Agente três em um

Programa vai oferecer curso técnico em enfermagem para agentes de saúde, mas entidades que representam a categoria são contra

Caco Xavier

Caco Xavier

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Por Raquel Torres, no Saúde É Meu Lugar

27 de março de 2018

O ano de 2017 terminou tão bem quanto seria possível para agentes comunitários de saúde (ACS) e agentes de combate a endemias (ACE). Com a aprovação do PL 6437 pelo Congresso, a expectativa era de que as categorias poderiam se concentrar agora em garantir vitórias na tramitação da PEC 22, que estabelece o reajuste salarial (o piso está congelado há quase quatro anos!)

Só que janeiro chegou ameaçador. Primeiro, o PL 6437 enfim virou lei (a 13.595/18), mas com vários vetos. Foram eliminadas, por exemplo, as atividades próprias da categoria, o custeio para deslocamento e, o mais importante, o trecho que falava da essencialidade dos ACS nas equipes de Saúde da Família e dos ACEs na Vigilância em Saúde – tudo muito de acordo com a nova PNAB, que já não assegura que deve haver um número mínimo de agentes em cada equipe.

E os vetos não vieram sozinhos: logo depois dele, chegou a portaria ministerial 83, anunciada no último dia 12. Ela institui o Programa de Formação Técnica para Agentes de Saúde (Profags), que vai oferecer a ACS e ACE o curso técnico… de enfermagem! O Ministério da Saúde já anunciou que serão investidos R$ 1,25 bilhão para formar 250 mil agentes. O problema é que são áreas totalmente diferentes e, além disso, já existem os cursos técnicos em ACS e em Vigilância. Fica a pergunta inevitável: por que não usar esse recurso para custear a formação dos agentes em suas verdadeiras áreas de atuação?

Embora todo mundo concorde que a lei 13.595 tem muitos problemas, esse consenso está longe de existir em relação ao Profags. É só dar uma olhada nas redes sociais para ver que existe uma polêmica e tanto sobre a formação. Alguns trabalhadores estão desconfiados, enquanto outros veem uma boa chance de obter uma qualificação melhor, e de graça.

As entidades que representam as categorias, no entanto, têm visto a portaria 83 com muita cautela. No fim do mês, duas representações nacionais discutiram o assunto em grandes reuniões: a Confederação Nacional dos Agentes de Saúde (CONACS) se reuniu no Mato Grosso do Sul, e a Federação Nacional de Agentes Comunitários de Saúde e de Combate as Endemias (FENASCE), em Alagoas. Para as duas entidades, o Profags só vai trazer danos reais aos trabalhadores e é preciso lutar para revogar a portaria – além de anular os vetos à 13.595. Esta semana a CONACS fez uma convocatória à categoria para que se organize em caravanas em Brasília durante todo o mês de março. Além de pleitear a derrubada dos vetos, a mobilização pretende reavivar a pressão pela aprovação da PEC 22.

Três funções, um salário?

Luiz Cláudio de Souza, Presidente da FENASCE, explica que o Profags está totalmente alinhado com a nova PNAB e com os posicionamentos recentes do ministro da saúde, Ricardo Barros. “Ele já falou várias vezes sobre a necessidade de unificar as funções de ACS e ACE em um mesmo profissional. Agora, com o Profags, há também as funções de técnicos em enfermagem em jogo. Estamos caminhando para ter ‘três em um’: ACS, ACE e técnico em enfermagem em um mesmo trabalhador – e, é claro, sem nenhum aditivo salarial por isso”.

Em nenhum momento a portaria diz que a formação vai ser obrigatória (e, como o próprio Ministério anunciou, inicialmente serão oferecidas só 250 mil vagas), mas ainda há muitas dúvidas em relação a isso. “Embora a formação não seja obrigatória, temos a nova PNAB indicando que o ACS vai poder aferir pressão e glicemia, que são funções novas e ligadas à enfermagem. O que vai acontecer com quem não quiser ou não puder fazer o curso? Não sabemos”, diz Luiz Cláudio.

Em um áudio que circula na internet, a presidente da CONACS, Ilda Angélica Correia, diz que o Profags é a “demonstração clara de que o governo federal não mais quer a presença dos ACS e ACE, é a extinção das nossas categorias”, e lembra também que essa ameaça não é nova: “Em 2016, o Ministério da Saúde publicou as portarias 858 e 959 deixando clara essa intenção. Houve uma grande luta para a revogação mas se sabia que ainda não tínhamos saído do perigo. Os anos de 2016 e 2017 foram passados debaixo de fortes ameaças. Depois dos vetos à lei 13.595, quando a gente começa a parar para pensar e organizar estratégias para derrubar os vetos, vem o segundo golpe, essa portaria 83”.

E quem já é técnico na área, como fica?

Taí outra pergunta que ninguém sabe responder muito bem, e isso é algo que, para Marleidy do Nascimento, presidente da Federação Estadual de ACS e ACE do Maranhão, precisa ser olhado com atenção. Afinal, o curso técnico em Agente Comunitário de Saúde já existe desde 2004 e é oferecido em três etapas. Muita gente nunca ouviu falar dele, porque poucos municípios conseguiram oferecer o curso completo – e isso justamente porque a Comissão Intergestores Tripartite (que conta com gestores dos municípios, estados e União) decidiu interromper o financiamento por parte do governo federal, então são os estados e municípios que precisam arcar com os custos.

Apesar das dificuldades, em alguns estados ele vem sendo oferecido. No Maranhão, por exemplo, vários municípios já conseguiram concluí-lo, então há muitos técnicos em ACS formados. “E agora? Esse técnico vai ou não ter o valor que a gente espera? Temos vários municípios com planos de cargos e carreiras… E agora, qual profissional vamos colocar nesses planos, o técnico em enfermagem ou o ACS?”, pergunta Marleidy, que é técnica em ACS.

O reajuste nunca chega…

Tem outro ponto importantíssimo em toda essa discussão: o fato de que ela atrapalha, e muito, a luta pela PEC 22, que pretende reajustar os salários da categoria. Todo o foco que deveria estar voltado este ano para a PEC está agora dividido: é preciso também anular os vetos à lei 13.595, fazer toda uma discussão com a base sobre o Profags, batalhar pra revogar a portaria…

Para Luiz Cláudio, é tudo uma verdadeira cortina de fumaça: “Vamos ter que nos debruçar em cima dessas novidades e vai ser mais difícil unir forças em torno do reajuste dos salários”, afirma, lembrando que a questão salarial se agrava ainda mais com as mudanças já que, como ele mesmo disse, a ideia é ter aquele trabalhador ‘três em um’. Marleidy concorda, e lamenta ainda isso esteja acontecendo em 2018, um ano ‘curto’ para o Congresso. “Em ano de eleições, praticamente só temos até junho, porque depois os parlamentares começam a se mobilizar com as campanhas eleitorais e o Congresso fica esvaziado… Parece mesmo que querem tirar o foco da PEC 22 para que ela não seja aprovada este ano”, reflete.

 

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