Uma saída emergencial para frear o avanço da fome

Enquanto governo desmantela política públicas, 22 organizações, ligadas à Conferência Popular de Soberania e Segurança Alimentar, propõe comitês locais para enfrentar a fome, pressionando poder público e articulando ações solidárias

Imagem: Ribs
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Quem tem fome tem pressa. Parece repetitivo citar esta frase dita pelo sociólogo Betinho no final da década de 90. Mas a denúncia é escandalosamente atual, agravada pela pandemia de coronavírus (covid-19). De acordo com relatório publicado pela  Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), a população em condições de extrema pobreza na América Latina e Caribe poderia chegar a 83,4 milhões de pessoas em 2020.

Em seu relatório anual sobre o Estado de Segurança Alimentar, publicado em julho, a FAO registrou o aumento da fome no mundo por três anos consecutivos, alcançando mais de 820 milhões.

A condição de pobreza e extrema pobreza é acentuada pelo desemprego e a precarização das relações de trabalho. No Brasil, entre janeiro e maio de 2020, foram fechadas 1,145 milhão de vagas de emprego formal, sendo mais da metade na faixa salarial de 1,01 a 1,5 salário mínimo, que corresponde a 635,1 mil postos. Na faixa de 1,51 a 2 salários mínimos, foram encerrados 229,3 mil. Essas duas faixas corresponderam a 75,5% do total de vagas fechadas este ano.

Cerca de 45% da força de trabalho está sem proteção social. Em cinco meses, a queda na renda atingiu 108 milhões de brasileiros. Os números são da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD), do IBGE.

A crise sanitária atinge o Brasil num contexto econômico e político regido pelo fascismo e autoritarismo, que também está inserido em um contexto global do sistema neoliberal. O agravamento das condições de vida e da fome estão relacionados a uma trajetória anterior, que não deve ser dissociada ao se considerar os dados da FAO, da Cepal e do IBGE. Com a epidemia, evidencia-se as fragilidades e desproteção do Estado brasileiro.

Desde 2016, foram intensificadas medidas de austeridade, que passaram a ser previstas na Constituição Federal com a Emenda Constitucional nº 95 (EC 95). Esta medida resultou, por exemplo, na retirada de mais de R$ 30 bilhões do Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, as reformas trabalhista e previdenciária retiraram a proteção social de milhares de trabalhadores. As privatizações de bens comuns e os desmontes sistemáticos de políticas e programas de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) enfraqueceram a garantia do Direito Humano à Alimentação. Dados de 2018, já mostravam que pessoas em condições de extrema pobreza somavam um total de 13,5 milhões, em uma escala ascendente que se iniciou em 2015.

Resposta imediata da sociedade civil

Enfrentar a fome no contexto pandêmico passou a ser prioridade para as organizações engajadas na realização da primeira Conferência Nacional Popular de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). O encontro estava previsto para acontecer em agosto de 2020 no Maranhão, mas foi adiado em função da pandemia, sem perspectiva de uma nova data.

Esta seria a primeira conferência após a arbitraria extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), ocorrida em 01 de janeiro de 2019, pelo governo Bolsonaro.  Apesar do adiamento, o entendimento da comissão organizadora é que a conferência continua, como processo ativo e permanente de participação social, sobretudo, com a ausência do Consea. É o que explica Mariana Santarelli, integrante do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e da comissão organizadora, que conta com 22 organizações. Definida a prioridade de lidar com a pandemia, a comissão publicou, em 24 de março, o documento “Recomendações sobre o direito à alimentação no contexto da Covid-19” que foi assinado por mais de 150 organizações da sociedade civil.

O documento apresenta um conjunto de propostas de combate à fome a serem implementadas, em caráter urgente e emergencial, pelos governos nas esferas federal, estadual e municipal.  “A pandemia revela também, a urgência de saídas que coloquem a vida e a dignidade humana no centro das decisões e políticas públicas, enquanto uma abordagem de direitos humanos”, informa o texto.

Uma das linhas estratégicas é a criação de Comitês estaduais e municipais de Emergência para o Combate à Fome. Recomenda que estes comitês sejam formados pelas instâncias que tratam da SAN, como os conselhos de SAN (Conseas) e Câmaras Intersetoriais Governamentais (Caisans) e instituições de Ensino Superior (IES) em diálogo com as instâncias dos sistemas de saúde e de assistência social. O objetivo é monitorar e propor soluções articuladas e intersetoriais com foco nos grupos mais vulneráveis à fome. “Esse documento foi usado como referência por vários conselhos estaduais e municipais, e por outras iniciativas coletivas também”, conta Mariana.

Exigir o direito à alimentação e combater a fome em tempos de Covid-19

As organizações e coletivos da sociedade civil que militam na área da SAN têm trabalhado em duas frentes: exigir o direito à alimentação e combater a fome em uma perspectiva que concilia a emergencial e o estrutural, com garantias a médio e longo prazo para que a condição de vulnerabilidade social não se torne uma condição permanente e fruto de usos políticos.

A resposta lenta e confusa dos governos em regulamentar ações emergenciais a partir do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), por exemplo, levou a comissão organizadora da Conferência Popular por Soberania e SAN a elaborar um documento com orientações para a criação dos comitês emergenciais, no dia 17 de abril.

É recomendável que os comitês reúnam diferentes setores de governo, legisladores, representantes de conselhos de políticas. Neste processo, os Conseas estaduais e municipais Consea como importante mobilizador das organizações da sociedade civil. Na ausência do poder público, podem ser criados comitês emergenciais populares para a exigibilidade do direito humano à alimentação.

“A pandemia revela também, a urgência de saídas que coloquem a vida e a dignidade humana no centro das decisões e políticas públicas, enquanto uma abordagem de direitos humanos”, defende o texto.

Conheça as experiências de comitês emergenciais na Bahia, São Paulo e Rio Grande do Sul.

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