Hora de acelerar a discussão sobre licença-paternidade

Brasil oferece apenas 5 dias aos pais de recém-nascidos. Ampliar esse período faria bem não somente à igualdade de gênero no mercado de trabalho, mas também permitiria ao país avançar na divisão justa do trabalho de cuidado

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Camila Bruzzi e Caroline Burle em entrevista a Gabriel Brito

Em 1988, a Constituição Federal apresentou uma proposta então inovadora de conceder 8 dias de licença para pais de recém-nascidos. Quando promulgada, a Carta Magna acabou por garantir 5 dias. Anos depois, o serviço público avançou na licença-maternidade e ampliou seu prazo de 4 para 6 meses, o que até hoje não se verifica no setor privado – para não dizer no mercado de trabalho informal. Essa discrepância de período de afastamento entre homens e mulheres para cuidar de seus filhos faz sentido?

Ao longo das últimas décadas, discussões sobre direitos das mulheres avançaram mundo afora e, em novembro de 2023, a Procuradora Geral da República unificou diversas ações que corriam pelos estados a fim de regular a questão. Para isso, o STF finalmente instou o Congresso a apresentar um projeto de lei, num prazo de até 18 meses, que verse sobre a ampliação da licença paternidade no Brasil.

Entre tantas organizações e militâncias pelos direitos das mulheres, nas instituições e sociedade civil, aparece a Coalizão Licença-Paternidade (CoPai), formada por advogadas, psicólogos, dentre outros profissionais. Em 2023, o grupo lançou a campanha “5 dias é pouco”. Ao Outra Saúde, Camila Bruzzi e Caroline Burle explicam a história deste coletivo e as razões que devem fazer o Brasil avançar em mais esta pauta de igualdade de gênero e divisão justa do trabalho reprodutivo.

“Cerca de 115 países ao redor do mundo disponibilizam o benefício da licença-paternidade, variando em termos de extensão e duração. É possível observar os avanços em países que adotaram diversas medidas pensando em proporcionar uma estrutura mais igualitária entre homens e mulheres”, explicam elas, que responderam coletivamente à entrevista publicada abaixo.

Na conversa, elas contextualizam a diversidade de patamares em que tal discussão se encontra pelo mundo e mostram as vantagens dos países que mais avançaram na licença paternidade. Garantir melhores condições de acesso ao mercado de trabalho para a mulher é a expressão mais evidente desta luta, mas o grupo defende que os benefícios vão bem além e oferecem melhor qualidade de vida para qualquer família que conte com uma presença maior do pai nos cuidados da criança.

“Pesquisadores Saxbe e Cárdenas mostram por estudos como a licença paternidade ajuda o cérebro dos pais a se adaptar à paternidade”, ensinam elas. “As equipes de pesquisa compararam exames cerebrais de pais de primeira viagem da Califórnia e da Espanha e verificou-se que ambos os grupos apresentaram mudança, porém, os pais na Espanha apresentaram mudanças mais significativas nas regiões que preparam o cérebro para as exigências cognitivas e emocionais da parentalidade. Uma possível explicação: o acesso generalizado a políticas generosas de licença de paternidade permite que os pais espanhóis passem mais tempo com os seus recém-nascidos”, afirmam.

Para além de efeitos mais visíveis na vida adulta, como maior equidade e segurança econômica da mulher, a mudança no ordenamento legal também cumpriria um papel de promover demandas de um mundo que já está claramente a instituir novas culturas de reprodução social.

“A ideia é dar condições para que homens e mulheres possam dividir os cuidados com os filhos desde o primeiro dia de vida — afinal é muito difícil quebrar o padrão depois que a mulher já tenha assumido a maior parte dos trabalhos. A partir daqui conseguimos ressignificar mensagens transmitidas de geração em geração”, explicam.

Camila Bruzzi e Caroline Burle também representam nesta entrevista uma reflexão que vai além do chamado “identitarismo”, ideia geralmente mal explicada por si só, e conectam esta questão com temas estruturantes de nossas relações sociais. Para elas, uma mudança profunda na divisão do trabalho do cuidado não poderia passar ao largo de questões trabalhistas, sociais, de saúde e assistência social. Ou seja, o tema tem raiz estruturante.

“A ampliação da licença-paternidade exige mudanças nas leis trabalhistas para garantir que os pais tenham direito a uma licença remunerada mais longa, protegendo seus empregos durante esse período. É importante ter políticas de assistência social para apoiar famílias durante esse período, especialmente aquelas com menor capacidade financeira e também pode ter implicações nas políticas educacionais, incentivando uma maior participação dos pais na educação e no cuidado dos filhos desde os primeiros anos de vida, o que pode influenciar positivamente o desenvolvimento das crianças. Além disso, as políticas de saúde, tanto do cuidado da saúde paterna, materna quanto da criança, são muito importantes”, emumeram.

Confira a entrevista completa.

Como vocês analisam a decisão do STF que concedeu 180 dias para o Congresso começar a legislar sobre essa questão? Qual o histórico desta pauta no Brasil?

O papel do STF inclui não apenas interpretar a Constituição, mas também proteger os direitos fundamentais e garantir o funcionamento adequado das instituições democráticas. Portanto, decisões desse tipo são tomadas com base nessas responsabilidades. A licença-paternidade foi introduzida pela Constituição de 1988, tornando-se um item fundamental no avanço e consolidação das leis trabalhistas.

Durante a Constituinte, o deputado federal Alceni Guerra sugeriu 8 dias, sendo aprovados 5 dias, temporariamente, para que houvesse uma devida regulamentação. No entanto, a licença nunca foi devidamente regulamentada, resultando em uma lacuna legal de 36 anos. A partir desse histórico, é possível visualizar como a decisão do STF é determinante para evoluirmos na pauta. É gratificante ver um direito que antes não era debatido tomar tal proporção.

Há alguma receptividade na classe política ou o que debatemos aqui ainda foi pouco reconhecido pelos principais atores institucionais do país?

Há diversos projetos de lei sobre a regulamentação da licença-paternidade no Congresso. Porém, nenhum foi adiante. Por isso, em 2012, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS) provocou o STF sobre a omissão do Congresso Nacional no que tange à regulamentação da licença-paternidade. Além disso, no início de 2023 a Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados criou o Grupo de Trabalho (GT) com a finalidade de contribuir para a regulamentação e ampliação do período de licença-paternidade na legislação brasileira com objetivo de diminuir as desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho e estimular um maior envolvimento dos pais no cuidado dos filhos.

Após quase um ano de trabalho deste GT — composto por vários parlamentares, representantes do poder executivo, de entidades de classe, de diversas organizações da sociedade, assim representantes do setor empresarial —, deputados de vários partidos protocolaram o PL 6216/2023. A CoPai tem trabalhado junto ao GT, inclusive várias organizações da coalizão fazem parte dele, além de dialogar com parlamentares sobre a importância de aprovar a lei quanto antes.

Internacionalmente, quais os lugares onde a licença paternidade avançou mais e o que explicaria isso?

Cerca de 115 países ao redor do mundo disponibilizam o benefício da licença-paternidade, variando em termos de extensão e duração. É possível observar os avanços em países que adotaram diversas medidas pensando em proporcionar uma estrutura mais igualitária entre homens e mulheres. Por exemplo, a Islândia, que segue com o título de país mais igualitário do mundo pelo décimo quarto ano consecutivo, promove essa igualdade em diversos campos, como econômicos e sociais. A licença no país é dividida entre os pais, totalizando quase 9 meses de duração.

Na Suécia, os pais e mães — incluindo os solteiros, adotivos e LGBTQIA+ — têm direito legal a 480 dias de licença, financiados pelo Estado. São 68 semanas remuneradas, que podem ser divididas entre pai e mãe. O pai tem direito a 10 dias consecutivos, nos primeiros três meses, mais 30 dias não consecutivos, no primeiro ano. Neste país, 90% dos homens entram de licença e não dá para pressupor que apenas mulheres irão se afastar do emprego quando tiverem filhos — o que deixa de fazer sentido privilegiar homens nas entrevistas de emprego. “Quase todas as pessoas têm filhos na Suécia, apenas 15 a 20% da população chega aos 50 anos sem filhos. Então, se você estiver contratando alguém por volta dos 30 anos, nem precisa perguntar se ela pretende ter filhos e interromper a carreira em algum momento. Você sabe que isso vai acabar acontecendo”, diz Ann-Zofie Duvander, professora de demografia da Universidade de Estocolmo.

Na Alemanha, um país que investiu fortemente em licença parental estendida com estímulo para os homens ficarem em casa, 71% das mulheres estão atualmente economicamente ativas, e espera-se que esse número aumente para 78% até 2030, impulsionando a economia em aproximadamente 70 bilhões de euros e resultando em um crescimento de 2,4% do PIB.

Pesquisadores Saxbe e Cárdenas mostram por estudos como a licença paternidade ajuda o cérebro dos pais a se adaptar à paternidade. As equipes de pesquisa compararam exames cerebrais de pais de primeira viagem da Califórnia e da Espanha e verificou-se que ambos os grupos apresentaram mudança, porém, os pais na Espanha apresentaram mudanças mais significativas nas regiões que preparam o cérebro para as exigências cognitivas e emocionais da parentalidade. Uma possível explicação: o acesso generalizado a políticas generosas de licença de paternidade permite que os pais espanhóis passem mais tempo com os seus recém-nascidos*.

Na visão de vocês, quais são os argumentos centrais para a ampliação da licença paternidade? Em linhas gerais, como seria na prática esta licença?

Entendemos que a ampliação da licença paternidade é um tema bastante importante. Seu impacto inclui promover uma maior igualdade de homens e mulheres no mercado de trabalho, fortalecer os laços familiares e incentivar a participação ativa dos pais no cuidado com os filhos. De forma geral, nos pautamos em pesquisas que argumentam e em exemplos de outros países; entre os principais benefícios estão:

  • Igualdade entre homens e mulheres: ampliar a licença paternidade contribui para diminuir a disparidade no cuidado com os filhos, promovendo uma distribuição mais igualitária das responsabilidades familiares entre homens e mulheres.
  • Desenvolvimento infantil: estudos mostram que a presença e o envolvimento dos pais nos primeiros meses de vida do bebê têm impactos positivos no seu desenvolvimento cognitivo, emocional e social.
  • Fortalecimento dos laços familiares: a licença paternidade prolongada permite que os pais tenham mais tempo para estabelecer laços afetivos mais fortes com seus filhos desde o início, o que pode contribuir para relações familiares mais saudáveis a longo prazo.
  • Suporte à mãe: uma licença paternidade mais longa pode oferecer apoio adicional à mãe durante o período pós-parto, permitindo que ela tenha mais tempo para se recuperar física e emocionalmente, além de facilitar a divisão das tarefas de cuidado com o bebê.
  • Melhoria da saúde mental dos pais: ter mais tempo para se envolver no cuidado dos filhos pode reduzir o estresse e a sobrecarga emocional dos pais, promovendo uma melhor saúde mental e qualidade de vida.
  • Além dos benefícios econômicos, que incluem o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho, menor rotatividade nas empresas, além do aumento da produtividade, promove um aumento de consumo de bens e serviços relacionados aos cuidados infantis e reduz custos com saúde mental.

Na prática, além de todos os benefícios citados acima, a ampliação da licença paternidade possibilita aos pais mais tempo para cuidar e estabelecer vínculos com seus filhos recém-nascidos ou adotados.

Quais as vantagens para a sociedade em avançar nesta pauta, considerando as características da divisão do trabalho no mundo contemporâneo?

No Brasil, metade das mães está longe do mercado de trabalho quando seus filhos completam dois anos de vida — a maior parte delas porque foi demitida. Na origem desses problemas está o fato de que, historicamente, mulheres terem sido as únicas responsáveis pelos cuidados com os filhos. Para que o trabalho não-remunerado não recaia totalmente sobre elas, a ampliação da licença-paternidade desempenha um papel crucial no ambiente corporativo e na sociedade em geral, ao incentivar uma participação mais ativa dos pais na licença parental. A ideia é dar condições para que homens e mulheres possam dividir os cuidados com os filhos já desde o primeiro dia de vida — já que é muito difícil quebrar o padrão depois que a mulher já tenha assumido a maior parte dos trabalhos.

A partir daqui conseguimos ressignificar mensagens transmitidas de geração em geração. As atividades de cuidado com as crianças ficaram estigmatizado a ser uma tarefa exclusivamente realizada pelas mães, e não compartilhada. Com essa divisão, tiramos momentos importantes para a vida de mulheres que não deveriam parar suas vidas por conta da maternidade. A diferença salarial entre homens e mulheres está diretamente ligada à maternidade, pois muitas mães se veem enfrentando malabarismos adicionais entre cuidados infantis, tarefas domésticas e carreira profissional, conforme apresenta a mais recente ganhadora do Prêmio Nobel de Economia, Claudia Goldin.

Como uma alternativa às mães para retornar aos seus postos de trabalho mais cedo, a licença-paternidade oferece uma possibilidade ao contribuir na redução dessa penalização no ambiente profissional. Estudos indicam que empresas que oferecem licença parental tendem a ter uma presença mais significativa de mulheres em cargos de liderança, contribuindo para a diversidade e representatividade nos escalões superiores das organizações. Essa medida não apenas fortalece o senso de pertencimento e autoestima das mulheres, mas também traz impactos positivos nos ambientes de trabalho, fomentando uma cultura mais inclusiva e equitativa. Essa mudança beneficia tanto as mulheres quanto a sociedade na totalidade.

Estamos falando de uma das variadas dimensões da economia do cuidado? Em última instância, o avanço desta discussão não acabaria por incidir em políticas multissetoriais, como trabalhistas, assistenciais, educacionais etc.?

Sim, a ampliação da licença-paternidade está definitivamente relacionada a uma das várias dimensões da economia do cuidado. A ampliação da licença-paternidade reconhece o papel fundamental dos pais no cuidado com os filhos e busca promover uma distribuição mais igualitária das responsabilidades de cuidado entre homens e mulheres. A ampliação da licença-paternidade exige mudanças nas leis trabalhistas para garantir que os pais tenham direito a uma licença remunerada mais longa, protegendo seus empregos durante esse período. É importante ter políticas de assistência social para apoiar famílias durante esse período, especialmente aquelas com menor capacidade financeira e também pode ter implicações nas políticas educacionais, incentivando uma maior participação dos pais na educação e no cuidado dos filhos desde os primeiros anos de vida, o que pode influenciar positivamente o desenvolvimento das crianças. Além disso, as políticas de saúde, tanto do cuidado da saúde paterna, materna quanto da criança, são muito importantes.

Como se formou a Coalizão Licença Paternidade e qual sua composição?

A Coalizão foi idealizada pela liBertha.org e, com algumas representantes do Grupo Mulheres do Brasil, liderou a sua criação desde junho de 2023. A Coalizão foi criada porque era um consenso que a licença-paternidade atual, de apenas 5 dias, não atendia às demandas parentais da sociedade atual. A partir de agosto, o grupo ganhou força com a entrada de pessoas-chaves e instituições que apoiaram a causa pelo enorme potencial transformador. O grupo é formado somente por voluntários e não tem nenhuma conotação partidária.

Atuamos em três frentes: estamos junto aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, no intuito de colaborar com a regulamentação da extensão da licença-paternidade. Promovemos debates públicos e movimentos em mídias sociais, com embaixadores famosos, entre eles Lázaro Ramos e Marcos Piangers. Estamos inseridos em veículos de imprensa, no intuito de trazer conhecimento para a população sobre a importância da licença-paternidade estendida e dialogamos com os principais institutos, ativistas e organizações especialistas no tema, para poderem nos subsidiar com estudos sobre os benefícios da licença-paternidade estendida para a sociedade.

* Bibliografia: DICKENS, Molly; MANGINO, Kate. Como a licença paternidade ajuda o cérebro dos pais a se adaptar à paternidade. Harvard.  

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