A urgência de taxar os ultraprocessados

Reforma Tributária prevê imposto para desincentivar seu consumo, ligado a 57 mil mortes anuais – mas indústria quer excluí-los da lei. Para especialistas e ex-ministros, tirá-los da mesa dos brasileiros é crucial para a Saúde Pública

Foto: UFRGS
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Em dezembro do ano passado, a Reforma Tributária proposta pelo governo foi aprovada com um dispositivo muito importante: a criação de um imposto seletivo sobre produtos que fazem mal à saúde e ao meio ambiente, desincentivando seu consumo. Contudo, os detalhes de sua implementação ainda não estão definidos – resta ainda especificar quais serão os produtos taxados, a serem listados em uma lei complementar que regulamentará o novo tributo.

Os alimentos ultraprocessados são alguns dos principais produtos na mira do futuro imposto. Naturalmente, as indústrias que os fabricam já se movimentam nos bastidores contra a inclusão de suas mercadorias no texto da legislação. Em última instância, a decisão de tributá-los ou não estará nas mãos do Ministério da Fazenda, responsável por formular o projeto de lei complementar a ser apresentado, e do Congresso Nacional, que deliberará sobre sua aprovação.

Por sua vez, pesquisadores, ativistas e nomes de destaque das áreas da Saúde e Segurança Alimentar articulam-se para que essa chance de defender o bem-estar dos brasileiros não seja desperdiçada. Lançado na semana passada por essa articulação, o Manifesto por uma reforma tributária saudável defende que “os produtos ultraprocessados sejam alvo do imposto seletivo, ao lado dos cigarros e das bebidas alcoólicas”. Eles argumentam que “diversos estudos mostram que a tributação é a política pública mais eficaz para desestimular o consumo de produtos nocivos à saúde”. Um de seus signatários, o sanitarista e fundador da Anvisa Gonzalo Vecina, opinou a Outra Saúde que “o caminho é taxar de maneira a gerar receitas que servirão para apoiar políticas públicas”.

Dois ex-ministros da Saúde também participam da ação. Um deles, José Gomes Temporão, afirmou a este boletim que “essa questão é absolutamente central para o futuro das novas gerações, já que se refere à prevenção de inúmeras doenças” crônicas causadas pelos ultraprocessados. No mesmo sentido, Arthur Chioro, responsável pela pasta quando da publicação do Guia Alimentar para a População Brasileira, considera que “sem essa medida, não conseguiremos enfrentar o peso dessas doenças para o Sistema Único de Saúde”.

Que práticas alimentares queremos incentivar?

Não é algo novo que os fabricantes de produtos nocivos à saúde façam uso de diversas manobras para facilitar sua venda em massa. Uma delas é a compra de cobertura científica positiva: afinal, com alguns milhões e uns poucos pesquisadores cúmplices, é possível difundir de forma enganosa, por exemplo, que o álcool é benéfico para o coração e os alimentos ultraprocessados são uma solução para o problema da fome. 

Mas a principal tática empregada é a da busca por benefícios fiscais do Estado. Hoje, na prática, a comida industrializada é mais favorecida pela estrutura tributária brasileira que a natural, pagando menos impostos. Essa distorção é uma das frentes que a mobilização pela taxação pelos ultraprocessados busca enfrentar.

É uma verdadeira contradição, quando se consideram os efeitos da facilidade de compra desses alimentos sobre o bem-estar da população. “57 mil mortes por ano são atribuídas ao consumo de ultraprocessados e, mesmo assim, esses produtos ainda recebem incentivos fiscais”, como alerta a campanha Doce Veneno, promovida pela ACT Promoção de Saúde para dar impulso à luta pela taxação de alimentos como “salsichas, salgadinhos, refrigerantes, biscoitos recheados”.

Como define o ex-ministro Arthur Chioro, a atual estrutura dos impostos sobre os alimentos “faz a alegria daqueles que exploram a saúde pública através de uma indústria que coloca no mercado produtos nocivos à saúde”.

Para enfrentar a questão e influir na lei complementar que regulamentará os novos impostos, a campanha defende propostas como as seguintes: incluir os produtos ultraprocessados no imposto seletivo; proibir subsídios e benefícios fiscais às indústrias de produtos nocivos; e criar um tratamento especial para alimentos saudáveis, com alíquota menor para facilitar o acesso.

A mudança do prato dos brasileiros, sintetiza José Gomes Temporão, deve partir da ideia de que “alimento de boa qualidade tem que ser barato e alimento que faz mal à saúde tem que ser muito caro”.

Ciência e Saúde também apoiam taxação

O apoio à introdução do imposto seletivo não se restringe às considerações políticas, de confrontação com uma indústria que causa muitos danos e retorna pouco à sociedade. Diversos elementos técnicos sustentam essa linha de raciocínio, explicam seus defensores.

Um deles é o dado anteriormente citado sobre os 57 mil óbitos anuais em decorrência do consumo de alimentos ultraprocessados. A cifra é oriunda de uma pesquisa do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens), grupo de estudos da Faculdade de Saúde Pública da USP responsável por propor a categorização dos alimentos de acordo com seu nível de processamento industrial – referência em todo o mundo. 

O número é expressivo – e torna claro o gigantesco impacto desses alimentos sobre milhares de vidas. Essas mortes, em sua maioria, são ligadas às doenças crônicas não-transmissíveis, como a diabetes, o câncer e os problemas cardíacos, que o consumo da comida industrializada tornaria o corpo mais propenso a desenvolver, segundo o Nupens.

Em artigo escrito junto de Temporão e da economista Monica de Bolle, o coordenador do Nupens Carlos Monteiro ressalta que diversos países que tomaram a iniciativa de taxar ultraprocessados ou bebidas açucaradas, como o México e a França, tiveram êxito em reduzir seu consumo e ampliar o financiamento de políticas públicas de saúde.

O próprio Guia Alimentar para a População Brasileira, mundialmente prestigiado conjunto de diretrizes elaborado pelo Ministério da Saúde (MS) junto ao Nupens e publicado em 2014, já orienta que a alimentação dos brasileiros seja baseada principalmente nos alimentos in natura e minimamente processados – e que o Estado deve garantir que isso seja acessível para a população.

Com o Guia, define o ex-ministro Chioro, “o Brasil ofereceu ao mundo uma ruptura, um novo paradigma em termos de alimentação saudável que foi traduzido para vários idiomas e se tornou referência para a OMS e a FAO”. A reorganização da taxação de alimentos, barateando a comida boa e encarecendo a que não é saudável, estaria em pleno alinhamento com suas diretrizes.

Mais recentemente, uma nota técnica de junho do ano passado somou a atual condução do MS à lista de apoiadores da adoção de “tributos específicos para produtos nocivos à saúde”, trazendo sólida fundamentação científica.

O documento reúne de forma abrangente as evidências de que “o tabagismo, o consumo de bebidas alcoólicas e alimentação inadequada são os principais fatores de risco para o desenvolvimento” das doenças crônicas não-transmissíveis, que já afetam mais de 50% da população brasileira.

Para reduzir seu consumo, mostrariam as experiências internacionais, o caminho mais eficaz é tributá-los. E, diferente do que alega a indústria, esse imposto não seria regressivo, afetando principalmente os mais pobres. “Seu impacto líquido é progressivo”, diz a nota técnica, já que os mais vulneráveis tenderiam a deixar de consumi-los e “as receitas arrecadadas por meio desses impostos podem ser direcionadas para atender às necessidades da população com menor nível socioeconômico”.

Na visão do Ministério, a medida também contribuiria para a “correção das externalidades negativas geradas” pelos produtos nocivos à saúde. Em termos mais diretos, isso significa que o imposto serviria de contrapeso aos enormes gastos públicos causados por eles. De acordo com o Instituto Nacional do Câncer (INCA), o tabagismo traz um prejuízo anual de R$50,2 bilhões ao SUS, por exemplo. Outro estudo do instituto atribui um custo de R$1,7 bilhão ao SUS só com o tratamento de cânceres ligados ao consumo de álcool só em 2018. Ainda não há estimativas tão consolidadas sobre o impacto financeiro dos ultraprocessados, mas cerca de 50% da população possui ao menos uma DNCT diagnosticada — e elas vitimam mais de 700 mil pessoas por ano, de acordo com dados do SUS.

Para Gonzalo Vecina, a introdução do novo imposto é essencial, mas deve ser acompanhada do impulsionamento de campanhas de esclarecimento da sociedade. “Os alimentos ultraprocessados devem ser taxados e expostos de maneira que os cidadãos tenham plena consciência de que consumi-los é um comportamento de risco”, defende o sanitarista.

Sinais trocados do Ministério da Fazenda

Como explicam os defensores da taxação da comida industrializada, o próximo passo para a introdução do Imposto Seletivo é a apresentação do projeto de lei que o regulamenta, uma tarefa do Ministério da Fazenda.

Apesar disso, três meses se passaram desde a aprovação da Reforma Tributária e o projeto não surgiu. Na política, não existe espaço vazio. Na falta de um PL vindo do governo, a Frente Parlamentar do Empreendedorismo, ligada à indústria, apresentou nesta segunda-feira (18/3) uma proposta paralela, que excluiria vários produtos e reduziria muito o alcance e a arrecadação da taxa.

Pior: surgem informações de que a equipe da Fazenda teme que o imposto cause problemas para os cofres da União. É indício de um descompasso com a motivação real do tributo – a defesa da saúde dos brasileiros, e não a arrecadação em abstrato.

O Manifesto lembra que o país se vê diante de uma “oportunidade de avançar significativamente na garantia do direito à alimentação adequada e saudável ao implementar o imposto seletivo para produtos ultraprocessados”. Nas próximas semanas, o Ministério de Fernando Haddad e o Congresso Nacional terão a oportunidade de demonstrar se entenderam a urgência do momento histórico.

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