Sobram dúvidas

Caco Xavier

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Edital para seleção das instituições foi lançado segunda-feira. Conversamos com pesquisadores que analisam o Profags

Por Raquel Torres, em Saúde É Meu Lugar

Mal dá tempo de respirar. Depois de o Ministério da Saúde anunciar o Programa de Formação Técnica para Agentes de Saúde (Profags) há pouco mais de um mês, entidades que representam a categoria se posicionaram contra e começaram a articular os trabalhadores, propondo mobilizações em Brasília durante todo o mês de março. A ideia é revogar a portaria 83, que institui o programa… Mas, se depender do governo federal, até lá os cursos já terão começado. É que as coisas estão caminhando de um jeito bem rápido e, esta semana (na segunda-feira, 19) o Ministério publicou o edital para contratação das instituições de ensino que querem oferecer os cursos.

[Não sabe bem do que estamos falando? Em janeiro, o Ministério criou esse programa que pretende formar ACS e ACE em técnicos de enfermagem. Pra entender melhor, veja nosso último post]

Como já estava nítido na portaria 83, o edital se destina a instituições públicas e privadas. Ele também explicita que será possível a formação na modalidade semipresencial.

Já mostramos que os trabalhadores individualmente não têm uma posição única – uma parte aprova o Profags, outra desconfia -, enquanto as entidades que representam a categoria veem no programa uma verdadeira armadilha. Entre outros problemas, elas apontam um superimportante: o tempo todo se fala em fazer com que os agentes exerçam mais atividades, mas não há nem sinal de reajuste dos salários (nem no aumento já devido – uma vez que o piso está congelado há quase quatro anos – e muito menos em pagar a mais pelas funções novas).

A discussão também inclui, é claro, a enfermagem. Hoje mesmo acontece uma reunião entre representantes da Federação Nacional dos ACS e ACE e do Conselho Nacional de Enfermagem. No Rio, a seção regional da Associação Brasileira de Enfermagem se posicionou contra.

Assim como acontece entre os agentes, nas instituições formadoras não há consenso, mas muitas discussões. “É impressionante que o mesmo governo que corta verba dos Institutos Federais queira formar – com dinheiro, equipamentos e servidores públicos – estes agentes na área da enfermagem. E destinar R$ 1,25 bilhão para uma formação anômala para os agentes!”, crítica Ana Barbosa, que coordena o curso técnico em ACS na unidade de Realengo do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ-Realengo).

A observação dela é bem pertinente e faz lembrar que os cursos técnicos voltados aos agentes – tanto o técnico em ACS como o técnico em Vigilância em Saúde – não conseguiram sair do lugar na maior parte do país porque os gestores não pactuaram o financiamento do governo federal.

E aí, resolve?

O maior argumento do Ministério para criar o Profags é o de aumentar a resolutividade da ESF. Será? Parece que estão em jogo duas ideias bem distintas de como deve funcionar a Atenção Básica. “A Atenção Básica tem a Estratégia Saúde da Família (ESF) como seu alicerce. E a ESF, por sua vez, tem o ACS como base. É ele quem faz o elo com a comunidade, quem faz a roda girar no que se propõe a ser a Atenção Básica”, diz Ana Barbosa, enfatizando que o Profags vai na direção da nova PNAB, que também representa um enfraquecimento da Atenção Básica como um todo. “É estratégico, nessa visão, enfraquecer o papel daquele que está na base de sustentação. A contrarreforma vai se dar exatamente em desmontar algo essencialmente público, como a Atenção Básica”, acrescenta.

Mais otimista, a diretora da Escola Técnica do SUS do Maranhão, Dayana Costa, diz que vê vantagens no Profags. “Já vínhamos discutindo a atuação dos ACS há algum tempo, e também como a Atenção Básica está funcionando. Percebemos que algumas questões vêm levando à descrença, por parte da população, em relação ao trabalho dos ACS, por conta da resolutividade. A população culturalmente espera mais dos profissionais de saúde”, diz ela.

“Percebemos que algumas questões vêm levando à descrença, por parte da população, em relação ao trabalho dos ACS, por conta da resolutividade. A população culturalmente espera mais dos profissionais de saúde”

(Dayana Costa)

Dayana também acredita que é possível reformular os cursos de enfermagem – que já é amplamente ofertado pelas Escolas Técnicas do SUS – para que possam se voltar à saúde da família e comunidade. “Isso é fácil de se adaptar”, diz. Mas pontua: “Já as particulares não vão ter essa visão. E não sabemos se as escolas do SUS serão priorizadas, nem como será dada essa prioridade”.

A visão das instituições particulares é algo a que, segundo Ana Barbosa, se deve prestar muita atenção. Ela acredita que o fato de elas participarem do programa pode dizer muito não só sobre as intenções como também sobre os possíveis resultados, inclusive em termos de resolutividade para o SUS. “Essas instituições não formam para o SUS. No Instituto Federal, todos os cursos têm disciplinas com vivências nos equipamentos do SUS e estágios nos mesmos. O aluno transita pelo curso totalmente preparado para se inserir no sistema. Mas, nas escolas privadas, a quem interessa fornecer ‘material humano’ para o SUS? Quem, no privado, vai discutir a realidade de uma Unidade Básica de Saúde e formar um técnico de enfermagem que atenda a essa realidade?”, questiona. Faz sentido: enquanto os agentes não existem fora do SUS, os técnicos em enfermagem tem ampla atuação no setor privado.

“Nas escolas privadas, a quem interessa fornecer ‘material humano’ para o SUS? Quem, no privado, vai discutir a realidade de uma Unidade Básica de Saúde e formar um técnico de enfermagem que atenda a essa realidade?”

(Ana Barbosa)

Ser ou não ser

Para quem discorda do programa, uma coisa está bem óbvia: cada uma com sua importância, as funções de ACS, ACE e técnico em enfermagem são coisas totalmente distintas. “A distância é tão grande, é algo tão fora de contexto que, realmente… Tento encontrar uma palavra que não seja tão agressiva, mas de fato é quase uma irresponsabilidade”, diz Ieda Barbosa, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), no Rio.

Enfermeira por formação, há muitos anos ela atua na Vigilância em Saúde e lembra que a preocupação é ainda maior neste momento, quando a febre amarela assusta – e muito – a população e as autoridades. “O papel dos agentes na prevenção à febre amarela, dengue, zika e outras dessas doenças, chamadas arboviroses, é muito importante, e tem que se considerar saneamento básico, acesso à água, vulnerabilidade social. Não é uma ação pontual”, completa ela.

É o porque os agentes trabalham com vigilância, centrados nas condições de vida. “O trabalho dos agentes de endemias  sempre foi, historicamente, extramuros. Mesmo quando há visita nas casas, não é um trabalho de assistência, mas de prevenção e promoção. A proposta é que a vigilância possa trabalhar não só com a prevenção das doenças mas com a promoção da saúde, na perspectiva de antecipar, reconhecer o risco e buscar a intervenção adequada – e às vezes é uma intervenção que nem está restrita à saúde. Não só só fatores de risco biológicos, a vigilância da água, do solo, do ar. Tem ainda os desastres naturais”, explica Ieda.

“O trabalho dos agentes de endemias  sempre foi, historicamente, extramuros. Mesmo quando há visita nas casas, não é um trabalho de assistência, mas de prevenção e promoção”

(Ieda Barbosa)

Para a professora, o que o Ministério propõe é passar todo mundo para uma perspectiva de assistência. “De cuidar depois que a pessoa já adoeceu. Ele não reconhece que a ação tem que começar antes”.

Em relação aos ACS, as especificidades também são muitas. “Acompanho ACS em visitas domiciliares várias vezes por mês. Definitivamente, há muito trabalho a fazer como ACS e não é de um técnico em enfermagem que o usuário precisa em casa, regularmente. Isso é um discurso vazio e só o sustenta quem nunca recebeu a visita de um ACS”, diz Ana Barbosa.

Para Mariana Nogueira, também da EPSJV, vários eventos – como o Profags, a nova PNAB e as várias falas do ministro Ricardo Barros, que afirma a necessidade de fundir ACS e ACE em um mesmo profissional – se articulam no sentido de extinguir os processos de trabalho que são próprios dos ACS. “É a passagem de um trabalho de articulação de redes, de reivindicação de direitos e de apoio social para um trabalho voltado para procedimentos técnicos, numa perspectiva biomédica. Acaba a ênfase nas redes sociais, na participação social. Esse trabalho, tão importante, é esvaziado”, diz a professora.

Ela lembra, porém, que não se trata de uma novidade. “Nos anos 1980 e 1990, os trabalhadores que originaram os ACS realizavam um trabalho importante de organização popular, de reivindicação por direitos, de pautar prefeituras por acesso a serviços de saúde. Isso começou a ser esvaziado nos anos 2000, com a PNAB anterior, que já começava a apontar um trabalho mais voltado às ações programáticas de saúde, em sua maioria com base biomédica. Depois, se começa a direcionar a atuação para o cumprimento de metas, registro de informações, para a burocratização do trabalho, para registrar informações e encaminhar demandas, e não mais para o lugar de mobilização social”.

“É a passagem de um trabalho de articulação de redes, de reivindicação de direitos e de apoio social para um trabalho voltado para procedimentos técnicos, numa perspectiva biomédica. Acaba a ênfase nas redes sociais, na participação social. Esse trabalho, tão importante, é esvaziado”

(Mariana Nogueira)

Para Mariana, a mudança de papel não é casual. “Eles têm muita força e um histórico importante de mobilizações. Conseguiram assegurar, com muita luta, uma série de direitos que outras categorias não conseguira, como o piso salarial nacional. Se articulam, vão para Brasília, levam três, quatro mil pessoas, pressionam deputados, enfim, são fortes. Deslocá-los do papel de mobilizadores sociais para procedimentos biomédicos enfraquece a resistência ao desmonte”, acredita, observando: “Sem falar nos direitos conquistados, que não se sabe como ficarão. Como fica se virarem técnicos em enfermagem? Perdem os direitos? Ou será que os técnicos em enfermagem já existentes, que são uma categoria mais precarizada, correm o risco de serem demitidos? Tudo aponta que sim”.

 

 

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