Saúde Digital: a tecnologia a favor do SUS ou do mercado?

Em debate, a encruzilhada em que o sistema de saúde se encontra, com a entrada de novas tecnologias. Servirão para enriquecer poucos ou favorecer maiorias? Será possível uma saúde coletiva digital de código aberto?

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A urgência de pensar a incorporação de tecnologias digitais na área da saúde coletiva foi tema de debate na quarta-feira (24/8). Em evento organizado pelo Centro de Estudos Miguel Murat de Vasconcellos, da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), pesquisadores examinaram como o Brasil adere a sistemas de tecnologia de informação e de inteligência artificial que podem ter enorme impacto no SUS e na vida da população. Além do pessoal da própria ENSP, havia gente do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz) e da USP.

O problema é complexo e tem diversas faces, ficou claro. Marcelo Fornazin, do Icict, fez a provocação de abertura. A saúde digital foi uma evolução da saúde eletrônica – aquela que se restringia ao uso em laboratórios, consultórios e hospitais. O salto importante foi dado quando as tecnologias passaram a utilizar, direta e intensamente, quantidades imensas de dados dos usuários, para monitorá-los. Isso se dá, por exemplo, com aplicativos de saúde, alimentação e exercícios físicos. Ou de monitoração cardíaca, de glicemia ou de pressão. 

Embora invasivas, as tecnologias têm papel muito importante no tratamento dos pacientes. Utilizam-se de dados de milhões para fazer diagnósticos com mais precisão e rapidez. Poderiam diminuir o custo de atendimentos e até reduzir o tempo de internação. Mas estão a serviço de quem? 

“Essas tecnologias funcionam bem em laboratórios, mas uma série de barreiras dificulta seu uso,  quando são transferidas para o dia a dia dos sistemas de saúde”, sustenta Marcelo. Traz consigo questões éticas e regulatórias importantes: se a máquina comete um erro, a culpa é do médico que a operou, do programador ou da empresa que a desenvolveu? E quando algum viés equivocado (de raça, por exemplo) fizer com que o software crie discriminações? Como lidar com a concentração de mercado de empresas que possuem grandes oceanos de dados? Será possível disseminar essas tecnologias para grandes populações ou apenas para quem tem dinheiro?

Para Ilara Hammerli, pesquisadora da ENSP, um grande problema para o Brasil é empregar estas tecnologias e inteligências artificiais, programadas no Norte Global, em nossa realidade. Este país latino-americano, de desigualdades abissais, sustenta Ilara, também é a terra do SUS. “Ainda há muito o que caminhar e discutir a respeito de qual é o projeto da saúde coletiva para a incorporação do digital a partir dos seus marcos referenciais”, defendeu ela, ao iniciar sua apresentação.

Ilara percebe que, no atual contexto político, o país sofre grave risco implementar essas tecnologias de maneira que aprofunde as desigualdades. São tempos de ameaças à democracia, apagão de dados, invasões seguidas aos sistemas de informação do SUS, desmonte de monitoramento da qualidade, open health… Sua avaliação vai além: é preciso encarar o fato de que o capitalismo de dados tem potencial de representar mais um passo adiante na privatização gradual do SUS.

Para conter essas investidas, é preciso que haja propostas no sentido contrário – e os participantes do debate apresentaram algumas. Marcel Pedroso, também pesquisador do Icict, dedicou sua fala à apresentação da Plataforma de Ciência de Dados aplicada à Saúde (PCDaS). Gratuita e em nuvem, ela  disponibiliza grande quantidade de microdados e ferramentas de análise para pesquisas no campo da saúde. Busca oferecer aos cientistas brasileiros a infraestrutura para que trabalhem com Ciência de Dados. Isso inclui “um conjunto de estratégias, ferramentas e técnicas para coleta, transformação e análise de dados”. Os pesquisadores têm acesso a  servidores de alta capacidade de processamento, para auxiliar em seus trabalhos. 

“Ninguém é contra a utilização de inteligência artificial, de algoritmos, de dados para melhorar a eficiência do SUS ou aprimorar um diagnóstico. O problema é a qualificação desse uso e a finalidade”, pondera Marcel, que apresenta alguns problemas à adoção de softwares de grandes empresas para sistemas públicos. Contratar a infraestrutura da Amazon, por exemplo, para armazenar dados de usuários do SUS. “Isso vai muito além do perigo de você começar a receber em sua caixa propagandas indesejáveis” enfatiza Fernando Aith, da USP. “O perigo é o uso dessas informações para o mal da pessoa no futuro. Seja no emprego, seja na relação com o Estado, seja na relação com diferentes grupos sociais que se utilizam das redes.” Para o pesquisador, a intimidade e privacidade dos cidadãos são princípios incontornáveis.
Na mesma linha, Ilara defende que toda tecnologia utilizada por sistemas públicos deveria ser, por princípio, de código aberto – transparente para que possa ser compreendida e reproduzida. Ela sustenta que o acervo de dados da população brasileira é um patrimônio público, e não pode ser vendido. E sua extração deveria seguir princípios: “a adoção de uma Política de Acesso Aberto, o que inclui Licença Pública Geral e as licenças Creative Commons em suas diversas modalidades e as de Ciência Aberta, sob a égide da LGPD”.

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