Sete desafios para o Complexo Industrial da Saúde

A Saúde está em posição privilegiada no cenário da Nova Indústria Brasileira. Pesquisador lista alguns pontos em que é preciso avançar, entre eles: estabelecer prioridades, promover boas práticas de pesquisa e repensar a política de propriedade intelectual

Créditos: Fiocruz
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Por Reinaldo Guimarães, autor convidado

1. O CEIS e a Nova Indústria Brasil (NIB): O conceito do CEIS e a estratégia para lidar com ele é um passo importante na interpretação das relações entre a ampliação do acesso a bens e serviços de saúde e o desenvolvimento científico, tecnológico e produtivo nesse campo. Enquanto política pública, essas relações se estruturaram com a criação da Secretaria de Ciência Tecnologia e Inovação no Ministério da Saúde em 2003, do Departamento para o Complexo Industrial e Inovação em Saúde em 2007 e da Política de Desenvolvimento Produtivo em 2008. A política adquiriu regulamentação adequada em 2012 e, após retrocessos entre 2018 e 2022, retorna enriquecida em sua nova versão, agora estruturada numa estratégia bem mais ampla.

2. A ancoragem do CEIS na NIB: No meu ponto de vista, o aspecto mais relevante da estratégia é a sua ancoragem institucional, na qual o CEIS está colocado em posição privilegiada no cenário da NIB, vale dizer, da política industrial brasileira, como uma de suas seis missões. Dito de outro modo, a estratégia para o CEIS se desloca de ser uma política industrial para o SUS tornando-se um componente da política industrial brasileira nos aspectos onde o SUS é o componente central. Nessa vertente, o desafio está em sustentar essa nova e ampliada articulação.

3. O amadurecimento da estratégia do CEIS: A decisão de ancorar a estratégia para o CEIS na política industrial brasileira necessita da permanência e da estabilidade da âncora. O fortalecimento da NIB torna-se, portanto, também um desafio para a estratégia. Uma estratégia política amadurece quando é reconhecida como estável e indispensável, não apenas pelos governos e pelos atores diretamente vinculados a ela, mas também pela população em geral. Quanto a isso, a estratégia para o CEIS terá que buscar esse amadurecimento, fazendo-a indispensável e estável ao longo do tempo. No Brasil, ciência, tecnologia, inovação e produção industrial não são temas que estão no centro do cenário político, mas a saúde está. Particularmente após a tragédia da pandemia de covid-19 e o papel das tecnologias envolvidas no seu enfrentamento, principalmente no terreno dos respiradores e das vacinas, o tema deslocou-se para o centro da cena. É também um desafio para a estratégia e para o SUS contribuir para que aí permaneça.

4. Uma agenda expandida de prioridades: A construção da estratégia para o CEIS adotou um caminho de Blocos (que são dois), Plataformas e Produtos. Na minha percepção, o primeiro Bloco (Preparação para Emergências Sanitárias) foi proposto ainda sobre o impacto da pandemia de COVID e da certeza da eclosão de novas emergências de grandes dimensões. Indispensável, portanto, constar como um capítulo destacado na agenda. Mas é no segundo Bloco (Doenças e Agravos Críticos para o SUS) que se situa o que penso ser o núcleo da agenda para a estratégia. 

Ele é 100% inclusivo até onde a vista alcança, mas nem todas as doenças e nem todos os agravos serão enfrentados ao mesmo tempo. Haverá que escolher nesse amplo cardápio aquilo que será a prioridade da hora, e o processo de escolha também é um desafio para a estratégia. Ele dependerá de variáveis epidemiológicas, políticas, do estado da técnica, dos recursos humanos e financeiros, etc. E, sendo coerente com meu comentário anterior, eu sugeriria que este bloco, ao invés de tratar de “doenças agravos críticos para o SUS”, talvez pudesse ser chamado de “doenças e agravos críticos na política industrial brasileira onde o SUS é o componente central”.

5. Boas práticas de pesquisa e aversão ao risco: Penso que este desafio deverá ser enfrentado como um duplo e coordenado movimento. É sabido que os empresários brasileiros no campo do CEIS tradicionalmente apresentam forte aversão ao risco e isso muitas vezes dificulta o desenvolvimento e produção locais de itens críticos. No terreno farmacêutico, essa aversão me parece dependente da radicalização das regras de propriedade intelectual pós-TRIPS e do impacto que essa radicalização teve no Brasil com a nossa mais que permissiva lei de patentes (9.279/96). Mas, o fato é que a indústria farmacêutica de capital nacional – em particular com a lei dos genéricos – saiu-se muito bem nessas últimas duas décadas tendo avançado com muita força. 

Em 1998, dentre as dez maiores farmacêuticas em atividade no Brasil, medidas pelo faturamento, apenas uma era de capital nacional (1). Em 2022, tendo como medida o seu valor de mercado, dentre as dez maiores, sete eram de capital nacional (2). Talvez, seja chegada a hora dessas empresas participarem do esforço de diminuição de nossa dependência com uma exposição maior ao risco associando-se a projetos de pesquisa e desenvolvimento realizados aqui no país. 

Aqui, vale um comentário lateral. Há empresas farmacêuticas brasileiras se internacionalizando, isto é, se associando ou adquirindo ativos no exterior com objetivos que vão além de conquistar mercados, mas sim o de montar estratégias para o domínio de tecnologias inovadoras (3). Considero que é um movimento positivo dependendo do modelo de negócio ajustado. Se a alma do projeto – o design – permanece sob o controle da empresa brasileira, ótimo (modo Embraer); se não, penso que não será muito útil para uma estratégia de diminuição de dependência tecnológica (modo indústria automobilística).

Mas, eu penso também que há o outro lado da moeda. A comunidade científica muitas vezes não reveste o seu processo de produção de conhecimentos com documentação adequada capaz de garantir a repetibilidade e o potencial acesso futuro à proteção da propriedade à indústria associada. Resumindo, são desenvolvimentos que não atendem ao conceito de “Boas Práticas de Pesquisa”. Será essencial para o CEIS disseminar esse conceito na comunidade científica.

A boa notícia é que há evidências de que o ambiente nos dois lados da moeda está mudando. Acredito que a promoção desse movimento combinado em suas duas pontas é um desafio importante na estratégia para o CEIS.

6. A indústria da Saúde no mundo e as condições de competição: O complexo industrial global no campo da saúde é brutalmente oligopolizado e, nas últimas décadas, vem se concentrando ainda mais mediante uma política feroz de fusões, aquisições e de fechamento de unidades produtivas. Para exemplificar essa política, basta afirmar que atualmente, daquelas já mencionadas dez maiores empresas multinacionais em faturamento no Brasil em 1998, apenas quatro continuam a existir. As seis outras foram compradas ou fundidas (1,2). Em parte, isso decorre de um processo de mudança tecnológica, mas também da abertura comercial desastrada de 1991 e da harmonização mundial dos padrões de propriedade intelectual em benefício dos detentores de patentes proporcionado pela TRIPS a partir de 1994. 

No Brasil, isso resultou num importante processo de fechamento de unidades produtivas no campo farmoquímico (predominantemente empresas de capital nacional) e farmacêutico (predominantemente empresas multinacionais), restando atualmente às filiais dessas últimas a finalização de medicamentos importados em sua forma acabada e algumas atividades de pesquisa clínica de fase 3. Há, por certo, restrições impostas por órgãos de controle quanto à preferência na eleição de parceiros por parte do Ministério da Saúde. Entretanto, é preciso salientar que restrições excessivas podem vir a tolher o domínio tecnológico e produtivo, tanto de empresas de capital nacional quanto de projetos de pesquisa com potencial de se transformarem em produtos e processos inovadores. Utilizando novamente a metonímia que usei acima, essas restrições estimulam o padrão “indústria automobilística” e dificultam a existência do padrão “Embraer”. Este é também um desafio da estratégia, muito embora sua superação não dependa centralmente dela.

7. Articulação com outras políticas: A estratégia para o CEIS possui relações próximas com uma rede de outras políticas, dentro e fora do MS. Sua articulação com elas é também um requisito importante para o seu sucesso. No meu ponto de vista, as três políticas mais importantes são a política de propriedade intelectual, a cargo do INPI, a política de controle de preços medicamentos, cuja execução na CMED está a cargo da ANVISA e a política de avaliação e incorporação de produtos e processos no SUS, a cargo da própria secretaria do MS que comanda a estratégia do CEIS. Por estar fora do MS – ela está na alçada do MDIC – a relação com a política de propriedade intelectual é a mais sensível para o sucesso da estratégia para o CEIS. A boa notícia é que a inclusão da estratégia no ambiente da NIB, cuja coordenação também está no MDIC, pode facilitar essa articulação. Vale ainda mencionar as políticas e programas que pertencem ao novo mundo digital, cujas aplicações são transversais a todas as atividades industriais e tendem a ocupar todo o universo dos temas relativos à saúde.


* Notas preparadas para a conferência temática intitulada “Desafios Contemporâneos da Pesquisa Para o Complexo Econômico-Industrial Da Saúde (CEIS)”, preparatória da 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação.

Referências

(1) Prado, ARM – A Indústria Farmacêutica Brasileira a partir dos anos 1990: a Lei dos Genéricos e os impactos na dinâmica Competitiva. Leituras de Economia Política. Campinas (19) 111 – 145, dezembro de 2011. https://www.eco.unicamp.br/images/arquivos/artigos/3194/08%20Artigo%206.pdf

(2) Queirós, D. – 18 farmacêuticas bilionárias entre as mais valiosas do Brasil. Panorama Farmacêutico. 23/05/2022. https://panoramafarmaceutico.com.br/18-farmaceuticas-bilionarias-valiosas/#google_vignette

(3) Perin, FS e Paranhos, J.- A internacionalização das grandes empresas farmacêuticas nacionais: evolução, desafios e estratégias inovativas. Agosto 2019 vol. 6 num. 1 – IV Encontro Nacional de Economia Industrial e Inovação. http://pdf.blucher.com.br.s3-sa-east-1.amazonaws.com/engineeringproceedings/enei2019/2.1-006.pdf

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