Cadê a vacina da dengue?

Se convivemos com a doença há 40 anos, porque dependemos de uma empresa estrangeira para imunizar a população? GTPI explica como, sem amarra das patentes farmacêuticas, poderíamos ter mais imunizantes muito antes do atual surto

Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil
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Por Susana van der Ploeg e Carolinne Scopel, para a coluna Saúde não é mercadoria

Neste artigo, o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI) se propõe a responder a uma pergunta recorrente: cadê a vacina da dengue? Queremos apresentar também o que podemos chamar de determinantes comerciais no controle da doença: o monopólio, a produção limitada e o alto preço.  Ao longo dos anos, houve diversas iniciativas para o desenvolvimento de vacinas contra a dengue, que por diversas razões não resultaram em produtos comercialmente viáveis.  

Em 2015 foi deferido o primeiro registro sanitário de uma vacina contra a dengue no Brasil, a Dengvaxia, da empresa Sanofi. No entanto, esta vacina é recomendada apenas para pessoas que já tiveram a doença, pois nas demais a vacinação aumenta o risco de agravamento da doença. Por tais razões não é uma vacina viável para o sistema público de saúde, uma vez que não cumpre a função essencial de reduzir os custos associados ao tratamento e as complicações da doença.

Em 2023, uma vacina contra a dengue chamada Qdenga foi registrada pela empresa japonesa Takeda e incorporada no Plano Nacional de Imunização do SUS. Entretanto, a capacidade limitada de fornecimento da vacina pela empresa, que fornecerá apenas 5 milhões de doses ao longo de todo o ano de 2024, limitou a campanha de vacinação a apenas 521 municípios, cerca de 10% do total, e reduziu os grupos populacionais, para crianças entre 10 e 14 anos, mesmo tendo sido aprovada para um público mais amplo de 4 a 60 anos.

Há alternativas que permitiriam aumentar a cobertura vacinal. Por que há apenas uma empresa, com capacidade de produção limitada, disponibilizando a vacina para a dengue no SUS, enquanto assistimos a uma epidemia descontrolada em todo território nacional? Convivemos com a epidemia de dengue no Brasil há 40 anos. Por que dependemos de uma empresa japonesa? A dependência de um único fabricante, em razão do monopólio patentário concedido pelo Estado, é um risco à saúde pública e prejudica o controle da epidemia.

O que é a dengue e como ela afeta o país

A dengue é uma doença viral transmitida por um vetor artrópode, o mosquito Aedes aegypti. O vírus da dengue pertence à família dos arbovírus e são conhecidos quatro sorotipos, denominados DENV-1, DENV-2, DENV-3 e DENV-4. Como outras doenças transmitidas por mosquito, a transmissão da dengue e suas epidemias está diretamente associada a fatores climáticos, especialmente à época de chuvas, que ocorre no Brasil entre outubro e maio. Entretanto, as mudanças climáticas e as condições de urbanização nos grandes centros agravam o avanço da doença, que afeta desigualmente as classes sociais. Populações marginalizadas apresentam maior incidência da doença, em especial nas grandes cidades.  

A forma de organizar a vida nas cidades, a ocupação do espaço urbano, a grande desigualdade social brasileira, o saneamento e o tratamento inadequado de resíduos urbanos, a drenagem e o escoamento das águas, o crescimento da população, o aumento da densidade e distribuição dos vetores e as barreiras de acesso aos cuidados de saúde pública são fatores que facilitam a transmissão e a manutenção endêmica da dengue no Brasil. 

Na primeira semana de abril, o Brasil registrou o maior número de mortes confirmadas por dengue em um único ano, desde o início da série histórica em 2000. Em relação ao número de casos, 2024 já ultrapassou os anos anteriores. Até a 11ª semana do ano, o Ministério da Saúde registrou mais de 2,9 milhões de casos prováveis da doença.

Os sintomas da dengue, como febre, dor de cabeça, prostração, dores musculares e/ou articulares e dor atrás dos olhos, são manifestações comuns e repentinamente debilitantes, impactando na carga de doença. Enquanto muitas pessoas se recuperam bem, certas populações enfrentam maior risco de complicações e até morte, incluindo mulheres grávidas ou lactantes, crianças com menos de 2 anos e idosos acima de 65 anos. 

No entanto, a maioria dessas fatalidades poderia ser evitada, com ações de prevenção e tratamento, destacando a importância crucial da qualidade e organização dos serviços de saúde. Isso levanta sérias preocupações, especialmente para as comunidades mais vulneráveis, que muitas vezes enfrentam dificuldades significativas para acessar esses serviços essenciais. Esta disparidade na resposta à saúde sublinha as profundas desigualdades sociais que persistem e exigem uma ação política urgente para garantir a proteção e o acesso equitativo aos cuidados de saúde para todos os cidadãos.

Não existe um tratamento medicamentoso específico para a dengue. A principal recomendação para a forma clássica da dengue é hidratação, repouso, controle dos sintomas, principalmente dor e febre e monitoramento dos sinais; em caso de dengue grave, pode ser necessária hospitalização, reposição hídrica parenteral e monitoramento da pressão venosa. A ausência de tratamento específico e as dificuldades de controle da propagação do vetor fazem da vacinação da população uma importante ferramenta de controle das epidemias de dengue.

A vacinação e como ela poderia ter ocorrido antes

É importante destacar que a vacinação é uma medida de saúde pública. A vacinação em massa é uma maneira efetiva de prevenir surtos epidêmicos e pandêmicos. Ao manter altas taxas de imunização na população, é possível interromper a propagação de agentes patogênicos e evitar a disseminação descontrolada de doenças. 

A vacinação no setor privado, em que se mira a proteção individual, não é capaz de produzir o mesmo impacto em saúde pública como as campanhas coordenadas pelo sistema de saúde público, devido ao acesso desigual, à falta de coordenação, à ausência de abordagem sistêmica e ao foco no lucro. Em contraste, as campanhas de vacinação coordenadas pelo sistema nacional de imunização (SNI) tendem a ser mais abrangentes, equitativas e eficazes na promoção da saúde pública.

A vacina Qdenga, produzida a partir do vírus atenuado, não é em si uma tecnologia nova. A primeira vacina da história, a vacina contra a varíola, desenvolvida há mais de 230 anos, já apresentava o conceito de vírus atenuado. A vacina contra a poliomielite, desenvolvida por Jonas Edward Salk, foi desenvolvida com o vírus “morto”, em 1955. Salk, quando questionado a quem pertencia a patente, respondeu: “A quem pertence a minha vacina? Ao povo! Você pode patentear o sol?”. A vacinação é uma medida de saúde pública essencial para salvar vidas. Enquanto o lucro for colocdo em primeiro lugar, a epidemia seguirá descontrolada. 

Como aprendemos na pandemia de Covid-19, aumentar a capacidade produtiva, baratear os preços e ampliar a oferta da vacina são passos fundamentais para a garantia do acesso à tecnologia para quem precisa dela. A transferência de tecnologia pode ser uma alternativa para enfrentar a questão do acesso à vacina contra a dengue no SUS. Além dessa, há ainda a possibilidade de fornecimento da vacina do Instituto Butantan, que ainda depende de aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). 

A dependência de um único fabricante ou de processos de transferência de tecnologia ocorre pois os produtos estão protegidos por diversas patentes – algumas inclusive de propriedade do governo dos Estados Unidos – oriundas de pesquisas realizadas com investimento público. No Brasil, há pelo menos 50 pedidos de patentes relacionados às vacinas contra a dengue, depositados no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), que restringem a pesquisa, a produção e o acesso, como mostrado na Figura 1 ao final do texto.

A sobreposição de pedidos de patente é uma estratégia comumente utilizada pelas empresas farmacêuticas para estender seu monopólio e maximizar seus lucros; caso todos esses pedidos de patente para a vacina da dengue fossem concedidos no Brasil, isso resultaria em um monopólio de mercado até 2041, com duração de 45 anos. O mapeamento e o monitoramento da situação patentária são importantes ferramentas para compreender a situação patentária dos produtos, contribuindo para formular estratégias para superar essa barreira e proporcionar acesso à população. 

Além disso, mesmo após o período de vigência dessas patentes, a comercialização em massa dessas vacinas seria difícil, pois na legislação brasileira não existe a possibilidade de registro de vacinas como produtos genéricos ou biossimilares, o que significa que para o registro de uma nova vacina é preciso um processo longo e caro de desenvolvimento clínico e industrial do produto. 

O combate à dengue no Brasil é uma batalha complexa que vai além das questões de saúde pública. A epidemia descontrolada e o acesso limitado à vacinação levantam sérias preocupações sobre as lacunas no sistema de saúde. A dependência de um único fabricante, as barreiras impostas pelas patentes e a falta de políticas que facilitem a produção e distribuição em larga escala das vacinas são desafios que precisam ser enfrentados. 

A transferência de tecnologia para laboratórios públicos ou a aprovação de vacinas de outras fontes são soluções potenciais para ampliar o acesso à vacinação e controlar efetivamente a propagação da doença. Em última análise, a saúde pública não deve ser refém de interesses comerciais, medidas urgentes são necessárias para garantir que a proteção e o acesso equitativo à saúde sejam uma realidade para todos os cidadãos.


Figura 1: Ciclo de vida do monopólio patentário da vacina da dengue no Brasil, baseado nos pedidos de patente depositados no INPI e em uma estimativa de 20 anos de monopólio. Os pedidos de patente em cinza estão extintos ou arquivados, em verde estão indeferidos, em amarelo estão pendentes e em vermelho estão concedidos. Esse mapeamento patentário, que foi construído a partir do cruzamento de informações disponíveis publicamente, não pretende ser exaustivo, mas pretende exemplificar a sobreposição de pedidos de patente no Brasil.

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