Patentes: Jonas Salk, contra a normalização do absurdo

Responsável pela desenvolver a primeira vacina contra pólio, tomou a decisão de não patenteá-la. Aos 29 anos de sua morte, é momento de resgatar a radicalidade e coragem de suas posições contra a mercantilização da saúde

Jonas Salk em seu laboratório na Universidade de Pittsburgh. Créditos: UC San Diego Today
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O texto que você lê a seguir é uma publicação conjunta do Outra Saúde com o People’s Health Dispatch, um boletim quinzenal com foco na política e na luta internacional pelo direito à saúde, que dá voz aos movimentos de resistência à mercantilização da saúde, especialmente no Sul Global. O artigo abaixo, de autoria de Alan Rossi Silva e Joost Smiers celebra a memória de Jonas Salk. Ele foi um médico e epidemiologista estadunidense, responsável por desenvolver a primeira vacina eficaz contra a poliomielite em 1955. Seu trabalho revolucionou a saúde pública, reduzindo drasticamente os casos da doença no mundo. Salk optou por não patentear a vacina, tornando-a acessível e salvando milhões de vidas.


“O povo, eu diria. Não há patente. Você poderia patentear o sol?” Esta foi a reação de Jonas Salk durante uma entrevista em 1955, quando Edward R. Murrow lhe perguntou sobre quem é o proprietário da patente da recém-inventada vacina contra a poliomielite. Quase 70 anos depois, em 2024, essa resposta continua a surpreender novas gerações e a inspirar mudanças.

A pergunta do entrevistador também chama a atenção: “Quem possui a patente desta vacina?”. Murrow não perguntou se alguém teria uma patente sobre esta invenção. A forma como essa pergunta é formulada transmite um ar inegável de naturalidade. Ela parece se basear em uma suposição lógica: “Se há uma invenção potencialmente lucrativa, então é claro que alguém já possui direitos exclusivos sobre ela”.

Assistindo à gravação dessa entrevista, fica claro que Jonas Salk discorda dessa lógica. Várias pessoas podem detectar traços de indignação, surpresa e até ironia nesta breve declaração. Sua resposta memorável é, de fato, uma curiosa mistura dessas emoções. No entanto, também reflete outros sentimentos que podem ser particularmente úteis para enfrentar nossos desafios atuais. Até hoje, a postura de Salk impressiona por sua coragem, abnegação e espontaneidade.

Especialmente relevante é a capacidade de Jonas Salk de reconhecer o absurdo. Apesar da suposta naturalidade da pergunta de Murrow, Salk não se deixa enganar e, desconcertantemente, aponta a impropriedade da pergunta. Afinal, como alguém poderia pensar em limitar a produção e o acesso a uma tecnologia capaz de salvar milhões de vidas?

É precisamente por essa razão que Jonas Salk continua a inspirar inúmeras pessoas e iniciativas ao redor do mundo, incluindo o trabalho contínuo de seu próprio instituto nos Estados Unidos, vários livros e prêmios. Além disso, ele também tem sido uma das principais inspirações para o movimento Public Pharma for Europe, dando seu nome a uma de suas propostas mais promissoras: o Instituto Salk da Europa (European Salk Institute), idealizado pela organização belga Médicos para o Povo (Medics for the People) e apoiado por inúmeras organizações em todo o mundo.

Mais do que publicar artigos de opinião e nomear institutos em sua homenagem, no entanto, a única maneira de realmente honrar o legado de Jonas Salk é denunciar a imoralidade intrínseca do sistema de patentes e adotar uma postura intransigente em prol da justiça.

A memória de Jonas Salk é especialmente relevante nos tempos atuais, quando parecemos estar presos por uma trágica mistura de falso pragmatismo, desespero e falta de imaginação. Com poucas exceções (por exemplo, aqui e aqui), e sem realmente romper com o cerne da lógica de Murrow, o horizonte de nossos jovens, movimentos sociais e acadêmicos parece estar limitado a “equilibrar” sistemas de patentes, reformar leis de patentes, “negociar” licenças voluntárias, implementar flexibilidades do TRIPS, implorar por suspensões temporárias de determinados direitos de propriedade intelectual (por exemplo, TRIPS waiver), enfatizar a necessidade de patentes defensivas e, até mesmo, defender o aumento do número de patentes originadas no Sul Global.

Podemos alcançar muito mais: é importante lembrar que nem tudo está perdido, e a chama da indignação ainda está viva. Seguindo o exemplo de Salk e desafiando o mortífero consenso neoliberal, Radder e Smiers, por exemplo, propõem uma alternativa concreta: pesquisa médica sem patentes. Seu modelo mostra-se científica, social e moralmente preferível. Também lucrativo, do ponto de vista econômico e financeiro, além de praticável, em termos sociopolíticos e organizacionais. Sua perspectiva fornece um farol de esperança, demonstrando que, com ideias ousadas e esforço coletivo, podemos reimaginar nosso futuro!

À medida que nos aproximamos do 29º aniversário da morte de Jonas Salk, em 23 de junho, devemos rejeitar inequivocamente a noção de que inovações médicas que salvam vidas podem ser mercantilizadas e confinadas por patentes. Ao adotar a visão de Salk, podemos lutar por um mundo onde avanços científicos sirvam a humanidade como um todo, não aos lucros de alguns poucos. É hora de desafiar e transformar o status quo, garantindo que a próxima geração olhe para a nossa época e veja a coragem de acabar com esse absurdo.

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