Para conhecer o acesso à saúde nos “Brasis profundos”

Novo livro escrito por pesquisadores da Atenção Primária revela a atuação do SUS nos municípios rurais remotos. Uma de suas organizadoras narra as descobertas do estudo e como é possível melhorar o cuidado nesses territórios

Posto de saúde em Melgaço (PA), município no arquipélago de Marajó. Está localizado a 8 horas e meia de Belém, de barco. Foto: APS em MRR
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Márcia Cristina Rodrigues Fausto em entrevista a Gabriel Brito

Uma rede de mais de 40 integrantes, entre pesquisadores, professores e pós-graduandos, ligada à Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, ocupa-se de uma tarefa notável. Estudar a Atenção Primária à Saúde em municípios rurais remotos e suas particularidades regionais. Eles foram responsáveis pela pesquisa “Atenção Primária à Saúde em territórios rurais remotos no Brasil”, que deu origem a um livro de mesmo nome, que está sendo lançado neste mês. 

O PULSO, programa de entrevistas em vídeo do Outra Saúde, recebeu Márcia Cristina Rodrigues Fausto, que é assistente social sanitarista e mestre em saúde coletiva, para falar mais sobre a obra que analisa seis diferentes regiões do Brasil, seus contextos e determinantes sociais de saúde. Ela é uma das organizadoras do novo livro, junto com Patty Fidelis de Almeida, Adriano Maia, Aylene Bousquat, Ligia Giovanella, integrantes do grupo.

“Já tínhamos a informação de que as respostas das equipes de saúde dessas áreas eram bem diferentes dos grandes centros urbanos, e o livro expressa os resultados da pesquisa. Primeiro, explora a própria condição dos espaços rurais remotos, coisa que contou com apoio do IBGE e ajudou a definir a base de municípios. No Brasil, esses locais não são homogêneos, têm características socioespaciais distintas”, explicou Marcia.

Como publicamos em 2022, quando este trabalho ainda não tinha se tornado livro, a pesquisa aborda os contextos de saúde em cinco regiões distintas. O Matopiba, que engloba certas regiões do cerrado do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia e é caracterizado por uma expansão recente do agronegócio. O Semiárido nordestino, que abrange uma vasta área dos estados da região, e onde a seca é um problema constante e crescente. 

O norte de Minas Gerais, onde está o Vale do Jequitinhonha, cujas características sociais e geográficas fazem-no se assemelhar ao semiárido do Nordeste – inclusive com algumas das mesmas carências como a escassez hídrica. O vetor Centro-Oeste, outra área de intensa atividade do agronegócio. Na região Norte, os pesquisadores caracterizaram dois grupos de municípios: um que diz respeito às áreas onde o acesso se dá essencialmente pela água, e o outro de cidades que foram construídas no contexto de grandes projetos nacionais e construção de rodovias.

Por obra do destino, os pesquisadores, como explica Marcia na entrevista, puderam testemunhar um momento de transição entre dois distintos programas que marcaram a APS no Brasil nos últimos anos: o Mais Médicos e o Médicos pelo Brasil, programa improvisado por Bolsonaro sob a motivação de expulsar os profissionais cubanos do Brasil. Mas ninguém ocupou seus lugares, o que gerou um vazio assistencial que atingiu praticamente metade da população.

“O desenvolvimento da atenção primária foi muito beneficiado pelo Mais Médicos. Antes, as cidades tinham ainda mais dificuldade em contratar esse profissional, com custos ainda maiores, inclusive com certa competição entre municípios. Mesmo que não resolva a questão da fixação dos profissionais, o Mais Médicos [original] melhora o atendimento das necessidades da população mais vulnerável e que padece de grandes desigualdades”, sintetizou Marcia.

No entanto, não é só de médicos e enfermeiros que se faz um sistema de saúde. Além de incluir outros profissionais, que podem ofertar serviços geradores de qualidade de vida, é preciso trabalhar com a ideia da transversalidade.

“A população desses municípios remotos precisa se esforçar muito para acessar os serviços de saúde, principalmente quando se trata de atenção especializada. É necessário também entender os modos de vida tradicionais, que têm suas particularidades e exigem competência cultural dos profissionais de saúde. O Agente Comunitário é outro aspecto relevante: ele tem pertencimento ao território e faz a aproximação entre o serviço e as pessoas. São vários elementos essenciais para organizar a APS em tais locais, se pensamos também nos determinantes sociais de saúde”, explicou.

Trata-se de um “Brasil profundo”, historicamente marginalizado do desenvolvimento econômico e social. Parte dele alvo do arbítrio do capital e seus implacáveis processos de expansão e expropriação de comunidades. Promover a saúde nesses locais também passa pela construção da democracia em seu sentido mais pleno. “A questão das distâncias é central e coloca desafios à política pública. E os problemas vão além da saúde, há dificuldades em fazer chegar saneamento, água potável, coleta de lixo, comunicação… um conjunto maior de necessidades que se expressa em várias desigualdades”, sintetizou.

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