A luta contra o apagamento da população LGBT+ no SUS

Mulher trans e assessora da Saúde, Alícia Krüger aponta: é preciso gerar dados mais robustos sobre a diversidade brasileira, cruciais para desenvolver políticas públicas de proteção, atenção e cuidado. Ministério já dá alguns passos nesta direção

Foto: Vanderson Apurinã/Conselho Nacional de Saúde
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Alícia Krüger em entrevista a Gabriela Leite

“As pessoas trans estão aqui, pela primeira vez na história das conferências nacionais falando pra vocês.” Essa foi uma das frases mais aplaudidas do discurso contundente de Alícia Krüger, farmacêutica clínica e sanitarista, durante o Eixo I da 17ª Conferência Nacional de Saúde, que aconteceu em Brasília entre 1º e 5 de julho. O tema era “O Brasil que temos, o Brasil que teremos” e Alícia apontou que alguns passos para um país mais inclusivo já estão sendo dados. Ela é assessora de Políticas de Inclusão, Diversidade e Equidade em Saúde, ligada à Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente (SVSA) do ministério da Saúde, e discursou sobre a importância de que os sistemas de informação sejam adaptados para enxergar a população LGBT – invisível até em níveis mais básicos.

Em entrevista ao Outra Saúde, concedida logo após o debate que abriu as atividades da Conferência, ela explicou um pouco melhor a necessidade de mudanças em sistemas de informação para incluir populações negligenciadas como a de pessoas trans. “Precisamos produzir dados fidedignos da população para tomar atitudes e decisões em saúde pública”, defendeu. Sem isso, o governo não é capaz de criar políticas públicas de proteção, atenção e cuidado. A falta de informação dessa população foi tema de matéria recente que tratava da fome enfrentada por pessoas trans na pandemia de covid. A impossibilidade de registrar a especificidade dessa população no Censo, na Pesquisa de Orçamentos Familiares e na Pesquisa Nacional de Saúde e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios dificulta que algo seja feito para mitigar os graves problemas que ela enfrenta.

Mas Alícia comemora as mudanças efetivas que começam a ser vistas no atual ministério da Saúde. Começam por dentro, com a preocupação em contratar pessoas trans, LGBT e com deficiência, por exemplo. Essa é uma prioridade da ministra Nísia Trindade, aponta Alícia. “Alguns dos integrantes do ministério estivemos presentes na 27ª Parada LGBT de São Paulo, com o apoio irrestrito da ministra. Levamos o Zé Gotinha pela primeira vez na história”, comemora – algo que claramente não seria possível nas gestões anteriores da pasta. Ela informa, também, que as mudanças na SVSA começam a ser feitas para o público atendido pelo SUS, em especial no que diz respeito à vigilância.

A assessora também abordou a situação do acesso de pessoas trans à educação. Ela defende que as cotas, hoje mais comuns na pós-graduação, tornem-se presentes também nos primeiros anos do ensino superior. Como primeira mulher trans a se formar em uma instituição pública no Paraná e uma das responsáveis pelo dispositivo de nome social nos vestibulares da Universidade Estadual de Ponta Grossa, ela percebe com preocupação a falta de transexuais na Educação. E luta desde o início de sua trajetória acadêmica para essa transformação – inclusive por acreditar que educação é um eixo da produção de saúde. 

Alícia também expôs sua visão sobre a epidemia de HIV/aids no Brasil e refletiu sobre a importância da participação popular na construção do SUS. Fique com a entrevista completa.

Queria que você contasse um pouco do seu trabalho na SVSA.

Eu sou assessora de Políticas de Inclusão, Diversidade e Equidade em Saúde, ligada à Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente (SVSA) do ministério da Saúde. Tenho prazer inenarrável de trabalhar diretamente com a secretária doutora Ethel Maciel, mulher, enfermeira, sanitarista, feminista, assessorando-a diretamente.

A gente trabalha muito em conjunto com o gabinete da ministra Nísia Trindade, junto com nossa querida Lúcia Souto [chefe da Assessoria de Participação Social e Diversidade]. Então essa pauta que a gente toca acaba chegando ao nível ministerial de fato. Nós encontramos esse espaço muito propício, como vocês viram. Alguns dos integrantes do ministério estivemos presentes na 27ª Parada LGBT de São Paulo, com o apoio irrestrito da ministra e da secretária. Levamos o Zé Gotinha pela primeira vez na história, o que é algo muito simbólico. 

As nossas ações são internas e externas. O eixo interno trata de tentar melhorar os recursos humanos, diversificar a SVSA – trazer mais pessoas pretas, mais pessoas trans, mais pessoas com deficiência. E também melhorar a qualidade de vida diária dos servidores e outros trabalhadores da nossa secretaria.

O eixo externo busca construir políticas públicas de fato no tocante da vigilância, mas também da assistência como um todo, trabalhando com as outras secretarias do ministério da Saúde. Claro que no debate feito na 17ª Conferência, nós focamos muito mais nas questões de gênero, sexualidade, população LGBT, mas a nossa assessoria é bastante completa. Ela trata também da pauta racial, da pauta de pessoas com deficiência num viés bastante anticapacitista, com a população indígena. 

Você vê essa nova gestão do ministério da Saúde mais aberta à população transexual?

Não tenho dúvidas. Primeiro que essa gestão federal, do governo Lula, é uma gestão democrática. Por consequência, obviamente o ministério da Saúde na gestão da nossa primeira mulher ministra da Saúde da história, que é a doutora Nísia Trindade Lima, não deixaria de ser democrático. Eu posso dizer inclusive que essa é uma das grandes prioridades que nós temos hoje. Temos um programa que gerou inclusive uma portaria lançada no dia 7 de março, que é a portaria de equidade de gênero, raça e valorização das trabalhadoras do SUS. A ministra sempre reitera que essa é uma das grandes prioridades de sua gestão, a equidade de gênero e a valorização das pessoas trabalhadoras em sua diversidade.

Então, mais do que eu achar, isso é fato. Nós temos participado de diferentes grupos de trabalho (GTs) intraministeriais e também com outros ministérios, como o dos Direitos Humanos, para promover saúde para as pessoas trans e LGBT. No âmbito da SAES, que é a Secretaria de Atenção Especializada à Saúde, nós estamos com um GT para revisão do processo transsexualizador no Brasil, liderado por uma grande profissional que é a professora Flávia do Bonsucesso Teixeira. Nós da SVSA temos acento e somos parceiros com participação irrestrita nesse GT. Estamos alterando o sistema de vigilância e informação de todo o ministério para adaptá-lo à realidade da população, inserindo os campos de orientação sexual, nome social, identidade de gênero.

Como o SUS poderia atender melhor a população transexual? 

Isso é um fato que a gente precisa encarar. O Sistema Único de Saúde foi colocado como direito ao cidadão em 1988 na nossa Constituição, a sua lei orgânica é de 1990. Então é um sistema muito jovem. Ele naturalmente vem melhorando cada vez mais e uma das coisas que vem muito forte é a questão da adaptação desse sistema de saúde, seja nos sistemas de informação, seja na assistência direta das pessoas LGBT em suas especificidades corporais. Há a necessidade, por exemplo, do uso de hormônios, consultas ginecológicas adaptadas para homens trans. Mas também na questão da vigilância, como eu sempre digo, precisamos produzir dados fidedignos da população para tomar atitudes e decisões em saúde pública. 

Como epidemiologista, como você vê a situação atual da de doenças como HIV/aids e outras ISTs no Brasil?

Ainda existem dois grandes tipos de epidemia. Mundialmente falando, em relação ao HIV, há uma epidemia do tipo generalizada – que é muito comum na África Subsaariana – e uma epidemia do tipo concentrada, como aqui no Brasil. A gente não pode olhar para as populações-chave, como por exemplo a população de homens gays e outros homens que fazem sexo com homens, a população trans, como simplesmente grupos onde o HIV mais prevalente. Precisamos olhar para os determinantes sociais: por que esses grupos concentram mais prevalência? 

Se você olhar de forma demográfica, que é uma ciência que dá suporte à epidemiologia, em números absolutos, muito mais homens gays vivem com HIV. Mas proporcionalmente as pessoas mais afetadas são as mulheres trans e travestis. Dessa forma, é preciso ter ações muito bem adaptadas, não só no cunho epidemiológico, mas junto às ciências sociais e humanas para dar suporte às nossas ações – e a participação social da mesma forma. 

Hoje nós temos, de forma geral, uma epidemia de HIV estabilizada há algum tempo na população em geral, mas que ainda cresce em algumas populações-chave em idades muito específicas como de 15 a 24 anos. Então precisamos pensar ações que não sejam só biomédicas, como a disposição pelo Sistema Único de Saúde de antirretrovirais para prevenção ou tratamento, distribuição de preservativos. 

É preciso que as campanhas sejam adaptadas com as noções de gênero para as mulheres trans e travestis, com o enfrentamento da homofobia para os homens gays e da transfobia para as pessoas trans. Então o que a gente chama de eixo estrutural do enfrentamento à epidemia precisa estar nessa mesa para a decisão. 

Pensando um pouco sobre a questão do acesso à educação, você é um exemplo por ter sido a primeira pessoa trans a se formar na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Como você vê o acesso dessa população à universidade?

Infelizmente, eu te digo que fui a primeira pessoa trans a se formar pelo estado do Paraná, em uma instituição pública de ensino. Isso foi em 2016. E eu não digo isso com nenhum orgulho. Naquela época eu também fui a primeira travesti, pelo menos na história da minha instituição, a compor o Conselho Universitário como representante discente. Olhando para as cadeiras ao meu lado e não vendo nenhuma outra pessoa trans, e em decisão com outras pessoas, eu decidi comprar a briga para colocar o nome social no vestibular. 

Nós conseguimos aprovar a medida por unanimidade no Conselho Universitário e a UEPG, que é uma universidade pública muito renomada no Brasil, foi a primeira universidade do país a aderir ao nome social no vestibular. O mesmo aconteceu no PSS, que é aquela prova seriada para entrar na universidade, feita nos três anos de Ensino Médio, e também no concurso de admissão de professores e outros funcionários. A partir daí, várias outras universidades foram se adaptando e hoje esse dispositivo é bastante difundido. E teve a marca de uma travesti nessa conquista. 

A partir disso, eu comecei a ver muitas outras pessoas trans entrando na universidade. Então, a relação foi óbvia: o constrangimento na hora da da chamada do vestibular é um dos grandes impeditivos para essas pessoas estarem lá. Mas ainda hoje a gente vê que esse não é o único ponto. Falando de cotas, por exemplo, é muito bacana e muito importante essa iniciativa para as pessoas trans a nível de pós-graduação – mas isso é lá na frente. Primeiro é preciso estruturar e dar condições para que as pessoas trans tenham educação básica, fundamental e estudem no ensino médio com políticas de incentivo e de permanência. Muito mais interessantes – isso já acontece em alguns lugares do Brasil e precisa aumentar essa proporção – são as cotas na graduação.

Nós temos trabalhado essa noção dentro dos programas de educação do ministério da Saúde também. Já estamos com tudo isso em mente. No Programa de Equidade de Gênero e Raça e Valorização das Trabalhadoras e dos Trabalhadores do SUS, também vamos trabalhar com um edital específico de seleção de ações de equidade para universidades, estados e municípios e também na sociedade civil. Então tem muita coisa sendo feita para melhorar o acesso à educação, à universidade – lembrando que educação também é um eixo da produção de saúde. 

Qual a importância da 17ª Conferência para construir essas transformações necessárias na Saúde?

Eu vejo como a frase do nosso grande Sérgio Arouca, que eu diria que talvez seja o grande pai das Conferências Nacionais e um dos grandes pais do do SUS. Ele dizia que saúde e democracia não podiam andar separados – esse foi o lema da 8ª Conferência Nacional de Saúde [que aconteceu em 1986 e deu as bases para a construção do SUS].

Então esse é o grande ato democrático. Vejam que agora no nosso governo democrático, participativo, na gestão democrática do ministério da Saúde, estamos recebendo muitas intervenções, inclusive com cobranças. É isso que a gente precisa e é isso que a gente quer. Um SUS que dê voz às pessoas, que cobre, que proponha políticas públicas efetivas de saúde.

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