Privatização do saneamento, ameaça à Saúde

Avança, em diversos estados, a entrega da água e esgotos para corporações privadas. Feito com recursos públicos, a partir de lei de Bolsonaro, processo tende a tornar mais distante a universalização a um serviço sanitário indispensável

Créditos: Instituto Trata Brasil
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Novos dados do Censo Demográfico de 2022, divulgados na última sexta (22/2), mostram um salto no acesso à água e esgoto no Brasil. Se, em 2010, 64,5% das moradias dispunham de esgotamento adequado, hoje esse número atinge 75,7%. Outros 96,9% recebem abastecimento de água adequado, ou seja, não precisam recorrer a carros-pipa, a água da chuva e a rios e cursos de água pouco profundos. É preciso, agora, refletir sobre o que esses números revelam e, principalmente, o que escondem – e por que é urgente que o Brasil alcance os 100%?

Antes de tudo, é importante celebrar o avanço e compreender que ele só foi possível graças ao investimento público intenso. “É preciso lembrar que, nos governos populares de Lula e Dilma, houve uma prioridade muito grande em relação a obras de saneamento, que alcançou muitas cidades”, afirma Ion de Andrade, sanitarista, professor e membro do BrCidades, uma rede de pesquisadores e ativistas em favor da Reforma Urbana. 

“Os dados confirmam uma tendência que já estava sendo observada há um tempo”, observa Ricardo Moretti, professor visitante da UnB e integrante do Ondas (Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento). “A ONU recentemente incluiu o Brasil entre os países que mais avançaram no atendimento de esgoto nos últimos anos”, frisa ele, apesar de discursos de que o país vive uma “tragédia total”. 

Mas os avanços podem ser severamente limitados, se o modelo de saneamento não for alterado, alerta Moretti. Os novos dados do IBGE ilustram bem os motivos. Quando se analisa onde estão as residências onde há esgoto e fornecimento de água precários, logo se percebe: “exatamente onde a população tem pouco dinheiro”, em suas palavras. Isso porque, segundo ele, desde os anos 1970, durante o período da ditadura militar, “a ótica financeira passou a ser a tônica principal.”

Moretti explica que, nos interiores do Brasil, o fornecimento do serviço de água e esgotamento sanitário é pouco rentável. “Porque na área rural é difícil levar água, é caro, não é um negócio financeiramente apetitoso. Em qualquer lugar que tenha baixa densidade é assim.” O urbanista explica que esses locais não são necessariamente os mais pobres: em uma aldeia indígena isolada ou uma cidade pequena do interior, as pessoas não são miseráveis – apenas circula menos dinheiro ali.

Mas, não há dúvidas, a lógica financeira “obtusa, que esquece o lado da saúde pública” também deixa de fora aqueles que estão às margens das cidades, em favelas e em comunidades muito vulneráveis. Ion concorda e vai além: “o saneamento só vai gerar efeitos benéficos para todos quando alcançar cobertura universal”. E há uma questão técnica aí, explica o sanitarista: “É preciso de muito poucas unidades em que o esgoto não é tratado para contaminar a comunidade como um todo. Então, quando observamos o número de 49 milhões de pessoas sem condições adequadas de esgotamento sanitário, isso significa que há um número muito maior de residências contaminadas”.

Águas cinzas, provenientes de cozinha, lavanderia e banho, lançadas nas ruas, com riscos para a saúda pública, em locais onde está disponível a rede pública de esgotamento sanitário, mas não houve a conexão completa com a rede, através das ligações domiciliares, no Bairro do Sol Nascente 3, Distrito Federal. Foto Ricardo Moretti

O que pode provocar uma proliferação de doenças transmitidas pelas fezes, como as disenterias bacterianas e a hepatite A, cita Ion. Há muitas enfermidades originárias da falta de água limpa, como gastroenterite, cólera, verminoses, febre tifoide, arboviroses, leptospirose, entre outras. Por isso, há um cálculo bastante corrente que diz respeito ao benefício trazido à saúde pública após investir em saneamento. Segundo dados da OMS, a cada dólar dispendido na área, economiza-se 4,3 dólares em saúde.

Isso traz de volta o argumento de Moretti contra a lógica financeira do sistema. E há de se adicionar outro agravante: as privatizações das empresas estaduais de saneamento básico dos últimos anos – com destaque para a da Sabesp pelo governo paulista de Tarcísio de Freitas. Poderão empresas privadas dar conta de alcançar populações que carecem de infraestrutura básica em suas residências?

A sanha privatizadora foi recentemente respaldada pelo marco legal do saneamento básico, aprovado pelo governo Bolsonaro em plena pandemia, em 2020. O pretexto era atrair investimentos do setor privado para alcançar a meta de 99% da população com acesso à água potável e 90% de acesso à coleta de esgoto com tratamento até 2033. A privatização já havia sido tentada, com muito afinco, por Michel Temer — que, no entanto, terminou travado por sua impopularidade obscena. 

Afinal, privatizar é solução? Moretti lista três argumentos falaciosos a favor de entregar a água e esgoto na mão de grandes corporações. Primeiro: a iniciativa privada seria mais eficiente. “Há experiências que mostram o contrário em Tocantins e Manaus, por exemplo. Em alguns lugares, o serviço simplesmente não foi feito. Passados mais de 20 anos da privatização em Manaus, apenas 12% do esgoto é tratado”, afirma. Outro exemplo vem da Inglaterra, onde o setor das empresas privadas de água foi responsável por poluição em larga escala e hoje está altamente endividado

Outra mentira, segundo Moretti, é a de que as empresas públicas não investem o suficiente. Os dados do IBGE estão aí para provar justamente o contrário – e se os avanços não foram maiores, é porque o serviço não é garantido em locais onde não se pode fazer um bom negócio. Tratar esgoto, por exemplo, não é interessante para as empresas, porque elas são pagas apenas para fazer a coleta. Esse fato demonstra também que há uma grande falha na regulação feita pelo Estado.

O terceiro argumento é o de que a privatização faria entrar recursos para que o governo pudesse investir de volta no saneamento. Mas Moretti destaca que essa é outra grande e ardilosa mentira, dados os termos em que é feita a outorga onerosa. “Os contratos de concessão geralmente não têm qualquer cláusula que garanta que esse dinheiro voltará ao saneamento”, alerta ele. “Em geral, esse recurso tem ido para tapar os buracos do cofre dos governadores, ou para fazer do dinheiro o que render mais votos na próxima eleição.” E pior: quem empresta dinheiro para as empresas pagarem essa outorga onerosa é o BNDES – privatização financiada com dinheiro público.

Há ainda mais um componente que agrava a situação. Trata-se da disparidade do acesso a água e esgoto de acordo com a raça/cor. Esses são outros dados que saltam aos olhos no Censo 2022. “Um aspecto alarmante destacado pelo levantamento é a disparidade entre grupos raciais. Entre os pretos e pardos, que compõem mais da metade da população brasileira, o percentual de pessoas sem acesso adequado ao esgoto chega a alarmantes 68,6%. Enquanto isso, entre os brancos, esse número é de 29,5%”, nota Moretti. No abastecimento de água, a desigualdade é igualmente gritante: os pretos e pardos representam 72% da população sem acesso adequado à água, em comparação com os brancos, que correspondem a 24%.

“Precisamos dar um basta”, impacienta-se Ion. “O problema não é só de saneamento, ou das questões da moradia, ou da água. Estamos confrontados com um problema de exclusão social, que deveria ir para a ordem do dia.” Para ele, nenhum outro número é satisfatório, do ponto de vista do acesso ao saneamento, que não seja 100%.

“Nas áreas periféricas, há más condições de saneamento, maiores índices de violência, menor acesso aos equipamentos de cultura, esporte, lazer. Portanto, estamos diante de uma espécie de subdesenvolvimento crônico, que é a própria expressão desse racismo estrutural”, salienta o sanitarista. E conclui: “Não dá mais para esperar. Eu sei que há problemas de recursos que estão sendo disputados. Mas o governo deveria entender que é preciso dar um basta”.

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