Morar bem é bom para a saúde

Estudos apontam: conjuntos habitacionais espaçosos, bem equipados e com fácil acesso aos serviços públicos garantem melhores condições de saúde a seus moradores. Programa chileno que revitaliza moradia popular mostra o caminho

Conjunto habitacional revitalizado no Chile. (Créditos: Proyecto Rucas)
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Morar em uma casa digna, espaçosa e bem localizada pode trazer uma ampla gama de benefícios para a saúde. A afirmação pode parecer ter algo de evidente – mas estudos científicos têm demonstrado evidências nesse sentido que nos ajudam a entender os detalhes dessa relação entre saúde pública e políticas de habitação. 

Nos artigos “‘Minha vida vai ser muito melhor que antes’: estudo qualitativo sobre a relação entre revitalização de moradias populares, qualidade de vida e saúdee “Desenvolvimento de instrumentos para estudar o impacto na saúde das transformações urbanas em contextos de alta vulnerabilidade: o estudo RUCAS”, publicados nos fascículos mais recentes dos Cadernos de Saúde Pública, os resultados de uma pesquisa desenvolvida no Chile esmiúçam os fatores envolvidos. Os Cadernos são uma publicação da Escola Nacional de Saúde Pública, vinculada à Fiocruz, parceiros editoriais do Outra Saúde.

Coordenado pela professora Alejandra Vives-Vergara, da Universidad Católica de Chile, o projeto de pesquisa RUCAS (sigla para Regeneración Urbana, Calidad de Vida y Salud) busca “analisar o impacto em saúde e bem-estar da regeneração urbana integral de conjuntos de habitação social em situação crítica no Chile”. Como base para suas investigações, pesquisas ligadas ao projeto acompanharam conjuntos localizados em duas das principais cidades do país, Santiago e Viña del Mar, entre 2018 e 2022.

Na década de 1990, novas políticas de habitação buscaram mitigar o déficit habitacional chileno, que havia se ampliado no período da ditadura de Augusto Pinochet. Porém, como os impasses políticos do governo Gabriel Boric têm explicitado hoje, as bases do neoliberalismo implantado pelos militares não caíram junto com o regime autoritário: as moradias construídas pelas primeiras administrações pós-redemocratização eram extremamente precárias e inadequadas às necessidades populares.

Conjunto habitacional em Viña del Mar, antes da renovação. (Créditos: Proyecto Rucas)

Moradores ouvidos pela equipe de pesquisadores relataram problemas variados. Apertadas, as unidades mal comportam as famílias ali alocadas. Com problemas de ventilação e iluminação, os apartamentos acumulam umidade e fungos. Mal equipados e distantes, os conjuntos obrigam seus moradores a se deslocar por quilômetros para acessar os serviços públicos ou mesmo qualquer opção de cultura e lazer.

O estudo traz números alarmantes: por conta de problemas como os relatados, cerca de 25% das 120 mil unidades entregues pelo programa noventista têm “severos problemas de habitabilidade” – são praticamente inabitáveis pouco mais de vinte anos após sua conclusão. Mais: suas deficiências obrigam os moradores – já economicamente vulneráveis – a investir seu próprio dinheiro, tempo e energia em reparos de alto custo. Em relação direta com isso tudo, a depressão, a insônia e as doenças respiratórias se alastram entre os chilenos “beneficiados” com essa moradia.

Iniciado em 2017, no segundo mandato de Michelle Bachelet, um programa criado pelo ministério de Habitação e Urbanismo buscou enfrentar a deterioração da moradia popular no país. Seus esforços se concentraram na remodelação e na ampliação dos apartamentos, já que uma das principais insatisfações da família era que não havia espaço “nem para deixar as roupas para secar”. Mas também foram construídas praças, hortas e centros comunitários, complexificando a ocupação das áreas comuns dos conjuntos.

Praça construída em área comum de conjunto habitacional, antes e depois. (Créditos: MinVU de Chile)

O estudo divulgado no fascículo de maio dos Cadernos de Saúde Pública se debruçou especificamente sobre um conjunto da cidade de Viña del Mar, na região litorânea de Valparaíso. Os resultados são instigantes – demonstram que o ganho de qualidade de vida não se restringiu a ter mais espaço para morar, mas se estendeu à saúde das famílias.

As mulheres foram maioria entre as participantes do estudo – são donas de casa que, por passarem a quase totalidade de suas jornadas nelas, são também as principais afetadas por suas limitações. Nas entrevistas, já se percebia que, entre elas, “a má qualidade material da moradia era percebida como danosa à saúde”. As reformas mudaram muita coisa: houve uma redução expressiva nos riscos associados à transmissão de doenças respiratórias – e os testemunhos são unânimes em apontar os benefícios das mudanças para a saúde mental.

A própria autoestima das famílias, diretamente ligada a seu bem-estar psíquico, deu um salto com a valorização de suas vidas e de suas casas. Para elas, ter uma vida social finalmente passou a ser um direito. Se antes convidar um parente ou amigo para uma visita era motivo de vergonha, algo impensável, a nova situação estimula que os moradores se apropriem efetivamente de seus locais de moradia. Já não é mais necessário – dizem os moradores – empilhar móveis e objetos nos cômodos, ou fazer de um mesmo ambiente quarto e sala de jantar: a possibilidade de se apresentar bem é valorizada pelos entrevistados.

O estudo divide esses efeitos da renovação das moradias entre diretos e indiretos. Entre os diretos, ligados às melhorias estruturais, enumeram-se o melhor desempenho térmico, a redução da umidade e dos fungos, a eliminação de infiltrações, a melhor iluminação e ventilação e o próprio embelezamento dos ambientes. A eles, se conecta a mitigação dos problemas respiratórios entre os habitantes dos conjuntos.

Os ganhos indiretos, que envolvem as práticas e experiências da população, giram em torno do exercício de uma vida social e familiar, das emoções positivas, da recuperação das funções dos espaços, da percepção de uma moradia mais saudável e da autonomia e identidade dos moradores com a casa. Nessa chave, o espaço se tornou um fator determinante para a saúde mental renovada dos pobladores.

As evidências recolhidas pelo estudo – que chega a citar o Minha Casa, Minha Vida e o programa Vila Viva (desenvolvido pela prefeitura de Belo Horizonte) como antecedentes do programa chileno no âmbito latino-americano – podem servir de material para reflexões muito importantes no contexto brasileiro de reconstrução nacional.

A oportunidade aberta pela recuperação de uma orientação democrática de governo não pode ser perdida. Tiveram fim as políticas genocidas na Saúde e o estado de paralisia na política de habitação – mas será preciso bastante criatividade e ousadia para atender com rapidez às demandas crescentes do povo nesses dois âmbitos, pois há mesmo uma emergência nessas áreas. A colaboração entre os ministérios da Saúde e das Cidades será indispensável.

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