Índia: novo tratado ameaça produção de genéricos

Cláusula de acordo de livre comércio com a Europa concede melhores condições para que grandes farmacêuticas imponham suas patentes no país, que vende remédios baratos para todo o Sul Global. Será o fim da “farmácia do Terceiro Mundo”?

Foto: China Daily
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Por People’s Health Dispatch | Tradução: Guilherme Arruda

No último dia 15 de março, a Índia tornou públicas uma série de alterações em sua Lei de Patentes. Apesar da oposição de grupos de pacientes, ativistas, organizações da sociedade civil e acadêmicos, o governo promoveu mudanças que terão um impacto significativo na capacidade do país de produzir medicamentos genéricos e de promover o acesso a remédios a preços justos. Não só os indianos serão impactados, mas também todos os países que compram medicamentos mais baratos da Índia.

Nada é coincidência: apenas cinco dias antes do anúncio das alterações, a Índia assinou um Acordo de Comércio Livre (ALC) com a Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA, na sigla em inglês), composta por Noruega, Islândia, Liechtenstein e Suíça. Esta última sedia grandes empresas farmacêuticas como a Novartis, a Roche e a Bayer – e pressionou a Índia a aceitar medidas TRIPS plus no acordo.

Como já diz o nome, estas são medidas ainda mais rigorosas do que as normas mínimas estabelecidas pelo Acordo sobre Aspectos da Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio (Acordo TRIPS) da Organização Mundial do Comércio (OMC). Elas criam barreiras adicionais à produção de medicamentos genéricos, que podem levar a preços mais elevados de medicamentos na Índia e no mundo. Agora que o país alterou suas leis patentárias para cumprir com essas exigências, tais barreiras, impostas pelo regime global de propriedade intelectual, tornaram-se um motivo de profunda preocupação.

Fragilizando a oposição prévia à concessão de patentes

As oposições prévias à concessão de patentes são um mecanismo essencial para evitar a concessão de patentes imerecidas. O atual sistema jurídico da Índia permite que qualquer cidadão indiano, ou mesmo de outras nacionalidades, apresente oposição a uma patente antes de esta ser concedida. Num julgamento histórico no ano passado, o Escritório de Patentes da Índia (IPO, na sigla em inglês) rejeitou o pedido de patente secundária da empresa farmacêutica Johnson and Johnson (J&J) sobre um importante medicamento anti-tuberculose.

A decisão foi proferida pelo IPO a partir de uma oposição prévia apresentada por dois sobreviventes da tuberculose – Nandita Venkatesan, da Índia, e Phumeza Tisile, da África do Sul. Os requerentes provaram que a patente secundária da bedaquilina era frívola e não deveria ser concedida. A sentença de março de 2023 permitiu que as farmacêuticas indianas focadas na produção de genéricos começassem a fabricar o medicamento em julho do mesmo ano. Se a patente tivesse sido concedida, o monopólio da J&J sobre a bedaquilina – vigente desde 2012 – teria se estendido até dezembro de 2027.

São vários os casos em que as grandes farmacêuticas se viram derrotadas por oposições prévias apresentadas por pacientes, organizações da sociedade civil e outras entidades. Em março deste ano, a patente de um medicamento para hepatite C da empresa farmacêutica norte-americana Gilead, que combinava o sofosbuvir e o velpatasvir, foi rejeitada pelo IPO. A oposição prévia foi apresentada pelo grupo de pacientes Delhi Network of Positive People (DNP+) e pela organização sem fins lucrativos Low Cost Standard Therapeutics.

Em outros casos, as empresas enfrentaram pressão para retirar pedidos de patente antes de serem concedidos. Em 2022, por exemplo, a farmacêutica francesa Sanofi teve de retirar o seu pedido de patente para o 3HP, um tratamento preventivo da tuberculose. A oposição pré-concessão foi apresentada pelo DNP+ e por Ganesh Acharya, um ativista indiano e sobrevivente da tuberculose.

As oposições prévias são uma pedra no sapato para as grandes farmacêuticas e os governos do Norte Global, que agem como defensores dos interesses dessas empresas durante negociações bilaterais e multilaterais. O novo ALC Índia-EFTA possui cláusulas que buscam enfraquecer este mecanismo, que se refletiram nas alterações da Lei de Patentes.

As novas regras concedem poder arbitrário aos funcionários do IPO para rejeitar diretamente qualquer oposição prévia. Isto significa que as petições poderiam ser rejeitadas mesmo sem ouvir o lado do peticionário. Isto não só facilitaria a concessão de patentes para pequenas alterações em medicamentos já conhecidos, mas também seria contra o próprio espírito da lei, que exige uma audiência justa para ambas as partes antes de se chegar a uma decisão.

As regras também foram alteradas para incluir taxas a serem pagas pela apresentação de oposições prévias, algo que não existia anteriormente. Este é um potencial obstáculo à apresentação de oposições por parte de pessoas e grupos que trabalham com recursos reduzidos.

O combate judicial contra a Big Pharma não é nada fácil. A indústria geralmente envia um exército de advogados bem pagos aos tribunais como uma tática para intimidar grupos de pacientes e defensores do interesse público. As empresas e suas associações gastam enormes quantias em lobby e em esforços para construir narrativas que lhes sejam favoráveis.

Em contraste, os seus oponentes – pacientes, grupos de pacientes, advogados, organizações da sociedade civil e empresas de genéricos – têm pouco ou nenhum recurso para gastar. Os governos deveriam apoiar estas pessoas e seus esforços para reduzir os preços dos medicamentos essenciais. No entanto, as leis patentárias, tal como estão hoje, violam flagrantemente o princípio fundamental do direito ao acesso a medicamentos.

Um ataque ao licenciamento compulsório

Quando se perde o prazo para apresentar uma oposição prévia, a próxima melhor opção é a solicitação da revogação da patente. A Índia foi aclamada mundialmente por promover o licenciamento compulsório (em português, também conhecido como quebra da patente) do medicamento contra o câncer tosilato de sorafenibe, comercializado sob o nome de Nexavar. A patente do medicamento, utilizado no tratamento de cânceres renais e hepáticos, pertencia à multinacional alemã Bayer Corporation. Uma empresa indiana de genéricos, a Natco Pharma Limited, foi aos tribunais pedir o direito de fabricar e vender o medicamento no país. Ela não questionou a veracidade da inovação da Bayer no invento, mas o preço do medicamento, que prejudicava sua acessibilidade.

Ao solicitar o licenciamento compulsório na Justiça, a Natco baseou-se fortemente no parágrafo 27 da Lei de Patentes da Índia (IPA, na sigla em inglês), que torna obrigatório para o titular da patente fornecer informações tais como as receitas obtidas com o medicamento e se ele foi importado ou fabricado na Índia. As informações ajudam a determinar se os pacientes que precisam do medicamento têm acesso a ele ou não. Ou, em outras palavras, se a patente funciona na Índia ou não. O parágrafo faz cumprir um dos princípios básicos da concessão de patentes sobre inovações: ajuda a verificar se o titular da patente está garantindo que o produto patenteado satisfaça as demandas públicas – cumprindo assim a obrigação social em contrapartida da qual o Estado concedeu um monopólio de vinte anos para a empresa.

No caso do Nexavar, descobriu-se que a patente da Bayer não estava servindo ao interesse público. O preço do medicamento era de cerca de 3.350 dólares por mês e ele mal chegava a 2% dos pacientes que poderia beneficiar. O tribunal constatou o fato e concedeu a licença compulsória. A Natco passou a vender o medicamento como Sorafenat por 105 dólares por mês.

As novas regras de patentes diluíram consideravelmente o parágrafo 27. Em vez de fornecer as informações anualmente, o titular da patente terá de apresentá-las uma vez a cada três anos. A exigência de informação sobre as receitas auferidas, que existia na lei antiga, foi completamente eliminada. O mesmo acontece com a informação sobre se o medicamento é importado. O titular da patente precisa apenas preencher um quadradinho, num formulário, indicando se a patente funcionou na Índia.

Se essas informações não forem fornecidas anualmente pelas empresas, será muito mais difícil apresentar pedidos de licenciamentos compulsórios. Na falta de informações adequadas, construir argumentos sólidos exigirá muito mais esforço. Esperar que os pacientes recolham tais informações é pedir muito.

Muitos advogados ligados à Saúde Pública e especialistas em políticas públicas acreditam que as novas regras contradizem a própria lei. O governo da Índia não quis discutir esta questão crucial no Parlamento e escolheu o caminho da surdina, alterando diretamente as regras. Mas, de acordo com algumas avaliações, as alterações têm uma base legal muito frágil e poderão ser contestadas na Justiça.

Futuro da Índia preocupa

Embora a Lei de Patentes já tenha sido alterada, o Acordo de Livre Comércio exige mais concessões da Índia – e há uma preocupação crescente de que as regras poderão ficar completamente diluídas. Em fevereiro, o governo indiano anunciou que uma cláusula de exclusividade de dados do ALC, que ampliaria mais ainda os monopólios das empresas farmacêuticas, estava fora de discussão. No entanto, o texto final do acordo menciona que, embora a exclusividade de dados esteja suspensa neste momento, ela voltará a ser discutida um ano após o acordo entrar em vigor. Assim, a ameaça continuará a pairar sobre a Índia.

Estas medidas TRIPS plus poderão levar a grandes aumentos dos preços de medicamentos essenciais na Índia, comprometendo o papel do país como principal fornecedor de medicamentos genéricos a preços acessíveis para os países em desenvolvimento. O governo indiano, dizem ativistas e especialistas, deveria reverter as alterações na Lei de Patentes, renegociar o ALC Índia-EFTA e evitar cláusulas do tipo em futuros acordos comerciais.

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