O último manicômio e a luta da Reforma Psiquiátrica

A Colônia Juliano Moreira, no RJ, fechou enfim as portas. Paulo Amarante, um dos protagonistas da luta antimanicomial, reflete sobre o significado do acontecimento e as perspectivas para que se encerre a lógica de encarceramento

Fotografia de uma obra do artista plástico Bispo do Rosário, um dos internos da Colônia Juliano Moreira
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No dia 27 de outubro, um fato histórico marcou a luta pelo direito à saúde no Brasil. Foi definitivamente encerrada a Colônia Juliano Moreira, hospício e manicômio que começou a ser construído em 1919, onde milhares de brasileiros e brasileiras foram atirados para dali nunca mais saírem em condições dignas. Se a jornalista Daniela Arbex estava correta em definir a história manicomial brasileira como um Holocausto, a Colônia localizada em Jacarepaguá teria sido algo como o campo de concentração de Auschwitz ou Dachau. Sob este marco, o Outra Saúde colheu um depoimento histórico de Paulo Amarante, um dos protagonistas da luta antimanicomial do país.

Amarante, psiquiatra e um dos idealizadores do SUS, expressou verdadeira alegria em comentar o encerramento de atividades da Colônia, durante o depoimento de cerca de uma hora que gravou ao Outra Saúde. Trata-se de uma história amarga do nosso país. Diante do contexto político e eleitoral tão acirrado, não teve repercussão à altura. 

“Quando a colônia foi inaugurada, o então diretor responsável pela fundação, o Rodrigues Caldas, um alienista – termo da época, inclusive usado como título de livro de Machado de Assis; não era psiquiatra, era alienista – empolgado com aquele espaço, lá em 1923, faz um discurso histórico, considerado uma denúncia. Ele fala ao ministro dos Negócios Exteriores, Alfredo Pinto, que a gestão dos loucos tinha de ficar a cargo do ministério da Saúde, o que não acontecia. Ele diz que ‘em nome ciência e da ordem pública esse espaço vai permitir trazer para cá todos os indesejáveis, inimigos da ordem pública, todos os loucos, os vagabundos, os iracundos, os indesejáveis portadores de delírio vermelho, que defendem as teorias anarquistas, comunistas e bolcheviques’”.

“Quantas pessoas não foram internadas indevidamente… Mulheres eram jogadas lá porque engravidaram antes do casamento e a família tinha vergonha. Vi uma mulher internada numa instituição porque a família tinha vergonha dela, pois quando era criança foi diagnosticada como anã. A família mandou para lá e ela foi socialmente enterrada. Foram muitas situações assim. Me lembro que uma vez, quando iniciamos todo esse trabalho, descobrimos um cemiteriozinho no fundo da colônia, com corpos de crianças. Nunca soubemos se eram filhos de funcionários com internas, o que eram essas crianças, quando nasceram, já que havia ditadura, tinha áreas exclusivas a militares… É uma alegria ver essa página se fechar.”

Feliz com a derrota de Bolsonaro, Paulo Amarante deixa claro que as tendências de extrema-direita das políticas recentes também tiveram reflexos negativos na área da saúde mental, com o retorno de velhos e fracassados dogmas, a serviço de uma política que resguarda fortes interesses econômicos.

“As comunidades terapêuticas são uma grande falácia, uma farsa, um projeto importante seria envolver as pessoas nos tratamentos, numa construção coletiva, para colocar no lugar desses depósitos de gente, que se tornam centros de formação religiosa e também um mercado, um capital político, já que as comunidades terapêuticas recebem fortunas do Estado e fazem clientelismo com famílias, desmontam e desfinanciam a reforma psiquiátrica”.

Arthur Bispo do Rosario, o artista “louco”, faleceu na Colônia Juliano Moreira

Caberá ao novo governo um foco renovado na política de saúde mental. Retomar os avanços da Reforma Psiquiátrica, mesmo de forma crítica, como pede Amarante. Mas, acima de tudo, tornar lugares como a Colônia Juliano Moreira páginas de um passado a ser visitado apenas por meio de livros. Como escreveu Lima Barreto, que passou meses na Colônia, local de inspiração de sua autobiografia Diário de um Hospício e cuja morte acaba de completar 100 anos, foi o “cemitério dos vivos”.

Leia o depoimento de Paulo Amarante ao Outra Saúde.

Paulo Amarante

Como você recebeu a notícia do fechamento da colônia Juliano Moreira no Rio de Janeiro, talvez um dos centros psiquiátricos, manicomiais, mais emblemáticos da história do Brasil?

Com muita alegria, até porque sou um dos protagonistas desse processo. No ano passado houve também o fechamento do centro psiquiátrico Pedro II, que passou a chamar Instituto Municipal Nise da Silveira, deixou de ser manicômio e se tornou centro de saúde mental, assim como a colônia, com vários projetos de cuidados, inclusão pelo trabalho, arte-cultura, CAPS…

O Instituto Municipal nasceu com o nome de hospício Pedro II, instituído pelo próprio Pedro II na data de sua sagração como imperador aos 14 anos, daí o nome da instituição, localizada na Praia Vermelha, em Botafogo. Hoje é um fórum de ciência e cultura da UFRJ. É o prédio em que nosso Lima Barreto esteve internado e escreveu o Diário de um Hospício (autobiografia)e O Cemitério dos vivos (romance que não chegou a terminar), chamado de palácio dos doidos. Ele foi criado em 1851 com todas as pompas, copiando os prédios europeus etc., e foi encerrado agora. Depois passou a chamar Hospício Nacional de Alienados, quando foi criada a República. Anos depois, quando a área ficou valorizada, a universidade mudou com tudo dentro e passou a chamar Centro Psiquiátrico Pedro II, aonde eu também trabalhei e começamos esse processo de Reforma Psiquiátrica. Depois, o local passou a chamar Nise da Silveira.

São dois hospícios emblemáticos de um modelo, de uma era, que pretendemos ultrapassar. Depois de várias medidas contrárias ao que nós fizemos, o fechamento da Colônia Juliano Moreira é um evento importantíssimo, de um processo que começou no final dos anos 70, início dos 80, um processo crítico que não colocava tais locais como centros de exclusão, violência.

A colônia Juliano Moreira tinha uma ala dedicada a pessoas com problemas políticos, o exército tinha domínio muito grande lá. Em 1988, quando nós tivemos eleição para diretor da Colônia, de modo a representar todo o processo de abertura, de envolvimento, inclusive com a participação de usuários, somos cercados pelo exército, tem fotos disso, com tanque de guerra na frente de psicóloga, assistente social, enfermeiros, ali totalmente desarmados, apenas fazendo resistência e luta contra aquela instituição arcaica.

Quem geria eram duas instituições públicas federais, ligadas ao ministério da Saúde, e mesmo depois de a capital mudar pra Brasília elas continuaram com o ministério, porque o governo do estado Rio não conseguia fazer sua manutenção, as pessoas não eram tratadas como gente, era muito abandono e tudo mais, assim como o centro do Juqueri, em São Paulo, a colônia de Barbacena em Minas… Conheci quase todos os manicômios do Brasil, de norte a sul. Viajei pelo país inteiro, Amazonas, Belém, era mais ou menos a mesma coisa: pessoas pobres, grande maioria negras, indígenas, pessoas do campo, eram cenas terríveis. Uma vez fotografei uma mulher que foi esquecida em uma cela-forte por anos, o corpo ressecou, ficou mumificado, petrificado. Gente do Globo tem essa foto. 

Esses dois centros são de fato emblemáticos e foi nesses locais que começou o processo de luta que chamamos de Reforma Psiquiátrica, movimentos de luta e resistência. Neste ano faz 40 anos do início do curso de saúde mental na colônia, assunto no qual a universidade não queria tocar. Ela formava um profissional liberal para consultório, hospital privado, supostamente o certo, e não queria se envolver com assistência pública. Então, a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto de Medicina Social da UERJ fizeram uma aliança – a Fiocruz não era universidade, era uma instituição de pesquisa – e conseguimos começar esses cursos. A maior parte dos pioneiros da reforma psiquiátrica do Brasil, a fundação dos CAPS, centros de acolhimento, entre outros projetos, nasceu deste curso, de onde tiramos coordenadores nacionais de saúde mental, estaduais, gestores municipais…

Portanto, é com muita alegria que vemos o fechamento da colônia Juliano Moreira, por mais difícil que seja, apesar da conjuntura desfavorável, contrária à reforma psiquiátrica e favorável a uma visão manicomial, fascista e tudo mais que vivemos nesse momento, como retomada da extinta governação de saúde mental, ações tomadas a partir do Ministério das Cidadania em uma política absolutamente conservadora, comprometida com interesses privados, mesmo depois de termos fechado aqueles espaços. Por isso o fechamento da Colônia Juliano Moreira é tão simbólico. Não sei se as pessoas têm consciência de porquê chamava colônia, mas era uma ideia de afastar da cidade, do espaço urbano comum, as pessoas loucas, indesejáveis, transferi-las para longe. Era como as colônias penais, instituições isoladas, fechadas. A colônia tem um terreno em torno do tamanho de Copacabana. É uma fazenda. Era um local onde o trabalho dito terapêutico era na verdade um trabalho forçado, algo próximo ao trabalho escravo, alienado. Por isso as colônias eram retiradas da cidade, antigamente era uma viagem ir até lá. A primeira colônia brasileira foi a da Ilha do Governador, tinha isolamento físico, só dava pra chegar de barco, tais como as prisões da Ilha Grande, ou de Alcatraz, ou a famosa ilha de Lesbos na Grécia antiga. O conceito era esse.

Quando a colônia foi inaugurada, o então diretor responsável pela fundação, o Rodrigues Caldas, um alienista – termo da época, inclusive usado como título de livro de Machado de Assis; não era psiquiatra, era alienista – empolgado com aquele espaço, lá em 1923, faz um discurso histórico, considerado uma denúncia. Na época teve uma repercussão enorme. Ele fala ao ministro dos Negócios Exteriores, Alfredo Pinto, que a gestão dos loucos tinha de ficar a cargo do ministério da Saúde, o que não acontecia. Ele diz que “em nome ciência e da ordem pública esse espaço vai permitir trazer para cá todos os indesejáveis, inimigos da ordem pública, todos os loucos, os vagabundos, os iracundos, os indesejáveis portadores de delírio vermelho, que defendem as teorias anarquistas, comunistas e bolcheviques”. Num momento de empolgação ele falou o que não podia. Além da ideia de ser local de tratamento, uma casa de recuperação, que talvez tivesse muito a ver com penitenciárias, não era um local de tratamento médico; ele fala desse conceito dos loucos, vagabundos, retardados, e depois marxistas, anarquistas, bolcheviques.

Por isso é tão simbólico encerrar e enterrar essa instituição. Lembro que uma vez, quando iniciamos todo esse trabalho, descobrimos um cemiteriozinho no fundo da colônia, com corpos de crianças. Nunca soubemos se eram filhos de funcionários com internas, o que eram essas crianças, quando nasceram, já que havia ditadura, tinha áreas exclusivas a militares… É uma alegria ver essa página se fechar.

Tenho 70 anos, sendo 40 dedicados a este movimento e fico feliz de ver que é possível construir outra forma de tratar pessoas, que não passe pela exclusão do convívio social, pela violência. Quantas pessoas vi que passaram por lá e saíram para uma vida melhor no meio social depois de serem diagnosticadas como pacientes crônicos, irrecuperáveis… Muitos que ficaram lá nem tomavam mais remédios, a própria instituição se encarregava de apenas isolá-los do mundo e eles ficavam lá. Como escreveu Lima Barreto: “cemitério dos vivos”. Não se tinha mais projeto de vida, não se tinha interesse de fugir. Ficava uma situação de aceitar aquilo.

Governo Bolsonaro, retrocessos e disputas em torno da Reforma Psiquiátrica.

Começamos a usar o termo Reforma Psiquiátrica de forma consciente lá nos anos 70 e 80, quando escrevi o livro Psiquiatria sem hospício, contribuições ao estudo da reforma psiquiátrica. Foi muito importante, no período da Conferência de Saúde Mental, um momento muito grave, em que seria inadequado colocar uma expressão mais ousada. O próprio Franco Basaglia, psiquiatra italiano, fundador do movimento da psiquiatria democrática, colocava assim, pois o termo democracia era subversivo na época. Dizíamos que a reforma não podia ser superficial, mas estrutural, uma adaptação gramsciana da discussão. Não era só uma reforma do modelo, fechar manicômio, que eram violentos e ineficazes. Mostramos também como eram caros, a fim de convencer dirigentes. Na época, um paciente custava algo como 1200 reais por mês. Coloca isso no papel, com 6 a 8 mil pessoas, fica caríssimo, ainda que houvesse muitos desvios e esse valor não chegasse aos internos em benefícios. 

Começamos a falar “olha, por que não tirar essas pessoas?” Podia-se colocar umas em casa, construir casinhas dentro da própria colônia, ou até fora, já que aquilo era quase um bairro, começar a cuidar dessas pessoas de maneira diferente, ter um ambulatório, um centro psicossocial, um projeto de inclusão, falávamos em oficina, atividades de geração de renda, em que elas, mais do que terapia, tinham um trabalho, podiam fazer jardinagem, atividades dentro de um processo de economia solidária. Elas fazem arte-cultura, artesanato, limpeza – afinal, quem limpava o local? Com o dinheiro gasto por interno aluga-se, e bem, uma casa no subúrbio do Rio. Mantém-se uma família. Quantas famílias têm 6 mil reais de orçamento, preço atual dos pacientes?

Começamos a montar uma equipe de saúde mental territorial, acompanhar as pessoas, que iam para as casas, saíam dos empregos, mas ficavam acompanhadas num processo regular, da própria equipe mental, como uma família, no território. Era uma questão de abrir outras possibilidade de vida.

Tire férias de poucos dias numa casa de campo: você já “fica doidinho”, esquece coisas simples. Imagina ficar anos numa instituição, sem televisão, sem rádio, só uma ou outra pessoa da enfermaria às vezes permitia isso. As pessoas perdiam noção, perdiam a identidade, o contexto político, o contato com uma perspectiva, uma noção de história. Ficavam desorientadas, mas não pela doença e sim pelo processo institucional de exclusão. Exclusão com violência. Mais do que sair, a pessoa precisa de outras possibilidades.

Quantas pessoas não foram internadas indevidamente… Mulheres eram jogadas lá porque engravidaram antes do casamento e a família tinha vergonha. Vi uma mulher internada numa instituição porque a família tinha vergonha dela, pois quando era criança foi diagnosticada como anã. A família mandou para lá e ela foi socialmente enterrada. Foram muitas situações assim. Tais pessoas podiam ter sido vistas na sua diversidade, capazes de serem grandes trabalhadores, artistas, exercer algo na vida.

Toda a estrutura capitalista é moldada para quem tem dois braços, duas pernas, dez dedos nas mãos, dez dedos nos pés, dois olhos, é capaz de produzir; não pode ser muito inteligente para não questionar, mas não pode ser tão inapto e não produzir.

Porém, a vida é diversa, as pessoas são diversas.

Pensando as cooperativas sociais, mais do que gerar uma renda, tal ideia, do movimento anarcossindicalista, visava concorrer com o capitalismo e sua visão de colocar as pessoas para trabalhar mal remuneradas, sem gratificação subjetiva, de forma alienada. Dentro da área de saúde mental pensamos algo assim, não só pra geração de renda, inclusão econômica, mas também inclusão social e subjetiva, a pessoa se sentir parte do coletivo, se ver reconhecida como alguém que faz, a possibilidade de ser outra coisa na vida. Chegamos perto, por exemplo, das cooperativas, das iniciativas de trabalho de povos quilombolas, ribeirinhos, nas quais o objetivo não é enriquecer, tirar tudo da terra, matar a floresta pra poder produzir e lucrar mais. O objetivo é sobreviver, no bom sentido, é ter outra relação com a terra, com os outros, com a sociedade.

A reforma psiquiátrica é um processo civilizatório, de mudança de concepção. É isso que fazemos quando tiramos pessoas ditas incapazes de manicômios e colocamos pra trabalhar em cooperativas ou outros locais. Elas perdem os estigmas e vivem de outra forma. Vivi dezenas, centenas de casos de pessoas que tinham escrito “incapaz” no prontuário e estavam no dia a dia trabalhando, compondo, cantando, a exemplo do bloco de carnaval do qual faço parte, criado por gente da reforma psiquiátrica e composto por pessoas diversas que passaram por nós.

Vejo compositores de mão cheia, elaboram temas, ajuda com os afazeres, têm uma criatividade enorme, uma capacidade manual. Eu aconselho todo mundo. As pessoas pensam que Carnaval é só ali naqueles dias ali e não entendem que tem um barraco o ano inteiro, composições, aula de bateria, de fantasia, elaboração entre cargos das cooperativas pra criar fantasias, ao invés de contratar uma empresa tem as costureiras… É uma forma de levantar a comunidade, de cuidar, dar identidade e pertencimento.

Foi assim que fechamos em torno de 70 mil vagas dessas instituições, como Barbacena, Juqueri, locais terríveis, que pareciam cavernas, com pessoas que dormiam no chão em capim, abandonadas sem roupa. Podíamos ter tirado até mais, mas ao criar o Centro de Atenção Psicossocial, o centro de convivência, residências internas assistidas, outros projetos de cuidados, nós impedimos que outros entrassem. Fizemos um processo belíssimo, que tentei colocar no livro que escrevi recentemente (Loucura e Transformação Social: Autobiografia da Reforma Psiquiátrica no Brasil). Afinal, tenho 70 anos, passamos por uma pandemia e quis demarcar que é possível fazer diferente. Como estão desmontando tudo, seria legal que pessoas de outras gerações soubessem. Se não se faz, é porque há interesse por trás, conforme vemos agora, com o retorno da chamada indústria da loucura, com empresários investindo nesse caminho. 

Por exemplo, eu acompanhei o fechamento de Juqueri, orientando uma banca de doutorado responsável por uma tese que condenou o processo de Paracambi, instituição psiquiátrica privada de um ex-ministro da Saúde do governo da ditadura, com 2500 leitos pagos pelo antigo INPS. Uma máquina de fazer dinheiro, com pessoas jogadas, sem tratamento, comiam macarrão com farinha, uma coisa absurda, o suco era um pacotinho de pó só pra dar cor, com o qual se fazia 10 de litros. Agora, esses “industriais”, grandes políticos, começaram a reinvestir em manicômio, com uma visão conservadora.

As comunidades terapêuticas são uma grande falácia, uma farsa, um projeto importante era envolver as pessoas nos tratamentos, numa construção coletiva, para colocar no lugar desses depósitos de gente, que se tornam centros de formação religiosa e também um mercado, um capital político, já que as comunidades terapêuticas recebem fortunas do Estado e fazem clientelismo com famílias, desmontam e desfinanciam a reforma psiquiátrica.

Vemos serviços fechados, desestimulados, transformados em pequenos ambulatórios, o que muda a concepção, muda a prática e o significado. O CAPS passa de lugar de mediação de pessoas com diagnósticos, criado para trabalhar perto da cidade, fazê-las sair, ocupar o espaço urbano, e vira ambulatório, onde se começa a lidar com a doença. A pessoa chega a desenvolver o diagnóstico, seguido de tratamento, em geral medicamentoso, que é ineficaz, causa dependência química. Poucos psiquiatras entendem o mal que medicamentos fazem. Falam do mal que drogas ilícitas fazem, ou mesmo lícitas como álcool, mas não têm noção do estrago das drogas psiquiátricas. E depois é muito difícil retirar as dependências químicas, como em alguns casos de antidepressivos.

Portanto, tem uma mudança terrível e acho importante que seja dito, independentemente de qual partido governe o país. Estou falando de um projeto social de defesa, de direito, de promoção da vida das pessoas que além de pobres são marginalizadas pelo transtorno mental. Pessoas que sofrem multiplamente, com toda a falta de políticas públicas e direitos, como população em grande parte desprestigiada. Além do mais, vão virar objeto de nova expansão da indústria da loucura, ser internadas, maltratadas, sob justificativa de manutenção dessas instituições.

Perspectivas que se abrem e práticas transformadoras.

Eu trabalhei no sentido de mudarmos o atual governo. Independentemente do partido no governo, tínhamos uma escolha muito clara de caminhar para a barbárie, de armar a população, a política da intolerância, da ingerência sexual, religiosa. Agora vemos pessoas na rua com muita agressividade, não para reivindicar uma política pública, de preços, salários, mas uma visão de como deve ser a sociedade, que me assustou muito. Quanto antes enfrentarmos isso, não na base do ódio, melhor.

Fui um dos personagens que levou o documento do SUS pela primeira vez a Brasília, com o Cebes (Centro Brasileiro de Estudos em Saúde) e ao lado de pessoas como Sergio Arouca, no 1o. Simpósio de Política de Saúde na Câmara dos Deputados, lá em 1979, até que um dia isso foi adotado na Constituição. O documento que fizemos na elaboração do SUS se chamava “A questão democrática na área da saúde”. Isso é muito importante, não era uma nova política de saúde, mas uma questão democrática. Uma democracia como direito econômico, político, social inerente. É fundamental. Não é tratamento em saúde, é algo como segurança, educação, a possibilidade de você ser cidadão numa sociedade. Não é nenhum discurso vazio. É isso mesmo. Quando estamos doentes, se não temos tudo que um cidadão precisa tampouco haverá o devido tratamento. Mas as pessoas ainda acham que saúde é ter acesso a tratamento de doença, por isso fazem plano de saúde, que na verdade é um plano de doença, pois só trata ali da doença que se tem eventualmente, e olhe lá, porque na hora H aquele parágrafo tal diz que não pode ter isso e aquilo no tratamento, aí você tem que pagar mais ou ir para o SUS.

Escrevi um livro chamado Loucos pela vida, e falamos de solidariedade, direitos humanos, igualdade, fraternidade. Hoje vemos nova onda de intolerância, ideias de internação compulsória, rejeição, redução… A gente viu o presidente do Conselho de Medicina do Rio de Janeiro fazendo sinal com o indicador e o polegar em forma da arma. Impressionante. Assim, precisamos de uma mudança muito bem pensada, para que não se entre numa política da violência e tudo mais. Temos que ver como florescer o espírito, muito forte no Brasil também, de solidariedade, de compaixão, de dividir, de reciprocidade. É importante.

Tive muitas críticas ao processo de Reforma Psiquiátrica, mesmo como um dos fundadores. Acho que temos de levar mais a sério a importância da participação social do SUS, recuperar um processo efetivo de construção. Não é aquela coisa de cumprir o protocolo, mas levar a sério a ideia da participação, conselhos municipais, estaduais e nacional de saúde, como forma de envolvimento da sociedade. É engajar, retomar ideias de orçamento participativo, de saúde participativa, retomar as bases que construíram o nosso projeto democrático.

Espero que a gente possa ir desmontando essas coisas que reforçam a violência, a exclusão, e colocando no lugar as outras práticas que a gente sabe como fazer. Sabemos o que é bom, como é possível fechar hospitais, uma colônia como a Paracambi, 70 mil vagas de várias instituições. Sabemos criar projetos associativos, de convivência, projetos culturais, de inclusão social, projeto de trabalho, como o Catálogo Manguinhos, que lançamos na comunidade de Manguinhos. Temos coisas como o Balé Manguinhos, uma arte sofisticada, ilustrada, e uma mulher da comunidade negra, que morreu no início da pandemia por falta de vacina, conseguiu montar o projeto. Na proposta, ela falava que não queria só ensinar dança, queria produzir esperança e “antidestinos”, em referência aos destinos que os governos oferecem.

E no dia 2 de novembro o balé pela primeira vez se apresentou num lugar grande, o teatro Riachuelo, uma apresentação linda. Crianças habituadas a sofrer o racismo pela falta de política pública, falta de escola, falta de direito, com caveirões da PM e aquelas outras incursões policiais que só vendo pra entender, pegando caixas de som e falando “eu sou o caveirão e vim buscar a sua alma”, um Estado que vem com aquela conversa de guerra ao tráfico, mata jovens, meninos, crianças, mulheres, criancinhas.

Por coincidência, o caveirão foi fazer uma operação no dia do lançamento do catálogo, uma iniciativa de arte, cultura, associativa, de comunidade. São estratégias de direito à cidadania. Elas produzem o bem viver, não só saúde mental em relação a transtornos. Uma saúde mental para além da ideia de se evitar o transtorno mental, entendeu? É algo que produz um trabalho dentro da integridade, solidariedade, de reconhecimento, filosoficamente importante, para que se veja valor no outro. Ficou muito bacana e o resultado são jovens que entram no balé, crescem como pessoa, quando antes sofriam violência permanente.

A pessoa tem contato com hip hop, poesia, tem um movimento chamado experimentalismo bravo, que permite que esses meninos façam coisas diferentes, se ocupem e até acabem evitando problemas com o chamado campo da droga. Não que seja esse o objetivo, mas acaba tendo esse reflexo. Ele acaba se envolvendo com outros comportamentos, desenvolve identidade, reconhecimento, é capturado por outros bons projetos, tem uma relação mais proativa na escola. Parece moralista, mas não é; trata-se de produzir significados para a vida das pessoas em atividades cotidianas.

Agora, é hora de resistir a este desmonte terrível, estimulado por conservadores que também são empresários, sabem que é mais fácil chegar em uma mãe e falar “ó, vamos tentar comigo”. E a pessoa vai para uma internação compulsória, violenta, quando não morre, é vítima de violência física, de repressão, de punições etc. A família não entende muito o que acontece, quando ele fala alguma coisa a resposta é “ah, ele é drogado, a senhora sabe do problema dele”. A pessoa tida como louca, transtornada, não tem valor, o que ela fala pouco é levado em conta.

Mas sigo otimista, vou continuar construindo, sempre criticamente. Depois de 40 anos, vamos em frente.

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