Nos bastidores

Eles exercem trabalhos essenciais para no SUS, mesmo quando ninguém vê

.

Por Ana Cláudia Peres, na Radis

19 de fevereiro de 2018

Jorge André Barbosa da Paixão chega antes das sete ao seu local de trabalho, pega uma das chaves do molho que contém dezenas, abre o portão. Em alguns minutos, o salão principal vai estar cheio de usuários e ele, que responde pela segurança da unidade de saúde, não pode atrasar.

Luciana Maria Santos da Silva vai a pé para o trabalho. No trajeto, que dura cerca de 15 minutos, ela se preocupa com a violência das ruas de Fortaleza. Logo mais estará no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD), onde atende como recepcionista. Ganha abraço de um, aperta a mão de outro, quer saber como vai passando o terceiro. Sente-se em casa.

Marco Aurélio Fernandes tem pressa. Na sala dos maqueiros do hospital em que trabalha, no Rio de Janeiro, sabe que a qualquer momento pode tocar o telefone e convocá-lo ou um de seus colegas para a tarefa que desempenha como plantonista, dia sim dia não, há exatos cinco anos. Quando isso acontece, é hora de ajudar alguém.

Luzia Scovine Barcelos é farmacêutica. Há 22 anos, trabalha no almoxarifado de medicamentos do Hospital Municipal Nossa Senhora do Loreto, na Ilha do Governador, Rio de Janeiro. Para ela, cada paciente é um parente próximo e, se ele depende de um remédio, promete fazer tudo o que está ao seu alcance.

Em comum, Paixão, Luciana, Marco e Luzia têm alguns anos de serviços prestados ao SUS em atividades que eles desempenham longe dos holofotes, nos bastidores, quando quase ninguém vê. Mas que são imprescindíveis para o bom funcionamento dos hospitais e unidades de saúde. Radis conversou com esses profissionais e conta um pouco de suas rotinas.

PAIXÃO, UM SEGURANÇA

Na Clínica da Família Victor Valla, em Manguinhos, no Rio de Janeiro, há quem o chame de “São Pedro”, numa referência jocosa à quantidade de chaves que carrega no bolso. Vigilante no local há sete anos, cabe a André Paixão abrir e fechar o espaço e zelar por todo o patrimônio da instituição. Quando Radis encontra o segurança Paixão, ele está por trás do balcão de entrada, atento aos detalhes do movimento que, naquela tarde, era intenso. “A função do vigilante é patrimonial mas a gente faz mais do que o serviço idealizado de segurança. A gente acaba se envolvendo na corporação junto aos médicos, enfermeiros, agentes comunitários, técnicos”, trata de explicar. “No fim das contas, a nossa função é manter a ordem”.

Primeiro a chegar diariamente à clínica, é Paixão quem recebe os usuários e, quando necessário, ajuda com as senhas, tira dúvidas, orienta. Mas o que mais faz um segurança em um serviço de saúde, ele diz, “é administrar conflitos”. Como um bom mediador, Paixão conta que frequentemente precisa ter “jogo de cintura” e usar um tom conciliatório para deixar o ambiente o mais tranquilo possível. “A gente tem que analisar o seguinte: a pessoa que vem a um posto de saúde pode estar com dor e precisando de cuidados. Então, ela não vai olhar pra você e agradecer. Ela vai querer reclamar e ficar chateada quando há algum atraso ou quando as coisas não saem como ela esperava. É preciso respeitar isso”, justifica, acrescentando o item “paciência” à lista de qualidades que ele atribui a um segurança na qual inclui ainda gentileza, equilíbrio e “bom papo”.

texto alternativo

O vigilante Paixão em seu local de trabalho, a clínica Victor Valla, no Rio

A clínica da família em que Paixão trabalha fica situada em uma região onde frequentemente ocorrem confrontos armados, o que obriga a unidade a fechar as portas muitas vezes para não colocar em risco os usuários. Nessas ocasiões, o vigilante costuma ficar de prontidão dando explicações na entrada. Não raramente, ouve impropérios de quem chega e encontra o portão cerrado, mas diz não se abalar. “Esse paciente vai descarregar no primeiro que aparece e o primeiro que aparece normalmente é o segurança”. Também já fez papel de socorrista. Como no dia em que um morador do território foi atingido por uma bala perdida e pediu assistência na clínica da família. “Nessa hora, a gente faz qualquer coisa, corre, pega uma maca, aciona o médico, ajuda o maqueiro para levar para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) que fica a 100 metros”, conta Paixão, enquanto executa a ronda pelos corredores da unidade — outra de suas funções. “Eu não sou um vigilante que fica parado igual a um leão de chácara. Se puder ajudar o serviço a andar, eu ajudo”.

Na clínica desde que a unidade abriu, há sete anos, Paixão tem experiência como segurança no setor saúde há, pelo menos, 15. Para exercer a função, precisou fazer um curso de Formação de Vigilantes, de onde se sai com uma licença para atuar. Do alto de seus 1,75m de altura, impressiona pelo porte robusto. Mas enquanto se profissionalizava, aprendeu, entre outras coisas, que desempenha um trabalho mais mental do que físico. “Antigamente, o vigilante era o cara bruto. Hoje em dia, é aquele cara formal que chega, conversa com a pessoa e resolve qualquer coisa com diálogo e educação, além de prestar atenção em tudo”, diz. “Se cair uma agulha no chão, tenho que estar atento”. No crachá, o uso do nome do meio, “Barbosa”, parece incomodar o vigilante que se considera um profissional exigente e “caxias”. Ele diz que já solicitou à empresa a substituição por seu sobrenome correto — pelo qual, todos, médicos e pacientes na unidade, o conhecem. Paixão é casado e pai de três filhos. E só deixa o trabalho às 19 horas, depois que todo mundo vai embora. Para poder fechar o portão.

NA RECEPÇÃO DE UM CAPS-AD

Ela já integrou equipes de Consultórios de Rua e foi pioneira no trabalho de redução de danos, em Fortaleza. Mas, desde o ano passado, é como recepcionista do CAPS-AD Alto da Coruja, situado em uma região de alta vulnerabilidade social na capital cearense, que Luciana “ajuda a cuidar das pessoas”, como ela gosta de ressaltar (foto na página 28). Na recepção, realiza cadastros para atendimento e encaminha os pacientes para os setores específicos, mas se lhe perguntam o que mais a satisfaz em sua atividade, Luciana não hesita. “Adoro fazer as abordagens com os usuários. Ao recebê-los ao pé do balcão, sempre fico alerta às suas histórias de vida para saber como melhor proceder”, diz. “Quero que ele seja bem acolhido e saia daqui com uma resposta positiva para fazer o retorno previsto”.

Durante o horário de expediente — de 8 às 17 horas —, a recepcionista ainda consegue tempo para realizar algumas visitas domiciliares. Não que essa seja uma exigência do cargo que ocupa, mas a rotina na unidade costuma ser tranquila e Luciana aproveita o tempo para acompanhar mais de perto a comunidade atendida pelo CAPS. “Acho que nosso trabalho de recepcionista é simples mas pode envolver todas as atividades e um bom relacionamento com a equipe, então, o que dá para fazer, eu faço”, conta, emendando com uma verdadeira lição sobre como fazer a abordagem junto ao usuário de álcool e outras drogas. “Toda profissão tem o seu próprio jogo de cintura. É preciso delicadeza e respeito”, diz. Para ela, o usuário que atende na recepção é mais do que um número de prontuário.

Foi um acidente — em sentido literal — que levou Luciana ao trabalho de recepcionista que hoje ela desempenha com verdadeira paixão. Em 2015, trabalhava como auxiliar administrativa em um grande hospital quando escorregou no próprio ambiente de trabalho, o que ocasionou fraturas expostas e lhe deixou de licença médica. Depois disso, foi deslocada para o Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi), mas sua experiência de mais de uma década com população de rua e saúde mental a levaram à recepção do CAPS-AD. Luciana já desenvolveu um trabalho com a Associação das Prostitutas do Ceará (Aproce) voltado para mulheres em situação de vulnerabilidade nas praças e prostíbulos e fez inúmeros cursos e capacitações na área.

“O meu objetivo sempre foi trabalhar com redução de danos, então acho que me tornei uma redutora de danos em qualquer formato, onde quer que eu esteja, em qualquer trabalho que fizer”, diz Luciana, que em suas abordagens discute da dengue ao lixo, passando pela questão alimentar e pelas doenças sexualmente transmissíveis. “É assim que eu me sinto. Começo pela minha casa e meus vizinhos e levo para meu trabalho de recepcionista”. Por conta do acidente que a obrigou a colocar placas e pinos no braço esquerdo, Luciana hoje não consegue digitar. Mas seu trabalho de recepcionista, ela diz, pode até dispensar a tecnologia. “O que não pode faltar é comunicação. Eu escrevo, atendo o telefone, dou informações, participo de reuniões, faço visitas domiciliares. Para atender na recepção, o que precisa mesmo é gostar de gente”, pondera. “A gente não pode ficar mudo, tem que se comunicar com o usuário”.

Natural de Pernambuco, ela vive em Fortaleza desde os 30 anos e hoje é também líder comunitária da Rosalina, bairro onde mora. Divorciada, tem 58 anos, seis filhos e muita disposição “para lutar por uma saúde humanizada e para todos”, ela acrescenta. À Radis, por telefone, logo depois da sessão de fotos para a reportagem, Luciana disse ter se sentido “como uma rainha”. Para cada um dos usuários que passa pelo local diariamente, ela é muito mais. “Eu abraço, beijo, sou abraçada, sou cumprimentada, me envolvo mesmo. Gosto de lidar com as pessoas. Assim, vou levando a vida”.

PROFISSÃO, MAQUEIRO

Eduardo de Oliveira

Marco Aurélio reconhece que seu trabalho é mais do que “transportar” usuários

A sala dos maqueiros fica logo na entrada do Hospital Federal do Andaraí, no Rio de Janeiro, à esquerda de quem entra, estrategicamente situada. É lá que cerca de 10 maqueiros, entre diaristas e funcionários, permanecem à espera do próximo chamado. Pode ser a chegada de alguma vítima de acidente ou de queimadura (o hospital é referência em queimados) ou uma criança com catapora. Pode ser a transferência de algum idoso para outro setor. É sempre urgente. “Todos os setores do hospital ligam para a sala e nos dizem se precisam de uma maca, uma cadeira de rodas ou algum tipo de reforço”, explica Marco Aurélio Fernandes, 25 anos, há cinco como maqueiro. “Temos que estar prontos”.

Marco é alto e magro. Mede 1,76m de altura e pesa 58 quilos, o que já lhe rendeu o apelido de “Magrinho” até mesmo entre os pacientes. Ele acha divertido e sabe que, mais do que força física, o trabalho que executa depende de outros atributos. Se o vigilante precisa ser paciente, e a recepcionista, comunicativa, para o maqueiro é importante uma boa dose de “sangue frio”. Ele conta: “É preciso manter a calma porque estamos lidando com a vida das pessoas. Muitas vezes, essas vidas estão nas nossas mãos enquanto as conduzimos até o médico”. Marco não esquece o caso de uma senhora idosa que chegou ao hospital desfalecida e dependeu inteiramente dele. “Ela estava muito frágil. Eu não sabia que tipo de dor estava sentindo e não podia contar com a sua ajuda. Mas consegui retirá-la do carro com muito cuidado e levá-la à emergência. Pude ver como ela melhorou até sair do hospital dias depois, andando”.

Marco tem o ensino médio completo e formação técnica em logística, eletrotécnica e eletrônica. Antes de começar no hospital, nem ao menos fazia ideia de que existia a função de maqueiro na Saúde. Maqueiro, para ele, era o profissional que ajudava a tirar do campo de futebol um jogador contundido. Fez curso de primeiros socorros e transporte de pacientes e assistiu a inúmeras aulas e palestras sobre acolhimento ofertadas pelo hospital. Na prática, aprendeu que não se trata apenas de transportar alguém. “Saúde é muito mais do que o oposto da doença. A gente está aqui para ajudar o próximo”, diz. Como no dia em que, enquanto transportava uma paciente para a sala de exames, ao saber que ela estava internada há seis meses sem ver o sol, desviou um pouquinho do protocolo. “Eu não podia parar no pátio, mas diminuí o passo, fiz de conta que havia uma pedrinha no meu sapato e ela aproveitou para pegar um pouco de sol”.

No início como maqueiro, o ex-técnico em informática precisou segurar o choro. Confessa que chegava a passar mal impactado pelo estado de alguns pacientes que chegavam ao hospital. Coisa que, antes, ele só assistia em filmes e séries de TV. “Com o tempo — não sei se isso é bom ou ruim —, a gente vai se acostumando”, conta, revelando que hoje não troca o ambiente de trabalho por nada. Agora, pensa em voltar a estudar. Pretende cursar enfermagem. Solteiro, mora com os pais e a irmã em Jacarepaguá, que fica a mais de 20 quilômetros de distância do hospital onde ele chega de condução. “Me sinto muito realizado. Um sorriso de um paciente me paga o dia. É muito gratificante”, diz.

A GUARDIÃ DOS REMÉDIOS

Luiza Barcelos trabalha no almoxarifado de um grande hospital e considera “humanização” palavra-chave

“Acho que a qualidade principal de um bom profissional de saúde, qualquer que seja ele, é ter o lado humano exacerbado”, diz Luzia, farmacêutica, numa frase que bem poderia resumir a atuação dos profissionais retratados aqui. Quando soube que a reportagem era sobre profissionais que não estão na linha de frente, mas sem os quais a saúde não funciona, exclamou: “Felizmente, a saúde é feita por muita gente!”. Ela sempre preferiu trabalhar atrás dos holofotes, nos bastidores. Com especialização em farmácia e bioquímica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Luzia escolheu o almoxarifado de medicamentos de um grande hospital — o setor onde ficam guardados e mantidos, de forma organizada e eficiente, todos os estoques de remédios que a instituição precisa para funcionar.

Mas aos profissionais do almoxarifado cabe muito mais do que receber o material e organizar os produtos. No local em que trabalha ao lado de mais um farmacêutico e outras três auxiliares, o almoxarifado ferve. Luzia é profissional concursada do Hospital Municipal Nossa Senhora do Loreto, na zona norte do Rio de Janeiro, uma unidade pediátrica especializada no tratamento de crianças com fissuras labiopalatais. Das 8 às 17 horas, no almoxarifado, é um corre-corre, um entra e sai de pedidos. Pela manhã, eles recebem os pacientes do ambulatório e os que tiveram alta, tanto de cirurgia como da enfermaria pediátrica, para obter a medicação. “Além disso, é quando a farmácia recebe pedidos de diversos setores da unidade, inclusive do centro cirúrgico”, diz. É também o momento em que Luzia se encarrega de procurar as equipes de enfermagem do hospital para se informar sobre as medicações prescritas.

“Se não tivermos, o papel da farmácia é procurar conseguir”, avisa. “Se os recursos não chegam à unidade, a gente vai atrás deles, onde quer que estejam: faz permuta com os colegas de outras redes, corre atrás de doações, vai buscar onde for preciso”. O turno da tarde não é menos tranquilo. Após a visita dos médicos às crianças, surgem as novas prescrições. “O farmacêutico precisa então analisar essas prescrições para fazer o cálculo antimicrobiano de qualquer medicamento especial para criança. Depois, calculamos as doses para 24 horas, separamos e enviamos para o setor de diluição da unidade”, segue explicando num fôlego só, sem esquecer as reuniões da Comissão de Infecção de Controle Hospitalar da qual faz parte.

“O envolvimento é tão grande que você não tem tempo pra pensar em você e em seus problemas”, ela diz. Casada, mãe de duas mulheres, avó de duas netas, essa é a sua rotina há 22 anos. Luzia conta que qualquer coisa compensa, quando lê as cartinhas de agradecimento escritas pelas crianças ou quando, durante a entrega de um medicamento a uma senhora cuja filha estava tendo alta do hospital, escuta baixinho: “Se eu ficar doente de novo, você me traz pra cá, tá mãe?” Acha que cumpriu o seu papel e que a saúde pública, apesar de tudo, vai bem quando escuta coisas assim.

Leia Também: