Rosana Onocko: Os grandes desafios estão à frente

Presidente da Abrasco celebra o fim do obscurantismo e o início da reconstrução do Ministério. Mas ressalta: falta muito para um novo projeto de Saúde Pública – e a ameaça de eliminar o piso constitucional pode pôr tudo a perder

Foto: Abrasco
.

Rosana Onocko-Campos em entrevista a Guilherme Arruda

“Saímos de mares tenebrosos. Estamos agora navegando com alguns rumos definidos, mas também com várias incertezas e talvez algumas tempestades pela frente, para as quais estamos tentando alertar”. A definição bastante marinheira do que foi 2023 para a Saúde no Brasil é de Rosana Onocko-Campos, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e uma das articuladoras da Frente Pela Vida.

A psiquiatra e professora da Unicamp comemora os avanços percebidos desde a chegada de Nísia Trindade ao Ministério da Saúde (MS). Ela destaca a retomada da vacinação e o que define como “resolução dos gargalos urgentes” deixados pela destrutiva gestão bolsonarista, além da formação de uma equipe ministerial de grande qualificação técnica. Rosana também vê com bons olhos o diálogo que o governo retomou com o movimento sanitarista – que, por sua vez, se esforçou para desenvolver uma postura de “apoio crítico”, “solidária à ministra” mas “tentando empurrar as coisas para o lado da justiça social, da reparação e da superação das grandes falhas estruturais da sociedade brasileira”.

Por outro lado, as tempestades no horizonte são mesmo várias. Cada vez mais, será necessário dar passos firmes na execução das políticas mais estruturantes, ainda pr fazer. E ela alerta: há muita preocupação com a possibilidade de não cumprimento do piso orçamentário da Saúde, que dificultaria enormemente a consecução de planos como o desenvolvimento do complexo econômico-industrial da saúde e a ampliação do quadro de trabalhadores da saúde. A força política do Centrão, que não parecer dar tréguas também traz perigos. Mesmo que a atuação do MS seja magistral, a aprovação de leis como o PL do Veneno põe em risco a implementação dos princípios da Saúde Única.

Em sua área, a saúde mental, Rosana chama atenção ainda para a necessidade de ações mais firmes em relação às comunidades terapêuticas, que ameaçam o comprometimento do Brasil com a reforma psiquiátrica.

Para o ano que vem, as batalhas serão muitas. A professora celebra que foi possível construir “muitos consensos nos últimos anos” no movimento sanitarista. Assim como foi em 2023, ele será um ator decisivo na luta dos próximos anos em defesa da vida dos brasileiros – e da formulação de novos caminhos para a Saúde.

Fique com a íntegra da entrevista de Outra Saúde com Rosana Onocko-Campos, professora da Unicamp, presidente da Abrasco e membro da operativa da Frente Pela Vida.


2023 foi um ano mais longo que o normal: politicamente, de certa forma, ele começou ainda em novembro de 2022, na composição dos Grupos de Trabalho da transição de governo e no embate em torno do orçamento. Como você avalia que esses trabalhos afetaram o 2023 da Saúde?

Naquele momento, houve uma série de decisões e medidas que garantiram a sobrevida da Saúde ao longo deste ano. Se não tivesse acontecido aquele movimento com a PEC da Transição para garantir a verba extra, acho que estaríamos em muito maus lençóis. Depois, tivemos um início de ano marcado pela tentativa de golpe, que foi muito dramática para todos nós. Por outro lado, a montagem da equipe, particularmente no caso do Ministério da Saúde, achamos muito boa. Foi respeitada a necessidade de ter um componente técnico-político, e penso que essa também foi uma coisa boa do início do ano.

Como você avalia o primeiro ano de Nísia Trindade na direção do Ministério da Saúde? Quais foram os pontos altos e quais foram os limites?

Eu acho que os pontos altos têm a ver com a trajetória da ministra, com sua formação humanista de uma socióloga que já havia comandado a Fiocruz. Me parece que tem ali um trânsito, um diálogo e uma compreensão das atividades científicas muito consolidado que vem dela mesma, da sua história. É uma boa gestora, no sentido de saber dialogar, ver as pessoas, escutá-las. Desse ponto de vista, ela é um show de ministra. Eu brincava com ela que é só ela chegar nos lugares que as pessoas já começam a bater muitas palmas – elas gostam de encontrá-la. É uma ministra que tem essa empatia com o setor. Isso é muito importante porque a gente vive tempos muito difíceis, então são qualidades que sempre abrem portas. 

A montagem do Ministério, como eu estava te falando, teve um aspecto de qualificação técnica muito importante, mas acho que tem aí também algumas marcas que são muito a cara da trajetória da ministra e da própria Fiocruz. Por exemplo, a ênfase e o empenho colocados no Complexo Econômico Industrial da Saúde, que estão claros. O compromisso dela com as questões que têm a ver com vacinas, como o aumento das campanhas de imunização e da produção local, também é muito claro. 

Além disso, existe um compromisso que tem a ver com a questão humanitária, humanista e empática dela, que é o de resolver os gargalos urgentes. O que eu estou colocando nessa cota dos gargalos urgentes? O aumento do repasse para as Santas Casas e para as especialidades, para combater as filas de cirurgias eletivas que tinham se amontoado na pandemia – um problema que já vinha de antes, mas se agravou na pandemia. Também o aumento do programa Mais Médicos, em que se deu uma solução rápida para a decisão que precisava ser tomada. 

Também pudemos ver, ao longo deste ano, alguns passos importantes de políticas estruturantes. Se anuncia, pela primeira vez, uma política para as especialidades médicas e uma política de reinversão, vamos dizer assim: vai haver um aumento real do investimento na atenção primária, o valor repassado por equipe vai aumentar. Eu acho que esses são anúncios importantes, muito relevantes, porém insuficientes para serem os únicos que vão acontecer nos próximos três anos.

Que dificuldades e embates a Saúde deve enfrentar no próximo período?

Para falar do que me preocupa daqui pra frente, vou do mais genérico ao mais específico.

Primeiro, o que mais me preocupa, no âmbito geral, é como vai se articular a luta do Ministério da Saúde junto a outros ministérios na defesa do que a gente chama de saúde única, a One Health, nesse contexto em que a gente está vendo passar no Congresso o PL do Veneno e outros retrocessos em relação a demarcação das terras indígenas e a preservação ambiental. Não dá mais para pensar na saúde, especialmente na prevenção, sem pensar em meio ambiente e produção agropecuária. Acho que o Ministério vai precisar ser muito contundente e a ministra vai precisar aproveitar o bom diálogo direto que ela tem com o Presidente para convencê-lo de quais são os vetos em que vale a pena insistir. Mesmo que esses vetos continuem a ser derrubados no Congresso, algumas dessas causas precisam ser judicializadas de novo, porque esse Congresso está hipotecando o futuro do Brasil – não o nosso, o dos nossos netos. É um drama.

Em relação ao SUS, outro ponto que nos preocupa é se haverá ou não o cumprimento do piso orçamentário. Neste ano houve tentativas, vindas de dentro do próprio governo, de dizer que não tem que respeitar o piso. Isso nos preocupa bastante no movimento sanitário. E, por dentro do próprio SUS, gostaríamos muito de ver alguns passos dados nos próximos três anos em políticas estruturantes, perenes, em relação a três grandes eixos.

Primeiro, o do financiamento, ou seja, como serão feitos os seus repasses, em que quantidade, com que cálculo. 

Depois, o da regionalização, uma pauta que, por falta de enfrentamento estruturante, está sendo deixada à vontade dos estados e das regiões, o que tem resultado em consórcios e privatizações das mais variadas em diversos lugares do país. A gente acha que é necessário um arcabouço jurídico e legal que permita o fortalecimento do componente público do SUS, mas isso tem que passar pelas regiões. Eu brinco que, hoje, as regiões são a rainha da Inglaterra. Elas têm que parar de ser a rainha da Inglaterra, precisam poder se governar, ter autonomia financeira e administrativa, decidir o destino de recursos. Esse é um gargalo fundamental do SUS hoje. 

Por fim, outra questão que a gente tem tentado problematizar é a da contratação permanente. O programa Mais Médicos se mostrou útil e competente para cobrir um grande déficit, mas seria insuficiente para estruturar um SUS. Nenhum país do planeta que tem um sistema de saúde universal e se dispôs a financiar a oferta de serviços conseguiu se estruturar sem ter uma política de contratação, pensando em cargos, salários e carreiras. Achamos que esse é um tema que tem que começar a ser enfrentado. Tem várias propostas possíveis. A gente pode ter posições pessoais de qual é melhor, mudar um detalhe aqui ou ali, mas o que não dá para negligenciar é que tem que ter algum recurso. Hoje em dia não tem nenhum. Nenhum. Cada município faz o que dá na telha. Com isso, as Organizações Sociais (OSs) precarizaram o trabalho de uma forma lastimável e isso tem piorado a qualidade dos resultados do SUS. 

Isso das OSs tem que ser dito, porque se não parece que nós do movimento sanitarista somos uns dinossauros que ainda querem carreiras públicas, como se a gente fosse “um bando de stalinistas que caiu do caminhão do século XX”. Mas não é isso: há razões de eficácia e efetividade do sistema. Quando você não consegue sustentar a educação permanente em saúde porque todo ano mudam as pessoas, quando os vínculos são ruins, quando os trabalhadores são explorados de forma a entrar em burnout e em sofrimento (como a gente tem visto muito nos trabalhadores da saúde), se percebe que discutir carreira e contratação não é uma “frescura esquerdista”. É uma condição necessária para o sistema funcionar.

E quais você avalia serem as políticas com mais potencial de avançar em 2024?

Eu acho que há alguns lampejos de esperança, vou chamar assim. Por exemplo, há um movimento feito pela Secretaria da Gestão do Trabalho, a SGTES, de incentivar programas de capacitação da Saúde da Família, mestrados profissionais interdisciplinares e outras formações. Acho que tudo o que foi acumulado nessa Secretaria ao longo de 2023 vai desabrochar no ano que vem. Não é pouco, porque a gente passou seis anos sem investimentos em formação e capacitação. Isso é muito importante. 

Outro dia eu falei sobre isso na Conferência Nacional de Saúde Mental: tem também algumas estratégias que têm que ser retomadas, como a de humanização de hospitais e a discussão das supervisões clínico-institucionais no campo das redes de atenção psicossocial. São espaços de trabalho onde o sofrimento psíquico do trabalhador se transforma rapidamente em burocratização, e burocratização equivale a barreira para os usuários. É preciso compreender que a burocratização é uma doença institucional, mas que tem tratamento. O tratamento é dar o suporte necessário em termos de formação, gestão e supervisão clínico-institucional para os trabalhadores. Se não, vamos abrir mão de um recurso poderosíssimo que impacta diretamente no que chamo de efetividade do sistema: a questão de como nossos pacientes são recebidos, como vai ser o olho no olho que essa pessoa que vem sofrendo vai receber no centro de saúde, no centro de atenção psicossocial ou em um ambulatório qualquer.

Especificamente no âmbito da saúde mental, que balanço já se pode trazer das ações do governo nesse primeiro ano?

Eu acho que foi feito um esforço importante para sair da fila do atraso. Há seis anos não se habilitavam novos serviços de saúde mental, e a gente viveu no último governo uma tentativa explícita de voltar para medidas de internação, de hospitalização compulsória. 

Por outro lado, tem um entrave gravíssimo com as comunidades terapêuticas, que ninguém põe o sino no gato, né? Elas foram tiradas da Saúde, mas por fora da Saúde também não se faz nada e acaba que vimos nessa semana essa notícia horrorosa da menina que foi morta em uma comunidade terapêutica. Nem esse tipo de horrores são suficientes para que se possa colocar limite a essa voracidade que vem de certos setores políticos do Centrão e das igrejas. 

Esse é um ponto em que a Saúde faz um link com o político – o que traz muita preocupação com o cenário da política brasileiro. Não dá para pensar também que é uma coisa que o Ministério da Saúde ou do Desenvolvimento Social possam fazer sozinhos. É uma discussão que a sociedade brasileira não deveria mais negligenciar. Terá que haver em algum momento alguma reação da sociedade a esse Congresso tão retrógrado.

Enquanto presidente da Abrasco e membro da operativa da Frente pela Vida, qual que você avalia que foi o papel que o movimento sanitarista cumpriu nesses embates políticos da saúde durante o ano?

Olha, eu sou suspeita para falar. Mas fizemos foi um grande esforço para sustentar o que eu vou chamar de um apoio crítico ao governo.

A gente entende, claro, que saímos de mares tenebrosos. Estamos agora navegando com alguns rumos definidos, mas também com várias incertezas e talvez algumas tempestades pela frente – que a gente está vislumbrando e tentando alertar. Isso tudo em um contexto em que a situação da governabilidade é preocupante. Acho que o movimento tem tido responsabilidade. 

Recentemente, na plenária da Frente pela Vida, avaliamos que demos consequência neste ano ao movimento de nos aproximar mais do campo parlamentar, que já tínhamos iniciado depois da eleição, no final do ano passado. Reforçamos a Frente Parlamentar pela Saúde, por exemplo. Esse é um movimento valioso do movimento sanitarista. Nós precisamos que o Congresso volte a falar dos verdadeiros problemas das pessoas. Às vezes parece que  os parlamentares moram dentro de uma garrafa térmica, porque não tem sensibilidade nenhuma, as pautas que têm aparecido são totalmente corporativas e descoladas dos problemas reais da população.

Um outro movimento importante foi o de percorrer alguns ministérios para nos manifestar enquanto Frente Pela Vida. No sentido dessa nossa defesa da vida, fomos no Ministério da Justiça pedir medidas concretas para interromper a mortandade de jovens negros e periféricos e para que houvesse ações para promover o desencarceramento. Nesse âmbito, a discussão da legalização ou descriminalização do porte de pequenas quantidades de drogas é fundamental. É uma causa que ou a sociedade brasileira debate ou ela não vai ter futuro, porque não é possível crescer e ser o país do futuro – todo esse discurso que o Presidente emplaca muito bem para fora – quando a gente lê notícias como a de que metade dos jovens que estão nos 10% de famílias mais pobres do Brasil não estudam e nem trabalham. Ou quando a gente vê que as curvas demográficas são alteradas pela mortandade e pelo assassinato dos jovens, sobretudo os meninos, negros e periféricos. Ou o Brasil interrompe isso, ou não haverá futuro. 

O que é preocupante é ver que o Congresso finge que esse tipo de coisa não é com ele. Nosso trabalho como movimentos vai ser sempre de ficar alertando para essas coisas, jogar o holofote nesses temas que ninguém quer ver, discutindo essas questões, pedindo esforços. É uma longa luta, mas não podemos esmorecer.

Principalmente nos últimos meses, ficou perceptível que a disputa em torno das verbas – não só na Saúde – não se resumem a uma briga do núcleo “de esquerda” do governo versus a ala do Centrão. Está claro que a questão do direcionamento dos recursos federais divide os próprios ministros e líderes do PT e dos outros partidos dessa fração mais progressista do governo. Como você observa essa questão das disputas pelo orçamento na área da Saúde? Daqui para frente, quais são as perspectivas?

Eu acredito que a política se faz fazendo. Quero dizer que vai depender de nós, como movimentos sociais e sociedade civil organizada, questionar ou empurrar as decisões. Eu não me surpreendo [com as disputas] porque não esperava um governo monolítico. Também não acredito que o PT seja um partido em que todo mundo tem a mesma visão. Nem o partido do presidente é e nem a frente [que forma o governo] o será, porque não foi montada assim. Esses grupos diferentes vão ocupando diferentes pedaços da máquina estatal e todo mundo opera, né? A política não para de operar. Quando ninguém opera, algum outro ocupa o lugar. 

Então, é um campo de disputa. É uma disputa muito acirrada em uma conjuntura difícil. É preciso ver até onde a gente tem que ser intransigente com algumas questões, para que elas não sejam passadas para trás, e até onde também não se pode brincar com a governabilidade. Aí é uma questão de leituras e posições de ênfase. Tem pessoas que valorizam mais a governabilidade. Outras vão dizer que não se constrói governabilidade sem justiça social. E essa é uma fronteira móvel e sempre tensa. Não é possível prever a priori o que vai acontecer. 

O que eu sinto, tanto em nós da Abrasco quanto em nossos parceiros do movimento sanitário na Frente pela Vida, é que estamos todos muito juntos e temos muito claro  que queremos empurrar as coisas para o lado da justiça social, da reparação e da superação das grandes mazelas estruturais da sociedade brasileira. Quanto sucesso a gente vai ter? Não sei. 

A única coisa que me dá bastante esperança é que a gente tem conseguido voltar a ter consensos nos últimos anos. O movimento sanitário já foi muito mais dividido, como, por exemplo, nos governos Lula anteriores a esse. Acho que isso fortalece a nós e também ao atual ministério – sobre quem temos nos manifestado sempre de forma muito solidária em relação à posição da ministra. Esse é o nosso ponto de esperança.

Leia Também: