Máscaras: o bode na sala dos negacionistas

Estadão precipita-se em traduzir matéria de conservador norte-americano ironizando a necessidade de máscaras para proteção contra covid – e abre espaço para mentiras. Meta-análise muito questionada foi usada como base

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Em fevereiro, o renomado Instituto Cochrane publicou uma metanálise de variadas pesquisas a respeito do uso de máscaras na pandemia. Precipitada e equivocadamente, como já demonstrado no Outra Saúde e por diversos especialistas, esta sistematização randomizada de estudos que não compartilhavam metodologias e mesmo objetivos em comum foi usada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) para se pronunciar contra o uso de máscaras em locais públicos.

Não era ponto sem nó. Comprometido até os dentes com o bolsonarismo, o CFM quis satisfazer a gritaria da extrema-direita com a qual se alinha e, dessa forma, legitimar o discurso negacionista que tantos crimes cometeu no Brasil. Isso num contexto em que a CPI da Pandemia indiciou 72 pessoas por suas responsabilidades na condução desta crise sanitária – entre elas o próprio presidente do CFM, Mauro Ribeiro.

Nos EUA, líderes mundiais de mortes e onde o negacionismo também falou alto, o impacto foi grande. “Fiquei impressionado com a repercussão desta revisão do Cochrane. Mas trata-se de um ‘estudo de vários estudos’. Não podemos comparar laranjas com maçãs. Não podemos tirar uma conclusão geral, muitos estudos apenas se ocupavam de saber quão protegido estava o usuário da máscara, até porque a ideia de máscara é não infectar o próximo, não apenas ficar imune”, explicou ao canal CBS 17 a médica Emily Sickbert-Bennett, da Universidade da Carolina do Norte, que coordenou pesquisas sobre a adesão ao uso de máscaras e seus diferentes tipos pela população.

Inadvertidamente, o jornal O Estado de S. Paulo traduziu artigo de opinião do jornalista estadunidense Bret Stephens. Colunista do NY Times com passagens pelo Wall Street Journal e Fox News, o jornalista utilizou a questionada revisão do Instituto Cochrane para reabilitar os supostos “perseguidos” pela opinião pública e demonizar aqueles que sempre defenderam políticas rigorosas de controle do vírus. Seu artigo em tom debochado se utiliza de um diálogo da jornalista Maryanne Demasi com Tom Jefferson, epidemiologista de Oxford, para sustentar que estaria provado que as máscaras sempre foram uma farsa e seu uso não ajudou em nada na contenção do vírus. Suficiente para assanhar comentários do tipo “Bolsonaro tinha razão” nos sites e redes sociais.

Maryanne Demasi é uma apresentadora de TV que, entre outras polêmicas sobre saúde pública, afirmou que o Food and Drug Administration (FDA) mentia sobre a efetividade de vacinas e que deveriam ser suspensas. Trabalha para o canal australiano ABC e sustenta ideias como “colesterol alto não favorece doença cardiovascular”. Sua formação acadêmica é marcada por desconfianças e objeções oficiais a respeito da idoneidade de suas pesquisas.

Quanto a Bret Stephens, trata-se de um conservador e ideólogo de uma supremacia global norte-americana, como se pode concluir de seus dois livros (Has Obama Made the World a Dangerous Place? e America in Retreat: The New Isolationism and the Coming Global Disorder) nos quais teoriza que Barack Obama teria enfraquecido o protagonismo global dos EUA e sua suposta necessidade de intervencionismo em todo e qualquer lugar do mundo. Não é muito difícil identificar os ranços que norteiam seu tortuoso raciocínio, que parte inclusive de questionamentos das raízes culturais do único presidente negro da história deste país.

Curiosamente, o mesmo Instituto Cochrane publicou revisão na qual afirma não haver evidência de eficácia da ivermectina no combate à covid – mas neste caso não houve repercussão nos setores militantes do negacionismo científico.

Por fim, como mostrou matéria do Globo com a opinião de diversos especialistas, é possível debater a necessidade do uso de máscaras no atual estágio da pandemia, em que há uma alta taxa de vacinação da população. Hoje mesmo, o ministério da Saúde suspendeu sua obrigatoriedade em aviões e aeroportos. Especialistas comprometidos divergem a respeito de seu uso por grupos de maior ou menor risco, locais fechados e mesmo os ventilados. Mas não há o mínimo espaço para o debate a respeito de uma suposta inutilidade da máscara como método preventivo. Todos são claros em afirmar que a randomização produzida pelo Cochrane não tem valor metodológico, uma vez que não possui grupo-controle – isto é, um grupo que tenha sido monitorado constantemente no uso, ou não, de máscaras. O próprio instituto é taxativo em dizer que sua meta-análise não é conclusiva.

Estamos diante de um bode colocado na sala por interessados em limpar a ficha de quem cometeu crimes contra a saúde pública durante os momentos mais graves da pandemia.

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