Os bilhões que o SUS poderia recuperar

STF começa a julgar Emenda Constitucional 86. Decisão pode restabelecer dispositivos que dobrariam verba para Ministério da Saúde. Leia também: coronavírus gera maior fuga de capitais da história dos países emergentes

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Por Maíra Mathias e Raquel Torres

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O FUTURO DO SUS EM JOGO NO STF

Hoje, a saúde terá destaque na pauta de julgamentos do plenário do Supremo Tribunal Federal. Está previsto que os ministros examinem a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5543, na qual o Partido Socialista Brasileiro (PSB) questiona normas do Ministério da Saúde e da Anvisa que discriminam gays. Pelas regras, são proibidos de doar sangue homens que tiveram relações sexuais com homens nos últimos12 meses, por exemplo.

Além disso, o STF retoma o debate da judicialização da saúde. Estão em pauta dois assuntos mais ou menos correlacionados: o fornecimento, em caráter excepcional, de medicamentos de alto custo não incluídos na lista de dispensação do SUS e a concessão de produtos não registrados na Anvisa. Esse último processo tem a ver com um recurso do estado de São Paulo, que questiona decisão judicial que o obrigou a fornecer medicamento à base de canabidiol.

Em meio a essa movimentada agenda, está previsto ainda um julgamento com muito impacto para o SUS. Trata-se da ADI 5595, que questiona a emenda constitucional 86 que instituiu o orçamento impositivo em 2015 e, na prática, define se a União tem o dever de alocar recursos progressivos em ações e serviços públicos de saúde.

Na Folha, a procuradora Élida Graziane e o professor Fernando Scaff explicam o que está em jogo. Eles lembram que a Constituição nunca foi cumprida, já que a determinação de que 30% do orçamento da Seguridade Social fosse para o SUS – o que, em valores atuais, quase dobraria a dotação orçamentária do Ministério da Saúde – jamais foi respeitada. Pelo contrário: ao longo do tempo, lembram, “sucessivas emendas constitucionais, regulamentações e restrições interpretativas mitigaram o alcance operacional e financeiro do SUS, sobretudo para reduzir proporcionalmente o dever de gasto mínimo federal em saúde”. Enquanto isso, estados e municípios estão sob pressão social e judicial para expandir seus gastos em saúde muito além dos respectivos pisos mínimos. 

Esse, apontam, é o contexto em que se emparelham a EC 86 – cujos artigos 2º e 3º estão em debate na ADI – e a emenda constitucional 95, que estabeleceu um teto de gastos para a União até 2036, limitando a responsabilidade federal a aplicar no SUS o orçamento do ano anterior corrigido pela inflação. Como você tem acompanhado por aqui, essas amarras ao SUS estão sendo muito questionadas neste momento, com o risco de que o Brasil enfrente uma epidemia do novo coronavírus.

Élida e Fernando destacam que o governo federal propôs uma “solução”: abertura de crédito extraordinário para conciliar os limites do teto de gastos com as necessidades de despesas emergenciais com o Covid-19. Contudo, isso não resolve o problema de financiamento estável do Sistema Único, que além do mais tem de dar conta de outras epidemias, como a dengue, e de uma série de outras coisas. 

“Mais do que julgar individualmente o acesso a medicamentos e procedimentos ou mesmo de adotar a solução ‘ad hoc’ de abrir crédito extraordinário para o SUS, é necessário fazer justiça e respeitar a Constituição, resguardando que haja financiamento juridicamente estável e fiscalmente progressivo conforme o nível da arrecadação estatal para os gastos com a saúde pública”, constatam. E defendem que o plenário paute primeiro o julgamento da ADI 5595 e confirme a interpretação do relator, ministro Ricardo Lewandowski, que concedeu uma medida cautelar anulando os efeitos deletérios do orçamento impositivo para o SUS. Isso altera o valor que a União deveria ter investido em 2018, quando começou a valer o teto de gastos na saúde – e, portanto, impacta o futuro, caso a EC 95 vigore mesmo pelos próximos 16 anos. “Vedar retrocessos normativos no custeio e na gestão federativa do nosso sistema de saúde pública o habilitará a prevenir e enfrentar quaisquer surtos, epidemias e pandemias”, concluem.

VOLTAR ATRÁS

Falando em STF, já há duas ações pedindo que o Supremo suspenda a norma do Ministério da Agricultura que permite o registro automático de agrotóxicos (lembre aqui): uma do partido Rede Sustentabilidade e outra do PSOL. O ministro Ricardo Lewandowski também relata as ações.

NO OLHO DO FURACÃO

Duas boas reportagens do El País Brasil falam sobre os impactos da epidemia do coronavírus nos países emergentes e na América Latina. No primeiro caso, desde 20 de janeiro – quando a epidemia foi reconhecida oficialmente pela China –, os emergentes já sofreram a maior fuga de capitais de sua história, com um acumulado de R$ 137 bilhões (ou US$ 29,3 bi). Para se ter uma ideia, o número supera o baque registrado durante a crise financeira de 2008, quando a perda ficou em R$ 93 bi. Os cálculos são do Instituto de Finanças Internacionais, que reúne bancos de todo o mundo.

O Brasil, que tem uma economia muito ligada à China, sofreu o pior tombo da região: os investidores estrangeiros retiraram da Bolsa R$ 46 bilhões entre janeiro e o dia 6 de março, segundo dados da consultoria B3. E esse valor já supera a fuga de investimentos recorde de 2019, que foi de R$ 42,6 bi. Mas o que é ruim pode piorar, já que essas estimativas não incluem os impactos da queda do preço do petróleo registrado na segunda-feira. 

No caso da América Latina, coronavírus e a China “não explicam tudo”, segundo Lourdes Casanova, chefe do Instituto de Mercados Emergentes da Universidade Cornell, ouvida pelo site. Também influenciam a incerteza política e social da região, além do baixo crescimento dos últimos anos. E sua eterna dependência da exportação de commodities agrava a exposição ao choque – apesar de ser uma das regiões do mundo com menos casos de contágios. A epidemia chegou à América Latina duas semanas atrás, com o registro, no Brasil, do caso do empresário que voltou infectado da Itália. Até ontem, os países latino-americanos tinham registrado menos de cem casos e apenas uma morte, na Argentina. Para efeito de comparação, os Estados Unidos registraram oito vezes mais casos. E o problema sanitário na Europa é 160 vezes maior.

SITUAÇÃO ATUAL

Ontem, o número de infectados por Covid-2019 no Brasil passou de 25 para 34, com um total de seis casos oriundos da transmissão local. São Paulo responde por 19 casos, Rio de Janeiro por oito e Bahia por dois. Há um caso em cada uma das seguintes unidades da federação: Espírito Santo, Distrito Federal, Minas Gerais, Alagoas e Rio Grande do Sul. No momento, as autoridades investigam a infecção em 893 pessoas e já descartaram 780 casos suspeitos. A essa altura, só três estados ainda não registraram pessoas com suspeita de infecção: Roraima, Amapá e Tocantins.

A paciente do Distrito Federal teve piora desde ontem. A mulher que está internada no Hospital Regional da Asa Norte apresenta quadro grave e instável, com febre e síndrome respiratória aguda severa, segundo a secretaria de saúde do DF.

CONTRAPONTO AO MINISTRO

O ministro Luiz Henrique Mandetta disse ao Valor, na segunda-feira, que o Brasil não vai entrar na corrida pelo desenvolvimento de vacinas e tratamentos contra o coronavírus, pois não vale a pena colocar nossos recursos limitados (pois é) nisso. De acordo com ele, o país deve se concentrar em um passo à frente, que seria o de produzir esses insumos depois que eles forem descobertos em outras partes.

Não é simples assim, escreve Reinando Guimarães, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Primeiro, porque ninguém garante que as empresas que patentearem esses produtos venham a liberá-los. Pelo contrário: “durante a epidemia de gripe H1N1 de 2008, o então presidente executivo (CEO) da empresa Novartis, Daniel Vasella, em resposta a um pedido da diretora-geral da OMS Margareth Chan, negou o fornecimento de vacinas gratuitas aos países pobres afirmando que a empresa não era uma instituição filantrópica. Alguns anos mais tarde, em 2014, o CEO da Bayer, Marijn Dekkers foi na mesma linha ao afirmar que a empresa não desenvolveu um determinado medicamento (Nexavar) para indianos, mas sim para pacientes ocidentais que pudessem adquiri-lo. Reagia a um pedido de licenciamento feito pelo governo da Índia para que uma empresa local pudesse comercializar um genérico”, lembra o pesquisador.

Além disso, o Brasil não precisaria só se fiar em suas parcas verbas, já que organismos filantrópicos e multilaterais estão dispostos a financiar grupos de pesquisa em países que estejam dispostos a isso. “Se o Brasi (…) abdicar formalmente de ombrear com os países líderes globais em P&D em saúde, certamente não poderá reivindicar parte desses recursos multinacionais que vão aparecendo no calor do momento”.

PRECISAM COBRIR

Os planos de saúde vão precisar cobrir o exame de detecção do coronavírus. A inclusão no rol da cobertura mínima obrigatória se deu ontem, em uma reunião com representantes das operadoras, entidades representativas do setor e diretores da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Aspectos técnicos da medida (como o tipo do exame coberto) estão sendo detalhados. Antes, como dissemos por aqui, a agência reguladora já havia garantido que os planos se responsabilizem pelo tratamento dos pacientes diagnosticados com o Covid-19, de acordo com a segmentação de seus contratos (ambulatorial ou hospitalar).

O CASO DE TAIWAN

Com 45 milhões de habitantes e a apenas 130 quilômetros da China continental, Taiwan só registrou até agora 45 casos de Covid-19 e uma única morte. Por quê? Em entrevista ao site Vox, o pesquisador da Universidade de Stanford Jason Wang, autor de um trabalho sobre isso, tenta responder. Ele argumenta que o esforço começou na verdade muito antes do surgimento do novo coronavírus, após a última epidemia de SARS, quando Taiwan foi um dos locais com piores desfechos. Logo em seguida, em 2004, foi criado um centro de comando para lidar com epidemias, com setores de mídia, de dados, logística, de informações. Assim que o novo coronavírus foi reportado em Wuhan, as autoridades de Taiwan já começaram com ações que na época podem ter soado exageradas, como “cercar” todos os voos chegados da cidade, verificando os possíveis sintomas de viajantes. Foram ao todo 124 ações para conter o vírus. Mas, segundo Wang, não houve pânico generalizado porque desde o início havia coletivas de imprensa diárias detalhando cada caso.

DÚVIDAS E MAIS DÚVIDAS

Já comentamos aqui a preocupação de alguns especialistas em conseguir estabelecer a taxa de letalidade real do CoV-2: como estamos vendo, no geral, apenas a quantidade de mortes e a quantidade de pessoas com sintomas graves o suficiente para que busquem atendimento, os números não nos mostram tudo. Em entrevista ao site Questão de Ciência, o pediatra americano Paulo Offit, um dos inventores de uma vacina contra o rotavírus, faz coro com esse argumento. E fala especificamente da Coreia do Sul, onde esse tipo de medida foi tomado. De acordo com ele, por lá foi feito o exame de diagnóstico em 100 mil pessoas (que pareciam estar doentes ou não) e encontraram seis mil casos e 42 mortes. Isso dá uma mortalidade de aproximadamente 0,7% — ligeiramente maior do que a da gripe sazonal (que varia ao redor de 0,5%), mas bem menor do que os 3,5% anunciados recentemente pela OMS. Na avaliação de Offit, o medo é mais grave que o vírus.

ESTRATÉGIA QUE FUNCIONA

Em momento de desconstrução da Estratégia Saúde da Família, chega uma pesquisa que mostra todo o potencial dessas equipes formadas por médico, enfermeiro, técnico de enfermagem e agentes comunitários de saúde. Segundo relatório divulgado ontem pelo Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI), a mortalidade infantil cai mais entre as cidades que aderiram ao programa. E quanto mais tempo o município se mantém nele, mais essa taxa cai: após dois anos de vigência da ESF, a redução registrada é de, em média, 3% e 9%; após oito anos, a redução da mortalidade infantil caiu entre 20% e 34% na média. O levantamento mostra, ainda, que a Saúde da Família é capaz de reduzir a mortalidade materna em 53,1% no mesmo período de atuação.

DESESTRUTURA COMPLETAMENTE

No IHU-Online, o engenheiro Bruno Milanez* fala do PL de Bolsonaro que pretende “regular” a mineração em terras indígenas. Ele estudou experiências na Austrália, no Canadá e nos EUA e prevê o que pode acontecer por aqui caso a medida passe: “Em termos gerais, o que as pesquisas indicam é que nesses países o que se procurou fazer, principalmente, foi adequar os povos indígenas às operações e não avaliar como uma operação de mineração poderia se ajustar ao modo de vida indígena. Assim, o que se vê é a desestruturação de sociedades que vivem há milênios em um determinado território, para dar lugar a projetos econômicos com uma expectativa de duração de poucas décadas. A questão chave desse processo é que a degradação ambiental causada pela extração mineral (desmatamento, poluição dos rios, degradação da paisagem, inviabilidade da caça e da pesca) inviabiliza a manutenção das práticas tradicionais de subsistência e os povos indígenas se tornam cada vez mais dependentes da economia mineral. Uma vez que a reserva mineral se exaure, não há alternativa de sobrevivência para esses povos“.

ENTROU EM VIGOR

A resolução da Anvisa que regulamenta a fabricação, a importação e a comercialização de produtos derivados da cannabis para fins medicinais começou a vigorar ontem. A norma foi aprovada em dezembro do ano passado. 

*O texto foi corrigido em 12.03.2020 para uma correção. Havíamos escrito “Bruno Domingues”, mas o sobrenome correto é Milanez.

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