Batalha do rol taxativo expõe limites da saúde-mercadoria

Senado contraria STJ e permite a médicos e pacientes buscar novas terapias. Nova lei também preserva o SUS e obriga planos de saúde a cumprir o que prometem. O que fará Bolsonaro?

Foto: Jefferson Rudy / Agência Senado
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O Senado aprovou o PL 2.033/2022 que revoga o rol taxativo da Agência Nacional de Saúde (ANS) e obriga os planos privados a oferecerem tratamentos para além da lista da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), em 29/8. Abre-se a possibilidade de uma virada política relevante, uma vez que em 3 de março o presidente Bolsonaro, a gosto das grandes empresas de serviços de saúde, sancionara o PL 14.307/22, que oficializava o rol taxativo. 

Sob a premissa de que “rol taxativo mata”, ativistas pelo direito à Saúde comemoraram. “É uma vitória coletiva. A luta das mães (sim, em sua maioria foram mães!) venceu o lobby”, disse Andrea Werner, que luta pelos direitos das pessoas com autismo e um dos rostos mais conhecidos nesta batalha. 

O PL, que agora precisa da sanção presidencial, também reverte decisão de junho do STJ em favor do rol. Vista como uma tragédia pelos especialistas do setor, ela limita o acesso de pacientes a tratamentos alternativos e, supostamente, sem eficácia científica comprovada. Isso dificultaria a provisão de tratamentos de transtornos que ainda não foram plenamente confirmados pela ciência. Afetaria até a autonomia médica em buscar terapias não convencionais, mas que podem ser o fio de esperança de um paciente. Em particular, prejudicaria o acesso a tratamentos de diversas formas de autismo, pois nem sempre há padrões plenamente afirmados na medicina para essa condição.

 “‪A necessidade de prévia manifestação da ANS pode restringir ‪consideravelmente o conjunto de terapias que possuem evidências científicas, uma vez que a ‪agência ainda não tem estrutura para acompanhar adequadamente o ‪desenvolvimento das tecnologias em saúde. ‪É impossível haver pronunciamento da ANS sobre ‪todas as terapias cuja eficácia é atestada pela literatura das ciências da saúde”, explica a justificativa do projeto de lei.

Até o senador Romário, relator do PL e membro da base de apoio do governo Bolsonaro, foi incisivo ao comemorar a aprovação. “Hoje é um dia inesquecível, em que a sociedade brasileira se mobiliza e vence o lobby poderoso dos planos de saúde. O rol taxativo que mata. Matamos o rol taxativo”, disse ele.

Curiosamente, as empresas da chamada saúde suplementar alegam que a aprovação do PL criará incerteza jurídica. Mas os conflitos jurídicos entre prestadores de serviços de saúde e clientes já são praxe. “Todo sistema de saúde, por definição, é um espaço de conflito. Existe uma tensão entre interesses particulares. A oferta necessariamente tem limites, inclusive relacionados com a capacidade econômica do país e da população. Justamente porque existe essa tensão, é preciso que os limites sejam dados e colocados para todos”, definiu o sanitarista José Sestelo, nesta entrevista, quando ainda prevalecia decisão do STJ favorável aos planos privados.  

De toda forma, há sinais de que a decisão é favorável ao SUS, já cercado de enormes desafios. Centenas de milhares de procedimentos médicos adiados durante a pandemia voltarão a ser demandados pelas pessoas e pressionarão o sistema público. E há ainda a covid longa, com sequelas ainda pouco mensuradas pela ciência.

“Não se pode ignorar que a eventual negativa de cobertura frequentemente leva os pacientes a buscarem assistência do SUS, o que pode impactar o já escasso orçamento da saúde pública e a atenção prestada principalmente às pessoas mais desfavorecidas economicamente”, reconhece o relatório oficial do PL.

Resta saber se Bolsonaro acatará a decisão do Senado. “O ideal seria que a gente pudesse promover uma mudança estrutural no sistema e que isso fosse feito não pela via judicial, mas por meio de mecanismos de regulação que fossem universais, efetivos, democráticos, tanto com relação ao que é ou não incorporado como com relação a preços”, resume o sanitarista Sestelo.

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