O que esperar do 13º Congresso de Saúde Coletiva

O Abrascão começa neste sábado, em Salvador. Rosana Onocko, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva fala sobre as expectativas para o evento. E afirma: celebramos o novo governo Lula, mas sabemos que teremos que continuar exigindo mudanças

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Rosana Onocko em entrevista a Alessandra Monterastelli

Em sua 13º edição, o Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva – conhecido como Abrascão – terá como tema principal “Saúde é democracia: diversidade, equidade e justiça social”. O evento reunirá pesquisadores, sanitaristas, especialistas e trabalhadores da saúde em Salvador, do dia 19 a 24 de novembro, para discutir temas centrais para a Saúde no Brasil hoje.

O último encontro ocorreu em 2018, antes da pandemia de covid-19. “Nessa edição teremos um sabor de reencontro e comemoração”, afirmou a médica, professora da Unicamp e Yale e especialista em Saúde Coletiva, Rosana Onocko-Campos. A presidente da Abrasco conversou com o Outra Saúde sobre os destaques do evento, as dificuldades para se pensar em Saúde Coletiva no Brasil de hoje e as perspectivas com a eleição de Lula. Para ela, o financiamento do Sistema Único de Saúde será uma pauta central – e muito disputada – nos próximos quatro anos. 

“A Saúde é um campo cheio de dinheiro. Enquanto nós, da saúde pública, falamos na saúde como um direito de todos e um dever do Estado, temos pessoas lucrando muito com os problemas do funcionamento no Sistema”, afirmou Campos, referindo-se ao interesse do setor privado na área. O Congresso, que ocorre durante a Consciência Negra, terá em sua cerimônia de abertura uma homenagem aos pesquisadores e pesquisadoras negros e seu legado. 

Fique com a entrevista completa.

Outra Saúde: Quais atividades vão ocorrer durante o Congresso? Você poderia citar o que acredita serem alguns destaques, quero dizer, quais temas estarão presentes que você acredita serem centrais no debate sobre Saúde para o Brasil hoje?

Acho que é central destacar o tema do Congresso. Quando decidimos retomar o lema da 8ª Conferência Nacional de Saúde [que ocorreu em 1986 e deu as bases para a construção do SUS], “Saúde e Democracia”, estávamos em um momento muito difícil: não sabíamos se chegaríamos ou não às eleições. Decidimos também acrescentar ao título as palavras “equidade, diversidade e justiça social”, que remetem aos nossos problemas contemporâneos. 

Nosso Congresso é muito grande, temos mais de 300 atividades, serão apresentados 7 mil trabalhos, acontecem muitas coisas simultaneamente… é muita riqueza e eu não queria destacar algo para passar a impressão equivocada de que uma coisa é mais importante do que a outra. Mas acho que a marca que o  Congresso quer deixar estará bem refletida em três grandes debates, que acontecerão no fim de cada tarde, com a presença de todos os congressistas. O primeiro será no dia 21/11, “Brasil e o Planeta Terra”; o segundo, dia 22/11, “Diversidade da Saúde e Reconstrução Democrática”; e, por fim, no dia 23/11, “Equidade e Justiça Social, a Luta Continua”. Eu acho que  é um percurso que tem mostrado a forma como a saúde e a saúde coletiva estão entrelaçadas com a questão da democracia. 

Neste próximo governo, se iniciará a retomada do mecanismo da nossa democracia, mas não é por isso que conquistaremos de imediato a justiça social, sabemos que será um período bastante difícil. 

Nós trabalhamos vários meses antes do Congresso na articulação com movimentos sociais da Bahia e região para que eles nos ajudassem a construir uma agenda de pesquisa e intervenção. esse pra mim é um ponto alto, no sentido da academia se abrindo para o que o povo e as pessoas têm a dizer. Foi um trabalho muito rico e coordenado localmente, para construir essa interface entre as demandas populares e as produções no campo científico. Se o Abrascão fizer andar “três casinhas” nesse sentido, vou ficar muito feliz. 

Teremos grandes nomes da Saúde Coletiva e teremos uma inovação que a gente nunca tinha feito, chamada de Café Intergeracional, em que jovens pesquisadores e estudantes pudessem se registrar para tomar café com pesquisadores de mais carreira. E foi interessantíssimo porque a gente abriu a inscrição e 24 horas depois todas as vagas já tinham sido preenchidas. Isso nos evidenciou que há um desejo dessas novas gerações de se aproximar das pessoas que são lidas nas bibliografias. 

Com a entrada do novo governo, espera- se que a juventude tenha mais oportunidades nessa área? 

Esse ano tivemos em várias universidades uma diminuição marcada do número de candidatos pro mestrado e doutorado acadêmico. Eu acho que isso tem a ver com a desesperança das pessoas e também com a realidade no Brasil de áreas como a tecnologia nos últimos seis anos, com o sucateamento de reajustes. Isso dificulta a dedicação exclusiva à pesquisa, fazer uma pós-graduação quando não se consegue viver do valor da bolsa. 

Você comentou, justamente, que esse Congresso acontece depois da pandemia. Qual a sua avaliação desde o último Abrascão, que foi em 2018?

O último Abrascão foi na Fiocruz, e já foi desafiador porque já não tínhamos financiamento. A Abrasco é uma entidade científica que não aceita patrocínios que possam causar conflito de interesses. Então nossas fontes de recursos são nossos associados institucionais e sempre tivemos algum tipo de apoio das Secretaria de Vigilância ou Estaduais. Mas já em 2018, com o governo Temer, não tivemos apoio. Tivemos uma contribuição grande da Fiocruz, claro. 

E este ano decidimos fazer em um centro de convenções, porque queríamos que fosse um lugar que nos juntasse mais. E por outro lado haverá duas questões importantes: faremos o lançamento de um dossiê que a Abrasco elaborou ao longo de toda a pandemia, sobre tudo que aconteceu, os efeitos, diagnósticos e sugestões e dedicamos um espaço grande para a “Experiência da Covid”, com uma linha do tempo da pandemia.

O Congresso vai acontecer em Salvador, durante o dia da consciência negra. Como a questão racial irá se refletir no evento? 

Essa questão da representatividade e equidade estará presente em todo o evento, durante as mesas e debates. Foi proposital que o evento se inicie no dia da Consciência Negra. Teremos, na mesa de abertura, uma homenagem a todos os pesquisadores e pesquisadoras negros, como forma de reconhecer que eles são pessoas de destaque em seus campos, dentro da Saúde Coletiva, mas que com certeza precisaram enfrentar obstáculos diferentes dos brancos. Acredito que será um momento muito emocionante. Em um Congresso que trata sobre justiça e equidade social, uma das principais mazelas que queremos combater é, sem dúvida, o racismo. 

Acabamos de ter a eleição de Lula, e o Congresso acontece um pouco antes da posse no dia 1º de janeiro. Qual o significado da proximidade dessas datas?

Escolhemos essa data porque se tivéssemos uma notícia boa, comemoraríamos, e se tivéssemos uma notícia ruim – no caso da vitória de Bolsonaro – deveríamos nos preparar para a resistência e para enfrentar os próximos quatro anos. Esse governo terá a marca da alegria e segurança. A Abrasco está com as entidades e na Frente pela Vida, discutindo o fortalecimento o SUS, a defesa da saúde pública e do direito dos trabalhadores, enfim, uma série de pautas que estavam inclusive citadas na carta que entregamos ao presidente Lula em agosto. Mas eu acho que está claro, agora que estamos acompanhando a composição da equipe de transição, que esse é um governo de transição também, de uma aliança ao centro-direita. Então haverá uma disputa constante e uma necessidade de empurrar a fronteira pro lado certo, digamos. Vamos precisar fazer isso o tempo inteiro, porque estamos falando de interesses muito poderosos, a saúde é um campo cheio de dinheiro. Enquanto nós, da saúde pública, falamos na saúde como um direito de todos e um dever do Estado e elaboramos propostas técnicas e políticas com esse fim, temos pessoas lucrando muito com os problemas do funcionamento no Sistema. Isso é desde as pequenas clínicas de bairro até os grandes laboratórios. É muito complexo o campo de interesses com o qual se disputa um SUS público e de qualidade para o povo brasileiro. 

De que maneira você acredita que o Congresso pode influenciar nas futuras políticas de saúde?

Eu não acredito em mágica, não acredito que o Congresso irá interferir no próximo governo. O que está influenciando o próximo governo – e não tanto quanto gostaríamos – é toda a luta que fizemos nesses últimos anos, na organização de frentes, nas campanhas, nas discussões sobre o tema; pela primeira vez, por exemplo, teremos uma campanha de marketing social, que se chama “Fortalecer o SUS” e que já teve mais de 80 mil assinaturas. Vamos precisar continuar demandando. 

Quais são as principais cobranças, no caso da área da Saúde, que vão precisar ser feitas? 

É preciso reestruturar o ministério da Saúde, voltar a trazer conhecimento científico, fortalecer a vigilância na saúde; eu acredito que todas essas coisas vão acontecer e será tranquilo. O tema que vai necessitar de mais vigilância nossa será a questão assistencial, da gestão do SUS como provimento de serviços. Porque é aí que a disputa distributiva se coloca e que o setor privado entra com muita força. Nós vamos ter que insistir muito na necessidade de aumentar o caráter público do SUS. Eu não tenho a menor dúvida de que esse será o tema divisor de águas do próximo governo na questão da Saúde. Me deparo com frequência com pessoas que se dizem progressistas, por exemplo, mas acham que o que é público não tem jeito. É uma disputa muito grande, parecida com a reação do mercado ao discurso recente do Lula: o tempo todo o tabuleiro é movimentado para que essa questão não seja discutida. O que me deixa otimista é que nós estamos conseguindo colocar essa discussão. 

Quando começamos a discussão do SUS na Frente pela Vida ninguém reconhecia que precisávamos de mais financiamento, quanto falamos nisso falavam que era mal administrado, mas fomos insistentes, juntando gente, entidades. Nas eleições, com exceção do Bolsonaro, todos os outros candidatos precisaram dizer que iriam aumentar os recursos federais para o SUS. Isso, na minha opinião, foi um sucesso na nossa luta. Um tema como esse na agenda é um tabu, de falar de mais recursos públicos para o SUS. Alguns ministeriáveis começaram a falar em carreira no SUS; isso antes era proibido, mal visto. Claro que precisamos discutir as metas, mas o fato de que isso está na pauta já é muito importante. 

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