O que esperar da 5ª Assembleia pela Saúde dos Povos

Movimentos pela Saúde Pública de todo o mundo debaterão em abril, em Mar del Plata, os rumos de suas ações. Pauta é ampla e instigante. Encontro será também um desafio às políticas de privatização brutal de Javier Milei

Ativistas ligadas ao Movimento pela Saúde dos Povos protestam contra violência de gênero, em Bangladesh. Créditos: Movimento pela Saúde dos Povos
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A Argentina abrigará, em abril, um encontro para debater a saúde pública global, com presença de movimentos sociais de todos os continentes. É a 5ª Assembleia pela Saúde dos Povos (ASP), um evento para trocar experiências, refletir, buscar alternativas e tramar ações comuns.. O evento acontece pela segunda vez na América Latina, na cidade de Mar del Plata – a 2ª Assembleia aconteceu em Cuenca, Equador, em 2005. A última edição, de 2018, ocorreu em Bangladesh, mesmo país de sua primeira realização.

A 5ª ASP é o momento de culminância e encontro dos trabalhos realizados pelas organizações que fazem parte do Movimento pela Saúde dos Povos (MSP). Eles próprios se definem como “uma rede de redes” de movimentos sociais, em especial aqueles do Sul Global, que atuam mundo afora na luta pela saúde para todos. O MSP nasceu a partir da revolta com o fato de que o mundo se distanciava dos paradigmas lançados na reunião de 1978 da Organização Mundial da Saúde (OMS), e firmados na conhecida Declaração de Alma-Ata. Naquele ano, na cidade do então Cazaquistão soviético, definiu-se que a Atenção Primária à Saúde deveria ser priorizada por todos os países, como chave para uma promoção de saúde de caráter universal.

Ao que o século XX chegava ao fim, movimentos sociais percebiam a saúde global tomava um caminho contrário: centrado na doença e nos hospitais e marcado por  acelerado avanço do setor privado. A primeira ASP aconteceu em 2000 e reuniu mais de 1,5 mil ativistas, acadêmicos, trabalhadores de saúde, movimentos sociais, movimentos por soberania alimentar, movimentos pela quebra de patentes de medicamentos para o HIV, organizações comunitárias, entre outras entidades. Segundo a argentina Carmen Baez, uma das coordenadoras do MSP e da Assembleia de 2024, foi um momento em que os ativistas perceberam que era preciso transformar a revolta contra o rumo da saúde global em ação. 

Carmen contou essa história no lançamento da ASP no Brasil, que aconteceu na semana passada (e você pode assistir aqui). Ela relata que a Declaração para a Saúde dos Povos assinada naquele ano foi um marco de ação para esses movimentos, que dá orientação estratégica para o MSP. Inspirada na Declaração de Alma-Ata, ela encara a saúde como entidade social, econômica, política e ideológica. Foi traduzida para 50 línguas, afirma Carmen, o que reafirma a capilarização do Movimento.

O que os membros argentinos do MSP não contavam é que, no ano de realização da ASP em seu país, estariam sob um governo tão desfavorável como o de Javier Milei. O presidente eleito no final do ano passado destrói rapidamente os serviços públicos da Argentina e suas medidas de viés ultraliberal são totalmente contrárias ao que reafirma o Movimento pela Saúde dos Povos no país. “A comissão argentina tem sido bastante aguerrida, pelo contexto turbulento que o país vem passando, por todos os ataques aos direitos que os argentinos vêm sofrendo. Por isso, estão ansiosos para receber a nossa solidariedade com a situação deles também”, afirmou Leonardo Mattos, militante do MSP e pesquisador na UFRJ e Fiocruz, ao Outra Saúde.

O avanço da extrema-direita pelo mundo é um dos temas que atravessam a 5ª ASP. Mas a raça humana passa por muitas outras crises, que serão debatidas durante os dias do evento. “A Assembleia terá um caráter muito forte de solidariedade ao povo palestino, uma questão que se acentuou muito nos últimos meses”, antecipa Leonardo. “Vai ser uma Assembleia muito marcada por essa discussão desse momento geopolítico, em que as guerras estão cada vez mais intensificadas, a crise climática é uma ameaça a todo o planeta.”

Mas há alguns conflitos que são de extrema relevância e atravessam as décadas desde a primeira ASP. Leonardo continua: “Também vamos discutir o contexto internacional de promessas falhas com relação à saúde. Os países do chamado ‘terceiro mundo’ continuam tendo muitas dificuldades para conseguir financiar sistemas de saúde públicos e universais. A pandemia deixou isso muito claro: os sistemas públicos são necessários mais do que nunca, e sistemas públicos fortes”.

Segundo Leonardo, a emergência sanitária trazida pela covid deverá ser tema central em muitos debates da ASP. Não apenas em relação às “lições”, mas para “discutir os modelos de desenvolvimento e de relação com a natureza que produzem condições de vida precárias para as populações, agudizadas pela crise climática. E ainda criam todas as condições para que essas epidemias e pandemias se alastrem cada vez mais”. O Acordo das Pandemias, debatido na OMS e defendido em especial por países do Sul Global, também deverá ser pauta importante no evento – que antecede a Assembleia Mundial de Saúde da Organização. Segundo Leonardo, “vamos discutir também essa reforma necessária da governança global em saúde, para que as nações de fato consigam tornar-se autônomas, soberanas”.

Em termos de organização, a ASP será dividida em cinco eixos temáticos: 1) Transformação dos sistemas de saúde; 2) Justiça de gênero na saúde; 3) Saúde dos ecossistemas: alimentação, energia, clima; 4) Resistir à guerra e à migração forçada; e 5) Saberes e práticas ancestrais e populares. Sobre o último, Leonardo salienta que esse é um debate levantado pelos povos latinoamericanos: “Estamos em um continente que foi ocupado por povos originários milhares de anos atrás, que guarda seus conhecimentos, suas práticas de saúde, suas visões do processo de saúde e doença. São populações que foram colonizadas, violentadas, tiveram esses saberes apagados. É um momento para pensar em alternativas e visibilizar essa discussão”.

Leonardo também comenta sobre as pautas que serão levadas pela comissão brasileira à Assembleia. Para ele, um grande exemplo do Brasil são as Conferências de Saúde e o controle social do SUS – além da experiência de ter atravessado uma pandemia sob um governo negacionista e sem qualquer preocupação com o cuidado da população. Mas o país deverá levar representantes e levantar debates sobre “a luta dos diversos movimentos sociais, movimentos negros, indígenas, feministas, quilombolas, os movimentos contra a privatização da saúde, a luta antimanicomial, os trabalhadores da saúde”.

Também presente no lançamento do evento, Lígia Giovanella, pesquisadora do campo da Atenção Primária da ENSP/Fiocruz, celebra a 5ª Assembleia pela Saúde dos Povos: “É um momento de congraçamento, de diálogo, de participação, de envolvimento e solidariedade entre movimentos sociais em saúde de todos os continentes. É uma oportunidade de conhecer as lutas políticas, os ativismos, as temáticas que mobilizam corações e mentes em defesa do direito universal à saúde”. Uma novidade de 2024 é a 1ª Conferência Internacional sobre Saúde Coletiva e APS – que está com chamados abertos até dia 11/3.

A Conferência é importante, segundo Leonardo, por ser “um momento para discutir as diversas experiências de implementação da Atenção Primária em Saúde nos países do Sul Global. Em especial, discutir as estratégias, as experiências bem sucedidas, a privatização, as lutas pela expansão dos serviços e da cobertura. Discutir profundamente também os retrocessos que a gente tem tido com relação à atenção primária integral”.

A Assembleia Mundial de Saúde acontece entre os dias 7 e 11 de abril em Mar del Plata, Argentina. Ainda é possível fazer a inscrição para o evento – que se encerra no próximo dia 10. Leonardo encerra: “É um momento de pensar de como a luta pelo direito à saúde deve ser articulada com vistas na busca de alternativas, de outros modelos de desenvolvimento, de outros paradigmas que incorporem não só as lutas dos trabalhadores, mas também outras visões de mundo, outros saberes e práticas”.

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