Pandemia da pandemia: a próxima tempestade

Reportagem especial traz um retrato de uma consequência pouco debatida da tragédia da covid no Brasil: a fila de exames e cirurgias que foi se avolumando desde 2020. Números indicam que ao menos 400 mil a mais morreram esperando esses serviços

Foto: Nacho Doce/Reuters
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O Brasil contabiliza oficialmente 698 mil mortes e 37 milhões de infecções pelo novo coronavírus, o Sars-CoV 2; 80% da população completou o primeiro esquema vacinal, enquanto 50,52% recebeu ao menos uma dose de reforço. No entanto, uma outra pandemia se oculta da percepção de uma sociedade que retomou suas atividades e interações de modo praticamente integral. Estamos às portas do que diversos especialistas chamam de “pandemia da pandemia”.

Trata-se, resumidamente, de toda uma demanda por serviços de saúde represada nestes três anos em que nos relacionamos com uma nova doença, que matou pelo menos 6,85 milhões de pessoas no planeta (mas a OMS considera possível que tenham sido até 15 milhões). São consultas, exames e cirurgias que deveriam ter se realizado no período pandêmico, lacuna que se manifestará em mais adoecimentos e mortes no futuro próximo. Como mostrará nossa matéria, a quantidade de todos esses procedimentos de saúde represados beira o incalculável.

Não à toa, o novo ministério da Saúde, comandado pela ex-presidente da Fiocruz Nísia Trindade Lima, tem na redução da fila de procedimentos cirúrgicos do SUS um de seus objetivos centrais. Além de incluir a vacina contra covid no calendário permanente de imunização, a ministra anunciou um pacote de R$ 600 milhões para o início deste amplo esforço de mitigação dos impactos, visíveis e invisíveis, da pandemia. Segundo o presidente do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (Conasems), Wilames Freire, são necessários pelo menos R$ 3,5 bilhões ao longo destes quatro anos de governo, não só para zerar a fila como para garantir a manutenção de mão de obra e capacitar o sistema de saúde a estancar a “pandemia da pandemia”.

Mas não foram “apenas” 698 mil mortes. Um estudo do Conselho Nacional das Secretarias de Saúde (Conass), atualizado pela última vez em 6 de fevereiro, traz um dado impressionante. Em comparação com o período 2015-2019, o quinquênio anterior à pandemia, 1.142.300 brasileiros perderam suas vidas no período pandêmico para além da curva demográfica previsível (ver box). Essa é a quantidade real de pessoas que, direta e indiretamente, a covid e seu mau gerenciamento no Brasil mataram.

Esta reportagem especial do Outra Saúde oferece um retrato ampliado da tragédia do encontro da maior crise sanitária do país com um governo de negacionistas e fanáticos ideológicos que manifestaram inúmeras vezes seu desprezo pela ciência. De outro lado, ilustra o tamanho do desafio que o Brasil e seus gestores de saúde têm diante de si.

Depois da tempestade, a próxima tempestade

“Pandemia da pandemia não é um conceito novo para nós. Todo desastre gera consequências no sistema de saúde. Se tivéssemos um grande terremoto parte da população morreria de infarto, por exemplo. Um desastre sempre traz impactos indiretos. O importante é quantificar o impacto e direcionar a política pública. Porque o efeito é esperado e já se deve ter a política pra mitigá-lo. Quantas cirurgias simples foram adiadas? Cataratas, colonoscopias… Adiam-se tais procedimentos, mas quando se retoma uma normalidade não há nada pra mitigar essa necessidade”, explicou Fátima Marinho, médica epidemiologista e uma das autoras do estudo mencionado no início da reportagem, denominado “Aumento das mortes no Brasil, Regiões, Estados e Capitais em tempo de COVID-19: excesso de óbitos por causas naturais que não deveria ter acontecido”, publicado peloConass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), entidade que congrega todas as secretarias estaduais de saúde e visa coordenar o diálogo do setor com o governo federal.

O estudo contém gráficos interativos que dividem as mortes por estado, região e semana epidemiológica. A fonte de pesquisa é o Serviço de Informação de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde.

“Durante a pandemia apareceram muitos termos. Falaram em coisas como ‘paciente invisível’, por exemplo. O impacto será mundial e generalizado, como alguns países já sentem. Já se percebe um impacto forte em relação ao câncer, porque diagnósticos e rastreamentos quase pararam na pandemia. A pessoa sentia determinada dor, mas não ia ao hospital com medo da infecção. Postergou uma colonoscopia por dois anos, o câncer de cólon cresceu mais do que devia, quando poderia ter sido retirado em três meses, ela recebe um prognóstico bem pior, um tratamento mais agressivo e vem a óbito. Essa vai ser uma realidade dos próximos anos”, explicou Alessandro Bigoni, pesquisador da Faculdade de Saúde Pública da USP e coautor do estudo Brazil’s health system functionality amidst of the COVID-19 pandemic: an analysis of resilience, publicado na revista científica Lancet, ainda sem veiculação em português.

Para Victor Dourado, médico com especialização em anestesiologia e presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo, a situação se soma a um contexto de retrocesso na capacidade do sistema de saúde em atender a demanda anterior à pandemia.

“Já tínhamos um colapso iminente e estrangulamento do sistema de saúde por conta do subfinanciamento. E voltamos a ver cortes de subsídios. O Brasil faz milagre com a quantidade de recursos para a saúde. Proporcionalmente, em relação ao tamanho da economia, deveríamos ter muito mais. A conta é simples: se você corta dinheiro da saúde, morre mais gente. Não são tratamentos caros que deixam de ser feitos, mas acompanhamentos, rastreamentos e vários procedimentos que deixam de ser feitos. O efeito é direto”.

Mortes excessivas”: o retrato mais preciso da pandemia

Atualizado em tempo real (a última vez em 6 de fevereiro de 2023), o estudo do Conass, realizado em parceria com a ONG de pesquisa e consultoria em saúde pública Vital Strategies, joga luz sobre a faceta mais dura dessa “pandemia da pandemia”: a quantidade de mortes que, de acordo com a curva demográfica dos anos recentes, não deveria ter ocorrido. Para além das mortes causadas pelo vírus, que conformam a grande maioria dos óbitos excessivos, há aqueles que se referem a casos para os quais não houve acompanhamento, seja pelo isolamento social que paralisou ou adiou tratamentos, seja pela falta de condições do sistema público em absorver toda a demanda enquanto o vírus lotava unidades básicas, ambulatórios e hospitais, seja pela pura e simples pobreza de indivíduos que morreram à margem de qualquer amparo.

De acordo com a pesquisa, o Brasil somou 1.142.299 mortes excessivas desde o início da pandemia. São 698 mil óbitos oficialmente atribuídos ao vírus e considera-se factível uma subnotificação de 20%, dada a excepcional quantidade de mortes atribuídas à Síndrome Respiratória Aguda Grave, de acordo com dados do Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde. Somam-se a esses números mais 304,7 mil mortes por “causas naturais”, que não deveriam ter ocorrido neste mesmo espaço de tempo.

Taxa de mortes dividida por ano e semana epidemiológica da pandemia em comparação com os cinco anos anteriores. Elaboração: Conass

Foram 310.431 mil mortes em 2020, com 25% de excesso de mortalidade esperada em relação à curva demográfica; em 2021, o mais mortífero da pandemia, ocorreram 563.896 óbitos, com 47% de excesso de mortalidade proporcional; por fim, 2022 registrou 267.973 mortes, com excesso de 24%.

Para além dos números oficialmente reconhecidos de mortes por covid, trata-se de uma mortalidade causada predominantemente por fatores associados ao impacto de uma grande epidemia, como explica a nota técnica do estudo, responsáveis pelo adiamento e interrupção de acompanhamentos e tratamentos que ceifaram uma quantidade inaudita de vidas. Enquanto Bolsonaro e o general Pazzuello sabotavam as políticas de prevenção, conforme demonstrado pelo estudo A linha do tempo da estratégia federal de disseminação da covid-19 (2021), da Faculdade de Saúde Pública da USP, os hospitais se entupiam de pacientes de covid. Dessa forma, variados tratamentos e cirurgias urgentes deixavam de ser feitas por conta do isolamento social ao qual pessoas necessitadas de acompanhamento médico foram forçadas e, sobretudo, à falta de qualquer coordenação federal em políticas de saúde.

No âmbito dos profissionais em saúde, o CFM, em um memorial virtual em sua página, contabiliza 893 médicos mortos pelo coronavírus. No entanto, o memorial está atualizado somente até o fim de 2021 Já o painel do Conselho Federal de Enfermagem lista 872 falecimentos em meio a 64 mil casos, também até 2021. Segundo levantamento do Public Services International, faleceram de covid no Brasil 4.500 profissionais dos setores público e privado de saúde até outubro passado.

Vale lembrar que no início de 2022, quando a variante ômicron estourou, os médicos paulistas ameaçaram uma greve, impedida pelo Tribunal de Justiça. Alegava-se, à época, insuficiência no número de profissionais e excesso de trabalho, num momento em que cerca de 5000 profissionais de saúde foram afastados por terem contraído o vírus.

Líbia Bellusci, enfermeira e membro do Fórum Nacional de Enfermagem, explicou algumas das razões que levaram as mortes excessivas também aos profissionais de saúde, em especial da chamada “linha de frente” do combate à pandemia. “Tivemos muitos problemas, que começaram com a negação da doença, não só pelo governo federal, mas pela administração de diversas instituições de saúde, que tardaram a garantir Equipamentos de Proteção Individual (EPI) aos trabalhadores, separar os pacientes e também treinar profissionais para o atendimento. Não houve testagem em massa, o que fez com que população e trabalhadores, mesmo contaminados, continuassem circulando. Por fim, o retardo na vacinação. Tudo isso fez com que tivéssemos mais contaminados, mais leitos de UTI ocupados e muito mais mortes do que deveríamos ter. Sem contar que a sobrecarga do sistema de saúde com os casos de covid diminuiu os atendimentos das outras doenças e causou mais mortes indiretas”.

Além das desigualdades regionais, outro aspecto que não poderia deixar de ser constatado ao se destrinchar as estatísticas é o racial.

De acordo com o estudo Os impactos desiguais da COVID-19 na população negra no Brasil, publicado pelo grupo Raça e Saúde, também com a participação de Fátima Marinho e da Vital Strategies, “em 2020, o excesso de mortalidade foi de 28% entre pretos e pardos em comparação com 18% entre pessoas de cor branca. Esta diferença, em números absolutos, representa 36 mil óbitos a mais entre pessoas de cor preta e parda em relação às brancas. O excesso de mortalidade em 2020 Brasil foi de 270 mil mortes (22%)*. Ou seja, esse foi o número de pessoas que morreram acima do esperado para o ano. No entanto, a pandemia da COVID-19 afetou de forma desproporcional a população negra, resultando em um excesso de mortalidade de 28% (153 mil mortes) de pessoas pretas e pardas. Os homens pretos e pardos morreram duas vezes mais do que as mulheres brancas”.

E o estudo, focalizado no primeiro ano da pandemia, reforça que a inépcia do Estado cobrará mais vidas negras também neste aspecto. “As desigualdades observadas no estudo reafirmam que a população negra é mais vulnerável e teve um maior excesso de mortalidade devido à COVID-19, nos levando a afirmar que a COVID-19 não é uma epidemia, e sim uma sindemia. Tanto pesquisadores que atuam com sindemias (campo de pesquisa com raízes na antropologia médica) quanto no campo da saúde e dos direitos humanos reconhecem que os determinantes sociais, políticos e estruturais contribuem mais para as desigualdades em saúde do que fatores biológicos ou escolhas pessoais. Uma sindemia não é apenas uma comorbidade. São caracterizadas por interações biológicas e sociais, interações que aumentam a suscetibilidade de uma pessoa a doenças e à perda da saúde ao longo da vida. Não é aleatório que a população negra tenha mais comorbidades para COVID-19 e menor acesso aos serviços de saúde”.

Em caso de não haver um fortalecimento do SUS, conclui Fátima Marinho, ainda passaremos mais alguns anos a contabilizar “mortes excessivas”. “Não é um desafio futuro. Não é surpresa. É algo inerente a um sistema de saúde. Por isso se deve ter inteligência dentro de sistemas de saúde, que devem programar mitigações a impactos causados por uma pandemia. E continuaremos vendo impactos, mais gente vai morrer por falta de coordenação e antecipação aos problemas. O sistema de saúde tem de ser ampliado. Porque além do que já havia, temos uma nova carga, que são os pacientes doentes de covid longa. E não vemos plano nenhum de enfrentamento. O desafio já está colocado e não temos respostas. Precisamos de pesquisas e novos medicamentos para tratar de uma coisa nova. A pandemia não acabou, podemos ter uma nova variante. Não sabemos o quanto os sintomas podem se prolongar em quem já teve. Se temos o SARS-COV 2 podemos ter o SARS-COV 3, portanto, é preciso manter a vigilância de casos e de genoma. Vejo uma tragédia enorme, que vai continuar se não for feito um plano nacional de mitigação”.

* O estudo se refere ao número de mortes excessivas contabilizado à época de sua conclusão. Com a atualização do painel pelo Conass a cifra atingiu 310.431.

Números e mais números

Além da subnotificação de infecções e óbitos, consensual entre todos os especialistas da área médica dentro e fora do Brasil, não há um dado nacional sobre uma quantidade total de procedimentos que deixaram de ser feitos no SUS desde o início da pandemia. O DataSUS fornece uma boa base de dados a este respeito, mas não de forma unificada, pois divide exames, internações e cirurgias por áreas da medicina, por sua vez subdivididas por cada especificidade clínica, além de a fragmentação ser feita por estados e municípios, sendo que nem todos fornecem informações em tempo e quantidade confiáveis.

Mas já aparecem alguns estudos que oferecem indícios do tamanho do iceberg abaixo da superfície. De acordo com dados do Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS, houve uma redução de 20% dos exames para diagnósticos no primeiro ano pandêmico: foram 982 milhões em 2019, ante 785 milhões em 2020.

Já uma pesquisa do Conselho Federal de Medicina (CFM) afirma ter havido, apenas de março a dezembro de 2020, uma redução de 27 milhões de consultas, exames e cirurgias não urgentes em relação ao mesmo período de 2019. Também observou 60% de queda nos atendimentos diários de emergência e UTI em função da reserva de leitos hospitalares à Covid-19. Somam-se, ainda de acordo com o CFM, 900 mil pessoas na fila de espera de cirurgias, mas o órgão assume que o número deve ser maior devido à “falta de dados de alguns estados, à fila do serviço federal e à simples falta de acesso ao sistema de parte da população”.

Dentre os 27 milhões de procedimentos eletivos a menos, o CFM listou as dez áreas médicas mais afetadas, sendo que na radioterapia a redução chegou a quase 100% de variação negativa.

Elaboração: Conselho Federal de Medicina

Além das especialidades mais afetadas, o CFM também listou os 10 tipos de procedimentos com maiores quedas absolutas, dentro do mesmo período acima mencionado.

Por sua vez, o supracitado estudo da Lancet elenca uma série de procedimentos em diversas áreas que sofreram redução, desde exame de imagens e consultas presenciais a cirurgias de baixa, média e alta complexidade e até nascimentos.

Segundo este estudo, em 2020 os exames de imagem caíram 42,6%; procedimentos para diagnóstico, 28,9%; consultas presenciais, 42,5%; cirurgias de baixa e média complexidade, 59,7%; cirurgias de alta complexidade, 27,9%; transplantes, 44,7%; tratamentos e procedimentos clínicos por ferimentos e lesões, 19,1%; procedimentos inadiáveis, 8,5%; nascimentos, 12,6%; por fim, demais procedimentos caíram 15,5%. Todos com redução gradual a cada trimestre. No total, o país viu a produção em saúde cair em 25%.

Dividido em estados e regiões, o artigo também abordou a distribuição de recursos a estados e municípios, o que permitiu flagrar como a pandemia reproduziu no acesso à saúde as desigualdades regionais que marcam a formação socioeconômica brasileira. Os números acima citados conformam uma média nacional, mas ao reparti-los por regiões nota-se que a diminuição de procedimentos alcançou números mais drásticos nas regiões Norte e Nordeste.

“A grande e descarada marca do erro é o fato de o governo federal ter pulverizado de forma igual os recursos pelo país. A distribuição per capita foi muito parecida entre estados e municípios. Mas alguns estados e municípios precisavam de valores maiores. E foram os estados que mais assumiram gastos e tiveram redução de procedimentos gerais em saúde. Se a coordenação federal se preocupasse com as disparidades que marcam o país o impacto teria sido menor, menos procedimentos teriam sido adiados e os estados gastariam menos, pois tiraram mais do que tinham do bolso, e até do que deveriam, se comparados a vizinhos mais ricos”, explicou Alessandro Bigoni.

Dentre todo o recuo de acompanhamento médico na saúde dos pelo menos 150 milhões de usuários do SUS, o câncer parece ser o aspecto mais preocupante. A doença matou 232 mil pessoas em 2019. Em 2020, foram 226 mil falecimentos, segundo o Instituto Nacional do Câncer. A queda numérica é ilusória, pois como já sugere o estudo Covid-19 no Brasil em 2020: impacto nas mortes por câncer e doenças cardiovasculares a própria covid pode ter impactado nas mortes de pessoas que já conviviam com algum tipo de câncer, além de a diminuição do rastreamento já ser tida como realidade.

“O efeito da pandemia no cuidado dos indivíduos com câncer foi abordado em diversos estudos internacionais. Uma revisão sistemática, publicada em 2021, identificou 62 estudos realizados em 15 países, em sua maioria da Europa e América do Norte, relacionados a atrasos e interrupções no tratamento de pessoas com câncer como consequência da pandemia: atrasos no tratamento foram relatados por 77,5% dos indivíduos que responderam aos inquéritos objeto da pesquisa; uma taxa de interrupção do tratamento de 26,3% foi identificada nos estudos longitudinais; e uma redução de 30% nas internações relacionadas ao câncer. Não se encontraram estudos que avaliassem diretamente o efeito da pandemia no rastreamento e diagnóstico do câncer, embora haja estimativas realizadas por profissionais envolvidos na gestão de alguns programas de rastreamento de câncer em países de média e baixa renda. Em estudo realizado no Reino Unido, estimou-se, por modelagem de base populacional, entre 3.291 e 3.621 mortes adicionais por câncer de mama, de esôfago, de pulmão e colorretal no período de cinco anos, como resultado dos atrasos no diagnóstico desses tipos de câncer atribuídos à pandemia”, descreve o artigo Efeitos de curto prazo da pandemia de COVID-19 na realização de procedimentos de rastreamento, investigação diagnóstica e tratamento do câncer no Brasil: estudo descritivo, 2019-2020, publicado pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA) José Alencar Gomes da Silva, Divisão de Detecção Precoce e Apoio à Organização de Rede, e escrito pelas pesquisadoras Caroline Madalena Ribeiro, Flávia de Miranda Correa e Arn Migowski.

O mesmo estudo apurou que no Brasil, apenas no período descrito, “houve redução de 3.767.686 (44,6%) exames citopatológicos do colo do útero e de 1.624.056 (42,6%) mamografias em relação aos dados correspondentes de 2019”. Em linhas gerais, apenas os tratamentos com quimioterapia se mantiveram estáveis, ainda que alguns pacientes em situação não urgente tivessem sessões postergadas por conta da falta de leitos ou da política de prevenção ao contágio.

“As taxas médias de internação hospitalar para tratamento clínico de câncer diminuíram de 13,9 para 10,2 por 100 mil habitantes, entre 2019 e 2020, representando uma diferença de taxas de 3,7/100 mil habitantes. As admissões para tratamento oncológico cirúrgico mostraram um declínio da ordem de 5,8 por 100 mil habitantes, com diferenças regionais a variar entre 2,2 e 10,8 por 100 mil habitantes, e queda mais significativa nas regiões Sul e Sudeste”, complementa o estudo do INCA.

Além disso, concorre para a intensificação da “pandemia da pandemia” o contexto de crise econômica associada à política de limitação de investimentos em pastas sociais, instaurada pela Emenda Constitucional 95, a chamada PEC do Teto de Gastos, aprovada em 2016, logo após o impeachment de Dilma Rousseff.

“Temos menos profissionais contratados hoje do que em 2013, ou seja, diminuiu a capacidade instalada de atendimento na atenção primária, que nem é a face mais dramática do sistema de saúde. Também sabemos que em São Paulo todas as UBS geridas por Organizações Sociais têm uma média de dois médicos a menos por unidade do que seria necessário, o que dá um déficit em torno de 1500 médicos. Considerando uma média de 4 atendimentos por hora, em jornadas semanais de 40 horas, chegamos a algo próximo de 960 mil consultas a menos disponíveis por mês. Portanto, o que a pandemia ressaltou em cirurgias eletivas, procedimentos ambulatoriais e de emergência, já existia na atenção primária”, ilustrou Victor Dourado.

Fátima Marinho não poupa críticas ao governo Bolsonaro, mesmo diante da excepcionalidade do contexto. “O desafio já estava colocado antes da pandemia. Isso tem de ser planejado, já se deve planejar mitigação de impactos diretos e indiretos de pandemias ou desastres. Não dá pra saber quando um fenômeno deste vai ocorrer, mas deve-se contar que um dia acontece. Deve-se antecipar aos fatos. Deve-se ter referências. Por exemplo: não se fez nada em relação a gestantes. Tivemos um excesso de mortes de gestantes. As mulheres queriam ter filho e não puderam. Por quê? Tinham covid e iam para uma enfermaria de covid. Não iam para uma referência obstétrica de covid. Tivemos partos induzidos e cesarianas em UTI de covid. E as mulheres morreram. São 4 milhões de partos por ano no Brasil. Era óbvio que isso ia acontecer”.

Elaboração: CFM


Aumento da demanda por serviços de saúde

Com o avanço da vacinação na população e a retomada de boa parte das velhas rotinas, naturalmente a busca pelos procedimentos adiados se acentuou. O número de cirurgias eletivas, isto é, aquelas que não são tidas como urgentes, voltou a subir, mesmo que ainda não tenha recuperado os patamares de 2019. De acordo com o Ministério da Saúde, o primeiro semestre de 2021 registrou 50 milhões de procedimentos médicos ambulatoriais eletivos, aumento de 20% em relação ao mesmo período de 2020 (41,6 milhões). O número ainda é 14% inferior ao primeiro semestre de 2019.

“Dentre as soluções propostas para enfrentar esse desafio estão a realização de campanhas voltadas aos pacientes, especialmente aqueles com doenças crônicas, para que não abandonem seus tratamentos. Por meio das redes sociais e imprensa, diversas organizações já têm defendido que muitas doenças não podem esperar e, quanto antes forem diagnosticadas, melhor será o resultado de seu tratamento”, propõe o CFM.

Alessandro Bigoni, que destaca o sucesso do SUS em campanhas anteriores de controle e rastreamento de epidemias, como zika e H1N1, explica que investir em aspectos preventivos – e mais baratos – da saúde será fundamental. “É necessário investir novamente em diagnóstico em atenção primária de saúde, conscientização da população para que mantenha exames de rotina, procure médicos. Não se sabe ainda a extensão deste problema para o futuro”, alertou.

Tanto nos referidos estudos como nas entrevistas realizadas pelo Outra Saúde, o diagnóstico a respeito da necessidade de ampliação do sistema público de saúde é unânime. E isso inclui novas estratégias e ferramentas ainda pouco utilizadas, a exemplo da telemedicina, entre outras possibilidades.

De acordo com a OMS, o país tem gasto per capita no setor de 610 dólares (R$ 3.380), enquanto as nações ricas superam a casa dos US$ 2 mil. Como mostrou matéria do Outra Saúde, o Conselho Nacional da Saúde (CNS) apresentou proposta formulada na Associação Brasileira de Economia da Saúde (AbrES) que prevê o aumento progressivo da percentagem do PIB para investimentos públicos em saúde, o que elevaria o investimento per capita a 1.375 dólares. Francisco Funcia, economista membro do CNS, “sugere a taxação de grandes fortunas, a ampliação dos recursos do pré-sal para a Saúde e, em momentos de crise, a emissão de dívida por parte do Estado, vinculada a gastos com os chamados ‘efeitos multiplicadores’”.

“É fundamental o desenho de estratégias para amenizar danos dos possíveis atrasos resultantes da presença da COVID-19. Entre essas estratégias, cabe citar as seguintes iniciativas, incluídas no levantamento realizado pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer: 1) o desenvolvimento de aplicativos ou linhas de telefone específicas, para agendamento de consultas oncológicas e esclarecimento de dúvidas; 2) os laudos de exames de rastreamento disponibilizados online; 3) a teleconsulta para indivíduos com testes positivos; 4) o transporte gratuito para indivíduos com teste de rastreamento positivo; 5) o engajamento de jovens voluntários que identifiquem e apoiem indivíduos necessitados, com dificuldades de acesso ao atendimento oncológico”, elenca o estudo do INCA.

Para Victor Dourado, são momentos como esse, e não de bonança, que exigem a expansão de sistemas de saúde como mecanismos de controle de crises com repercussões que vão muito além da saúde. A própria criação do SUS em meio à violenta crise brasileira dos anos 80, além do sistema público de saúde britânico criado no pós-segunda guerra e o Obamacare na esteira do crash de 2008-09, são as provas de sua tese.

“Em 2013, 2014, tivemos um aumento substancial dos usuários de planos privados. Depois começou uma diminuição, mas menos intensa do que vemos agora, sob impactos da crise econômica. Isso porque boa parte dos planos é feita por empresas, em acordos de cobertura coletiva. Ou seja, a pessoa precisa estar empregada para ter plano de saúde. Com o avanço do desemprego isso piorou. Portanto, a situação econômica de depressão vai, sim, pressionar mais o sistema público. Estamos diante da possibilidade de sair da pandemia e regredir a uma situação pior do que se via antes da pandemia, que já era preocupante, por conta de todo o contexto econômico que tem perdurado”.

Líbia Bellusci, do Fórum Nacional de Enfermagem, concorda: “o acúmulo nas filas de atendimento, que já existiam e só aumentaram, e o surgimento de pacientes sequelados por covid com certeza levarão anos para serem normalizados, demandarão dos governos, em todos os níveis, uma atenção muito maior, com mais investimento e planejamento. Sem contar que, por conta da campanha contra a vacinação, o Brasil nunca vacinou tão pouco as crianças, o que deve acarretar o reaparecimento de doenças que já não existiam mais”.

Em um dos contextos políticos mais acirrados da história, um tema desta envergadura pode ser ofuscado, mas em algum momento o Brasil terá de se deparar com a lista de desafios que a pandemia apresentou: financiamento e expansão da saúde pública em tempos de hegemonia ideológica neoliberal, monitoramento de um vírus que não foi erradicado, recuperação e até superação dos níveis anteriores de atendimentos à população, recuperação de altas taxas de vacinação, estancamento das chamadas mortes excessivas, redução das desigualdades regionais, raciais e econômicas em saúde. Uma pauta extensa que inevitavelmente se colocará diante dos principais grupos e atores políticos do país.

Profissionais e usuários do sistema de saúde: duas faces do sofrimento

Luiza*, gestora de um centro de reabilitação na região metropolitana de São Paulo, relata a exaustiva rotina à qual foram submetidos os trabalhadores da saúde pública desde o início da pandemia.

“Pessoas identificadas como grupo de risco deixaram de ir, e vários atendimentos que eram em grupo tiveram de mudar, em tempo recorde. Ainda tivemos de incorporar o uso de tecnologias novas nos atendimentos, e não tínhamos aparelhos suficientes para passar ao teleatendimento, que chegou a 90% dos atendimentos”, relembra.Em meio ao recrudescimento do coronavírus, os profissionais de saúde passaram a se desdobrar em acúmulo de funções, inclusive a ponto de atenderem em unidades diferentes das que trabalhavam antes.

Ela afirma que a sobrecarga de trabalho amainou o represamento de acompanhamentos médicos, mas considera necessário levar em conta que diversos contextos da vida cotidiana das pessoas se alteraram.

“A própria dinâmica de relação com o serviço de saúde sofreu uma piora, não só por conta de adiar atendimentos, mas por conta de necessidades básicas que têm acometido as pessoas. Estamos nos organizando pra conseguir roupas, cestas básicas, as pessoas perderam direitos na pandemia, como na redução do cartão de transporte em São Paulo, pessoas com deficiência que não puderam renovar seus cartões, pois serviços públicos como a SPTrans também se tornaram online, escolas fecharam… Tem um represamento grande de procedimentos ditos não urgentes, mas mesmo quando liberados as pessoas não conseguem acessá-los por conta de fatores associados”.

E se antes já existiam, agora as filas por cirurgias de pequena, média ou alta complexidade, eletivas ou não, aumentaram ainda mais. São cerca de 320 mil pessoas na fila de espera por cirurgias somente no estado de São Paulo, de acordo com informação da Secretaria de Saúde. Um dos que aguardam ansiosamente pela sua vez é Leonete Amaral da Silva, ex-produtor de vídeo, cujas dores no púbis após uma hepatite que o deixou um mês internado evoluíram para artrose.

“A saga começou em 2016. Passei pelo ortopedista, tentei homeopatia pra melhorar e acabei indo para a resolver essa artrose do quadril ao esquerdo. Recebi auxílio-doença por um ano, mas depois foi suspenso. Até hoje luto por auxílio-doença ou aposentadoria, mas nada sai”.

Sua história é ilustrativa de um Brasil que não sai no noticiário, mas vive na carne a realidade das reformas liberais ditadas de cima para baixo na sociedade brasileira, sem qualquer anuência de representantes do mundo do trabalho e, grosso modo, sem voto. Desfinanciamento da seguridade social e rebaixamento de direitos trabalhistas se tornaram lei e se traduziram em desemprego, subocupação da força de trabalho, queda na renda média e novos vínculos entre capitalistas e trabalhadores que o Estado ainda engatinha em reconhecer.

“Trabalhava com comunicação visual, estruturas grandes, subindo e descendo escada. Hoje não consigo mais fazer isso. Tive de fechar a firma, vender meus equipamentos, não podia fazer os serviços de antes. Eu nem poderia estar trabalhando, mas sem auxílio-doença nem nada virei motorista de aplicativo pra não ficar sem renda, pois o benefício do INSS é sistematicamente negado”, diz Leonete, que hoje anda de bengala.

Experiente em lidar com essas múltiplas dimensões que entram numa sala de consulta, Luiza faz uma análise abrangente de todos os condicionantes das atuais necessidades em saúde e da diversidade de caminhos a trilhar na sua resolução.

“Temos vários déficits assistenciais e não temos políticas significativas de incremento do serviço de saúde. Existem ações do tipo mutirão pra mitigar os efeitos da ‘pandemia da pandemia’, que tem efeitos muitos diferentes em locais e classes sociais. Em São Paulo isso é bem perceptível. Na periferia não houve isolamento real. O pós-pandemia traz agravamento nas condições de saúde que não vai ser resolvido apenas com aumento no atendimento clínico e consultas. A piora nas condições de saúde é geral, mental e física. Não é só garantir mais profissionais de saúde. Falamos de gente que deixava filhos com parentes que morreram, que se cuidam menos por conta da falta de dinheiro e não fazem acompanhamentos que lá frente se refletem em um câncer… Não é só atender mais. É garantir condições gerais de promoção da saúde da população”, explicou a gestora.

“A lógica não é de aumentar a qualidade dos serviços em saúde, mas os lucros. Em SP, com a fila das cirurgias, vimos a proposta de pagar em dobro os hospitais privados para diminuir o déficit. Mas isso não é feito de forma emergencial e está associado à diminuição da estrutura pública, recorrentemente. Em meio a crises, vemos processos de transferência de recursos para o setor privado. No RJ, hospitais de campanha foram financiados por dinheiro público em estruturas privadas. Além de cortar dinheiro do sistema público, transfere-se o que tem para o setor privado. Difícil não concluir que a crise da saúde pública não seja um projeto político. É o que, em boa parte, explica os lucros do setor privado no meio da pandemia”, critica Victor Dourado, do Simesp.

“Agora estou tentando vaga na ortopedia do Hospital do Servidor Municipal, capaz de cirurgias um pouco mais complexas. É outra batalha, há muita reclamação em relação a isso, porque toda primeira consulta tem de ser através do sistema público, ou seja, preciso passar de novo por cardiologista, ortopedista, e não tem vaga. Preciso de remédio pra dormir, senão não aguento nem virar na cama… É todo um sofrimento físico e emocional”, conta Leonete.

Por sua vez, Luiza lamenta a falta de visão a respeito de questões estruturantes que fatalmente repercutirão no sistema público de saúde.

“Há menos gente nas universidades, alunos que não puderam continuar em faculdades privadas por falta de condições em pagar e uma consequente diminuição no número de profissionais formados. Tento ser otimista com a política pública, mas vejo que há tempos não se investe em equipamentos. Temo viver uma lógica de mutirão permanente, de sempre correr pra tapar um buraco, mas sem investir estruturalmente no SUS. Porque mutirão em ortopedia gera uma demanda nova por fisioterapia, por profissionais capazes de atender, equipamentos disponíveis…”

Esposa de Leonete e enfermeira do Dante Pazzanese durante 25 anos, Ana Firmino conhece as disputas políticas em torno do financiamento do setor e é enfática: “o setor privado de saúde é o que mais lucrou na pandemia”.

* O nome da servidora pública de saúde e seu local de trabalho foram preservados com fins de se evitar retaliações

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