Por uma política para os medicamentos de alto custo

Gastos com remédios para doenças raras crescem vertiginosamente, e tornam-se inviáveis – inclusive devido a lucros exorbitantes. É preciso reformular o papel do Estado, para que não permita que esses fármacos sejam determinados pelas “forças de mercado”

Imagem: Freepik
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A política de Assistência Farmacêutica do Ministério da Saúde vem observando significativo aumento de suas despesas, principalmente nos seus dois componentes de maiores gastos – Especializado e Estratégico. Segundo a especialista do IPEA Fabíola Vieira, em 2013 foram despendidos nestes componentes R$ 9,5 bilhões e em 2021, R$ 19,8 bilhões (excluídas as despesas com o enfrentamento da covid-19) (1). Além dessa tendência, deve ser ressaltada a persistente epidemia de ações judiciais, que em 2019, ainda segundo Vieira, consumiu 25,2% dos recursos do Componente Especializado, sendo 21% dispêndios referentes a dez medicamentos (2), todos eles muito caros. A responsabilidade por esse aumento de despesas tem várias razões, mas a incorporação nas listas do SUS de novos medicamentos, principalmente produzidos por rota biotecnológica e destinados a combater doenças crônicas não-transmissíveis, raras e genéticas, é a principal.

A trajetória de medicamentos com preços cada vez mais insustentáveis para os sistemas de saúde não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, incidindo com força também nos países do Hemisfério Norte, com ou sem sistemas públicos universais. E as estratégias para enfrentar o problema, que são várias, têm incluído uma revisão nos mecanismos de avaliação de novas tecnologias com vistas à incorporação das mesmas em suas listas.

Essa discussão vai se tornando cada vez mais necessária porque a frequência do registro de medicamentos com preços insustentáveis é crescente e, embora atualmente eles representem ainda uma fatia minoritária em valor no mercado mundial, a velocidade de seu crescimento é a maior dentre todas as categorias de medicamentos. É para ela que se volta a maior parte das energias e das estratégias do oligopólio farmacêutico global.

O enfrentamento brasileiro da escalada de preços é um processo que deve incluir medidas com metas, prazos e abrangência diferenciados, com especial destaque para o fortalecimento da pesquisa, desenvolvimento e produção locais de itens relevantes e de complexidade crescente. O recente lançamento pelo Ministério da Saúde da Estratégia para o Complexo Econômico-Industrial da Saúde enfeixa e organiza parte importante desse processo. Entretanto, há medidas de prazo mais curto, como a que orienta este texto, cujo objetivo é sugerir uma ampliação das estratégias de incorporação de tecnologias no SUS.

Recente matéria de divulgação da revista britânica Nature (3) trata do seguinte assunto: medicamentos em desenvolvimento para doenças raras são abandonados pelas indústrias por não terem mercado que compense ir adiante. A matéria anuncia que entidades privadas sem fins lucrativos – ONGs (no caso uma, situada em Milão) estão propondo levar adiante esses desenvolvimentos (no caso, para uma determinada doença).

É muito curiosa a abordagem da matéria, por duas razões. A primeira é que não se comenta a ferida ética aberta por uma indústria farmacêutica que interrompe o desenvolvimento de um produto por não enxergar retorno comercial. A segunda é que não leva em conta a possibilidade de uma solução do problema com a intervenção do Estado, na qual os investimentos estatais no desenvolvimento seriam contabilizados e descontados do preço final em caso de sucesso. Inclusive, com um possível compartilhamento na propriedade intelectual do produto no mercado nacional.

A precificação de medicamentos baseada em custo-benefício (custos de desenvolvimento e produção, marketing, subsídios cruzados etc. versus impacto sanitário potencial) é utilizada há algumas décadas, tanto pela indústria farmacêutica como pela maioria das agências que, em muitos países, trabalham com avaliação de tecnologias (CONITEC no Brasil), sempre com muitos debates e tensões. Com o crescimento do lançamento desses medicamentos produzidos mediante rotas biológicas com preços cada vez mais insustentáveis, essa metodologia tende a ser colocada em tela de juízo.

A economista do University College de Londres, Mariana Mazzucato, é uma das principais críticas desse modelo de precificação. Há alguns anos, ela incluiu a saúde e os medicamentos em sua pauta de reflexão. Em artigo de 2017 (4), Mazzucato (com Victor Roy) sugere uma nova moldura conceitual na qual a criação de valor em saúde deve considerar três questões:

1) Quais direções deve tomar a inovação em saúde de modo a atingir necessidades da sociedade?

2) Como pode ser estruturada a divisão do trabalho inovativo de modo a criar valor?

3) Como podem ser distribuídos os riscos e recompensas envolvidos no processo de inovação de modo a sustentar uma criação de valor em termos de saúde?

Mazzucato propõe que, em uma proposta diferente de criação de valor, este seja visto como uma resultante de deliberação estratégica com investimentos oriundos de várias fontes (públicas e privadas). Em suas palavras, “…tanto o ritmo quanto a direção da criação de valor sejam passíveis de contestação e não determinadas pelas ‘forças de mercado’. Neste contexto, vemos as organizações públicas e os seus investimentos no processo de inovação em saúde não como uma solução para as falhas do mercado, mas como uma forma ativa de moldar e criar direções para a inovação” (tradução livre).

Mazzucato e Roy sugerem que essas ideias conformam uma nova moldura para pensarmos um tema que, no meu ponto de vista, tende a crescer conforme se estendem as inúmeras variantes tecnológicas e produtivas que utilizam plataformas biotecnológicas no campo da saúde. E penso também que, a despeito da riqueza das propostas no texto, são ideias ainda à procura de um caminho geral que as transformem em política pública.

Mas, voltando ao texto do blog da Nature, com a explosão de preços de medicamentos no mundo, já se nota um aumento da fricção entre fabricantes e sistemas de saúde, mesmo que atualmente restritas a medicamentos para doenças raras que utilizam técnicas terapêuticas avançadas (terapias celulares e gênicas). Mas suspeito que essas fricções são a ponta de um iceberg que tende a crescer e chegar a enfermidades de mais alta prevalência, em particular os cânceres, mas também outras doenças (5).

Por exemplo, terapias que se utilizam células CART-T (Receptor de Antígeno Quimérico), uma das mais promissoras terapias celulares avançadas para cânceres, mostram que os preços não são sustentáveis para os sistemas de saúde e muito menos para as famílias dos pacientes – entre 500 mil e um milhão de dólares por aplicação (6).

Uma dessas fricções já existentes, relatada pelo texto do blog, é o já relatado abandono no desenvolvimento de produtos por parte de farmacêuticas e o convite a que ONGs o retomem. Pela escassez de ONGs capazes de enfrentar tarefas desse tipo, não vejo muito sucesso nessa proposta, mas acho que a discussão de uma entrada do Estado, através dos sistemas nacionais de saúde, em particular os universais, é um caminho a ser discutido. Seja na coparticipação no risco de produtos ainda em desenvolvimento, seja (principalmente) em produtos de alto custo já registrados e candidatos a serem incorporados no sistema público.

Na literatura, esse caminho tem sido chamado de “compartilhamento de risco” (RSA no acrônimo em inglês) e há importante bibliografia disponível, a maior parte dela olhando a questão do ponto de vista dos interesses da indústria farmacêutica. Uma revisão, não muito recente (2018), dá conta dos principais tipos e problemas colocados (7). A RSA compreende dois modelos, a saber: compartilhamento financeiro e compartilhamento dependente de resultado.

O primeiro modelo vincula-se a negociações para redução de preços como critério de incorporação do produto no sistema público, uma prática que o SUS utiliza há muitos anos e mediante várias estratégias, aqui incluída a possibilidade de decretar o licenciamento compulsório caso não haja a redução de preços solicitada. Este modelo exige uma competência tecnológica local habitualmente ausente no país (e por vezes internacionalmente) para produtos elegíveis para o compartilhamento.

O outro modelo de compartilhamento, vinculado a um resultado clínico pactuado, não conta com uma experiência local e penso que o SUS deveria inclui-lo em sua pauta de negociações para a incorporação de medicamentos. Não será uma panaceia, deve ser utilizado apenas para alguns medicamentos novos e muito caros e, principalmente, os critérios de pactuação e controle na implementação do acordo devem ser rigorosamente respeitados, sempre em favor do SUS. Este último componente é essencial para o sucesso da negociação e é apontado como o mais difícil de ser gerenciado. No caso brasileiro, será igualmente essencial estabelecer em um eventual acordo a participação da saúde suplementar, de modo a evitar que o SUS venha a ser onerado integralmente pelos tratamentos de pacientes detentores de seguros privados, atualmente obrigados a fornecer os produtos incorporados no sistema público.

Está em estudo pelo Ministério da Saúde uma proposta de compartilhamento de risco para um medicamento com preço insustentável para o tratamento de Atrofia Muscular Espinhal – o Zolgensma, fabricado pela empresa Novartis. Até onde eu saiba, ainda não há decisão sobre se haverá um acordo e muito menos sobre os critérios caso haja um. Em julho deste ano eu assinei um artigo que discute essa questão (8), no qual, entre muitas outras considerações sobre o tema, é informado que 84 pacientes com a doença vêm recebendo o medicamento por via judicial, com preços muito maiores do que um eventual acordo estabeleceria. Suspeito que este número crescerá na ausência de uma solução formalizada entre o SUS, a saúde suplementar e a empresa fabricante.


Referências:

1. Vieira, FS – Subsídios para a Transição – Saúde. Nota 1, Assistência Farmacêutica (2022).

https://afipeasindical.org.br/content/uploads/2022/11/GT-Saude-Nota-1-Assistencia-Farmaceutica-Afipea.pdf

2. Vieira, FS. – Judicialização e direito à saúde no Brasil: uma trajetória de encontros e desencontros. Revista de Saúde Publica. 2023;57:1 https://www.scielo.br/j/rsp/a/VJQ34GLNDB49xYVrGVKgDVF/?format=pdf&lang=pt

3. Ledford, H. – Gene therapies for rare diseases are under threat. Scientists hope to save them https://www.nature.com/articles/d41586-023-03109-z?utm_source=Nature+Briefing&utm_campaign=92a97c1689-briefing-dy-20231009&utm_medium=email&utm_term=0_c9dfd39373-92a97c1689-45602242

4. Mazzucato, M; Roy, V. – Rethinking Value in Health Innovation: from mystifications towards prescriptions. https://www.ucl.ac.uk/bartlett/public-purpose/publications/2017/nov/rethinking-value-health-innovation-mystifications-towards-prescriptions

5. Baker, D.J., et al. CAR-T therapy beyond cancer: the evolution of a living drug. Nature 619, 707–715 (2023). https://doi.org/10.1038/s41586-023-06243-w

6. Robinson, KM – Navigating the Financial Aspects of CAR T-Cell Therapy. WebMD. Medically Reviewed by Sarah Goodell on January 24, 2023. https://www.webmd.com/cancer/lymphoma/features/navigate-finances-car-t-cell-therapy#:~:text=Experts%20estimate%20that%20CAR%20T,cost%20between%20%24500%2C000%20and%20%241%2C000%2C000.

7. Gonçalves, FR et.al – Risk-sharing agreements, present and future. Ecancermedicalscience. Published online 2018 Apr 10. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5931811/

8. Guimarães, R. – Novos desafios na avaliação de tecnologias em saúde (ATS): o caso Zolgensma. Ciência & Saúde Coletiva, 28(7):1881-1889, 2023. https://www.scielo.br/j/csc/a/PNLLwtPR477hCJYRd857YHD/?lang=pt

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