e os compartilhem por 20 meses – através de respostas a questionários e entrevistas para aprimoramento dos relatórios de avaliação e inteligência – com os Ministérios envolvidos no programa, especificamente, com a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI).

O edital apresenta como resultados esperados “aumento de produtividade/competitividade e redução de custos junto aos produtores e indústrias envolvidas no projeto; maior disseminação de tecnologias digitais no Brasil, por meio da rede de inovação e dos dados gerados no projeto; maior segurança para o investimento de novos produtores, considerando os cases empreendidos; proposição de políticas públicas qualificadas, a partir de experiências e resultados do projeto; e disponibilização de plataforma com conteúdos e serviços”.

Ao avaliar o edital em sua totalidade, nota-se que apesar do incentivo e da exigência para que haja coleta de dados ao longo da atuação dos 14 selecionados – afinal o desenvolvimento de tecnologias digitais está intrinsecamente atrelado aos dados – não há menções e/ou instruções de como deve ocorrer essa coleta, onde e como os dados deverão ser armazenados, quem são os atores que terão acesso, como ocorrerá a troca dos dados entre esses atores e quais sistemas de segurança da informação deverão ser utilizados em cada etapa.

Há menções ao longo do edital de que informações sigilosas não deverão ser compartilhadas entre os atores e divulgadas, porém o documento não especifica quais dados e informações entrariam nessa categoria. O documento, ainda, não faz nenhuma menção à Lei Geral de Proteção de Dados, em vigor desde 18 de setembro de 2020 no país, como diretriz fundamental nos processos em que seja necessário a utilização de dados pessoais por parte dos atores envolvidos.

Agro 4.0: rumo a extração de dados

Possuir os dados detalhados sobre as cadeias de produção e valor de um mercado, que em 2019 movimentou 21,4% do PIB brasileiro, significa, no mínimo, uma extrema vantagem competitiva, incluindo desde o produtor do agronegócio até empresas privadas de tecnologia digital.

Não à toa, os discursos dominantes – tais como aquele que indica que “o Agro é tech, o Agro é pop, o Agro é tudo” – apresentam as tecnologias digitais como a única e melhor alternativa para que o agronegócio cresça e mantenha sua vantagem competitiva em escala global. Para isso, a qualidade, diversidade e a quantidade de dados coletados precisam aumentar significativamente e de forma ágil, não importando por quem, quando e como os dados coletados serão manuseados.

Paola Ricaurte diz que estes discursos dominantes estariam baseados em três pressupostos: (1) os dados refletem a realidade; (2) a análise de dados gera conhecimento mais valioso e preciso; e (3) os resultados do processamento de dados podem ser usados ​​para tomar melhores decisões sobre o mundo.

Com base nessas perspectivas, o que vemos é nossos “eus digitais” e nosso universo de objetos e espaços sendo coletados, armazenados e transformados em conhecimentos que alimentam a acumulação de capital e a concentração de poder.

Para Nick Couldry e Ulises Mejias o que está em curso é o colonialismo de dados, que combina práticas de extração predatórias do colonialismo histórico com métodos de quantificação abstrata da computação, no qual toda a vida humana é convertida em renda e lucro por meio dos dados. Assim, o colonialismo de dados implica em novas formas de exploração e apropriação que resultam em dinâmicas de discriminação e de desigualdade.

Dados digitais e o avanço da desigualdade no campo

O avanço das tecnologias digitais no campo, que o governo de Jair Bolsonaro coloca em função do benefício e da expansão do agronegócio, tem ampliado a desigualdade em relação aos produtores rurais e agricultores familiares; e esse processo ainda está só no início.

Apesar da recente pesquisa realizada em parceria entre a Embrapa, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) sobre Agricultura Digital no Brasil mostrar que 84% dos produtores rurais entrevistados utilizam ao menos uma tecnologia digital em seu processo produtivo, o maior volume desse acesso está atrelado a consultas simples, como uso de aplicativos ou programas para obtenção ou divulgações de informações (WhatsApp e Facebook) e não ao uso de tecnologias digitais avançadas como Inteligência Artificial, machine learning, entre outras.

É fundamental observar que este é um cenário díspar. As inovações e ferramentas tecnológicas que prometem tornar os sistemas agrícolas mais eficientes, sustentáveis e economicamente mais rentáveis, como a agricultura de precisão, não são projetados para que os pequenos produtores tenham acesso. A própria lógica que compreende o desenvolvimento destas tecnologias aponta para isso: quanto maior o tamanho da propriedade e da escala de produção maior é o volume de dados que pode ser coletado e utilizado no desenvolvimento tecnológico. Além disso, para atender as diferentes necessidades do campo se faz necessária uma ampla integração entre diferentes tecnologias e processos para que os resultados sejam eficazes. Em outras palavras, o investimento para a aquisição e implementação de tecnologias digitais na produção tende a ser altíssimo e inviável ao pequeno produtor.

Embora os benefícios das tecnologias digitais no campo sejam bastante explorados em publicações e pesquisas, a sua implementação aponta para processos de exclusão e de desigualdade, seja diretamente no âmbito do desemprego com a substituição de mão de obra por processos robotizados (o que caberia uma ampla e profunda análise), seja de forma sutil e indireta como na coleta e na análise de dados de toda uma cadeia de valor pelo grande produtor, que poderá atuar em  processos de modulação, como mencionado anteriormente, e atingir amplas vantagens competitivas, além é claro da possibilidade, a depender das tecnologias implementadas, de amplo monitoramento e vigilância das pequenas produções no país.

Se há algumas décadas o debate sobre as tecnologias no campo permeava à inclusão digital e o acesso a rede, com o avanço das tecnologias e dos potenciais do big data, soma-se à preocupação do fosso digital as implicações que a exclusão no acesso e na implementação dessas novas tecnologias gerarão ao trabalhador do campo, produtor rural e agricultura familiar, que além de constantemente enfrentarem os desafios sociais que os acercam, como a subsistência rural, a luta pela terra, o desemprego feminino e juvenil, entre outros, terão que lidar com uma economia dataficada sob o campo.

Para que esse cenário seja revertido é fundamental que haja um plano de democratização dessas tecnologias no campo por parte do Governo Federal e não um plano Agro 4.0, com direito a uma Câmara específica ao setor. A produção rural não se resume ao agronegócio, segundo dados do Censo Agropecuário 2017 (IBGE) os estabelecimentos de agricultura familiar foram responsáveis por 23% do valor da produção nacional. No que se refere às culturas permanentes, o segmento foi responsável por 48% do valor da produção de café e banana. Nas culturas temporárias, o segmento da agricultura familiar respondeu por 80% do valor de produção da mandioca, 69% do abacaxi e 42% da produção do feijão.

Tecnologias digitais e o impacto na cadeia agroalimentar

Eduardo Galeano já alertava que “a soberania começa pela boca”. As tecnologias digitais empregadas no campo terão impactos enormes em toda a cadeia de valor do setor e muitos desses impactos, como a modulação comportamental, baseada na coleta e na classificação de dados, ocorrerão de maneira silenciosa, na grande maioria das vezes, sem qualquer conhecimento e consentimento dos envolvidos. Nada mais distante da soberania a que Galeano se referia. Nesse sentido, se torna urgente compreendermos o cenário que se apresenta para pensarmos saídas possíveis.

Com limitações em termos de dados sistemáticos e oficiais sobre os atores que desenvolvem e operam tecnologias digitais voltadas ao agronegócio brasileiro, o faturamento e investimento desse setor, as sistematizações de riscos e lacunas na adoção dessas tecnologias e as informações sobre como será aplicado o quadro regulatório de uso e proteção aos dados coletados, nota-se a urgência, em um primeiro momento, do desenvolvimento de uma pesquisa aprofundada sobre o estado da arte atual deste mercado, considerando os impactos das tecnologias digitais em todas as etapas da cadeia de produção e valor, ou seja, do campo ao garfo.

A partir deste mapeamento, seria possível identificar os diferentes modelos de tecnologias empregadas no campo e quais desses modelos poderiam ser funcionais ao pequeno produtor e a agricultura familiar, para desta forma atuar com a ideia de apropriação das tecnologias digitais para que sejam utilizadas em prol dos interesses da sociedade e não somente como instrumentos a serviço do capital e, especificamente, do agronegócio no país.

A análise do impacto das tecnologias digitais na agricultura e no meio rural abre uma importante área de trabalho, que deve ir além do objetivo de acumular evidências e análises. Uma vez que compreendamos cada etapa do caminho do “campo ao garfo” e os diferentes elos das tecnologias digitais que operaram nessas correntes, será possível identificar gargalos para pensarmos possibilidades tecnológicas que trabalhem, ao menos, pelas perspectivas de inclusão, avanço e transparência no campo.

Joyce Souza é jornalista e cientista social. Doutoranda em Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC, pesquisadora do Laboratório de Tecnologias Livres, coprodutora do podcast Tecnopolítica, membra do Movimento das Tecnologias Não Alinhadas e organizadora do livro Sociedade de Controle: Manipulação e Modulação nas Redes Digitais.

Artigo produzido em pesquisa da Fundação Heinrich Böll no Brasil

Leia Também: