A população de rua também quer o SUS

Em conferência, essa parcela de brasileiros teve a oportunidade de dizer o que pode ser feito para que seja recebida com dignidade pelo Sistema. Consultórios na Rua são política consistente, mas precisam ser melhor disseminados pelo país

Foto: Portal Conasems
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José Carlos Varella Junior em entrevista a Gabriel Brito

As conferências livres de saúde seguem acontecendo país afora. São essas etapas municipais e estaduais que produzem as milhares de propostas que serão entregues em seu ponto culminante: a 17ª Conferência Nacional de Saúde, marcada para acontecer entre 2 e 5 de julho em Brasília. 

As conferências tratam de temas específicos em saúde, desde a própria estrutura do SUS ao direito à saúde de setores variados da população. São um termômetro fiel do imenso manancial de demandas sociais que jorram sobre o governo Lula e voltam a pôr na mesa pautas de diversos setores historicamente vulnerabilizados.

Na última sexta-feira, 12/5, a população de rua, talvez o mais fragilizado de todos esses grupos sociais que pedem socorro ao Estado brasileiro, fez sua conferência livre de saúde e organizou a pauta que pretende levar ao governo Lula. “O SUS preconiza atendimento universal, integral e com equidade a todas as pessoas. Mas a rua não consegue ter o acesso universal, porque não é em todo lugar que ela consegue ser atendida. Ela precisa de um atendimento humanizado e as pessoas que trabalham no SUS em sua maioria não executam essa política”, contou José Carlos Varella Junior, assistente social presente à Conferência Livre da População de Rua.

Na entrevista ao Outra Saúde, Varella, que trabalha na Baixada Santista, lamenta todo o ostracismo ao qual é relegada esta população, que encontra dificuldades inclusive para representar a si mesma na própria Conferência, mas também descreve todo o acúmulo de luta e construção de uma agenda de direitos desta parcela de brasileiros.

“O modelo de saúde pública do país tem como base a chamada Saúde da Família e Comunidade. Mas as pessoas que têm vínculos de família rompidos não deixam de ser pessoas. Nós temos de partir para outro princípio, que é o do espaço que elas ocupam. Por exemplo: sempre pedem comprovante de residência aos usuários do SUS, mas se sabemos que a pessoa dorme na frente da padaria quando ela fecha, é vista todos os dias naquele local, é ali o contato real que o sistema tem com o usuário. Aquele espaço passa a ser a referência e a pessoa pode ser tratada na unidade de saúde mais próxima. Esse é o trabalho que os Consultórios na Rua fazem”, explicou.

Os Consultórios de Rua, onde Varella tem 8 anos de experiência, são para ele um exemplo de política de saúde eficiente. Inclusive em termos econômicos, uma vez que as mazelas da vida cotidiana fazem com que pessoas em tal condição só procurem assistência médica em casos graves – em especial nas cidades onde não há Consultórios na Rua.

“Por isso o Consultório na Rua foi colocado na Atenção Primária, por ser o equipamento que faz a busca ativa das pessoas em situação de rua, as cadastra, analisa, avalia e já inicia o atendimento, com educação em saúde e promoção de autocuidado para evitar agravos mais difíceis de se tratar. Com isso, temos um investimento baixo e um retorno muito bom, porque se a pessoa acessa o sistema de saúde a partir do pronto socorro, ela usa atendimentos do terceiro nível de atenção (alta complexidade). É muito caro”, ilustrou.

Estamos falando de um perfil de população que cresceu muito nos últimos anos. Como todos podemos ver, em especial nas grandes capitais, a quantidade de sem-teto aumentou exponencialmente nos últimos anos – resultado direto das chamadas políticas de “austeridade” fiscal. Com atuação na economia solidária, Varella ajuda a apontar caminhos para a reversão do quadro trágico que vive a sociedade brasileira.

“A visão higienista da maioria dos governos municipais faz com que a pessoa seja punida por estar na rua. Eles tiram a pessoa, mandam andar, tiram cobertor. Existe muita violação de direitos (…) Uma de nossas principais propostas é a criação de algum projeto de lei que vise instituir a política nacional de saúde da população em situação de rua. Nós temos que fazer com que os municípios entrem nessa pauta e sejam obrigados a efetivar algum tipo de projeto”, conclui.

O que você pode comentar da Conferência Livre de Saúde da População em Situação de Rua? Quais grupos estiveram representados e protagonizaram o encontro?

A conferência é uma construção coletiva dos dois movimentos principais nacionais da população em situação de rua, o MNPR (Movimento Nacional da População de Rua) e o MNLDPSR (Movimento Nacional de Luta em Defesa da População em Situação de Rua), junto com a Organização Pan-Americana de Saúde), pastorais da igreja e várias outras instituições, como o Conselho Regional de Psicologia do Paraná. Nós trabalhamos praticamente três meses pra poder fazer a organização toda, sempre com o protagonismo da rua.

Sou técnico neste processo e trabalho dando apoio e suporte às decisões e necessidades da rua. São as pessoas que vivem tal condição que constroem a agenda para efetivar os direitos que a rua já vê garantidos nas políticas e criar outras, que atendam a necessidades nunca levadas em consideração, porque a rua nunca teve voz nas conferências de saúde. Por isso tentamos fazer a rua ter acesso às conferências de saúde e levar suas necessidades.

Saúde da população de rua é um tema marginal, assim como esse próprio setor da sociedade, nos debates desta e de qualquer outra área. O que seria saúde da população de rua, quais são suas questões essenciais?

O SUS preconiza atendimento universal, integral e com equidade a todas as pessoas. Mas a rua não consegue ter o acesso universal, porque não é em todo lugar que ela consegue ser atendida. Da integralidade nem se fala, porque se a pessoa entra com uma dor e é constatado que precisa de uma cirurgia, a integralidade faria com que fosse encaminhada a uma cirurgia. Mas normalmente essas pessoas são dispensadas, negligenciadas por preconceito, por estigmas, atitudes banais dos profissionais que se acham moralmente superiores que as pessoas em situação de rua.

Essa é a pior coisa que existe. Precisa de um atendimento humanizado e as pessoas que trabalham no SUS em sua maioria não executam essa política, tanto que nós já demos cursos e mais cursos aos profissionais da saúde para que eles aprendam a trabalhar com tal público de forma humanizada. Tentamos colocar isso na pauta para quebrar paradigmas, preconceitos e garantir de verdade o acesso da população de situação de rua ao direito de ter sua saúde tratada.

Qual o histórico de atuação do Estado no sentido de preparar melhor o SUS para lidar com esse perfil de público usuário do sistema de saúde?

O Estado, na verdade, negligencia todos os públicos do SUS, uma vez que tem uma visão predominante ligada ao neoliberalismo, mais preocupada em gerar lucros privados. Visão de um Estado que gasta menos e abre possibilidades às indústrias de serviço de saúde ocuparem o lugar dos hospitais, do SUS, de todos os locais públicos de saúde, que são precarizados no seu orçamento, de modo a fazer a qualidade cair e, assim, as pessoas se convencerem de que o SUS não dá certo. Aí eles terceirizam a gestão dos serviços de saúde. Criticam gastos públicos e vêm essas conversas de teto dos gastos e tudo mais. Mas a chamada “austeridade” é só nas políticas públicas. Para beneficiar empresários não existe limite de gastos e muito menos “austeridade”.

E como vamos fazer frente a isso? Só ocupando os espaços do controle social, o que é preconizado pela nossa constituição e tentado pelos movimentos de cidadania. É ocupar as ruas, os espaços representativos, conselhos, a fim de tensionar as discussões para as nossas necessidades. É um trabalho complicado, mas é a única forma que temos de mudar a realidade.

A população de rua efetivamente chega a usar o SUS? Como você pode descrever o contato cotidiano desta parcela da população com o sistema de saúde brasileiro?

Em cidades onde não existem equipamentos como o Consultório na Rua, a porta de entrada do atendimento à população em situação de rua são as UPAs, os prontos-socorros, onde tais pessoas só vão se estiverem morrendo, se sentindo muito mal, nas últimas. Por isso o Consultório na Rua foi colocado na Atenção Primária, por ser o equipamento que faz a busca ativa das pessoas em situação de rua, as cadastra, analisa, avalia e já inicia o atendimento, com educação em saúde e promoção de autocuidado para evitar agravos mais difíceis de se tratar. 

Com isso, temos um investimento baixo e um retorno muito bom, porque se a pessoa usa como porta de entrada o pronto socorro ela usa atendimentos do terceiro nível de atenção (alta complexidade). É muito caro. E as pessoas só conseguem acessar “naquelas”: o médico dá um remédio, coloca um soro e depois deixa a pessoa lá largada. Quando pergunta alguma coisa, a depender do lugar, este paciente ouve um pouquinho de desaforo e acaba indo embora. Depois, colocam “evadido” nas fichas.

O modelo de saúde pública do país é a chamada Saúde da Família e Comunidade. Mas as pessoas que têm vínculos de família rompidos não deixam de ser pessoas. Nós temos de partir para outro princípio, que é o do espaço que elas ocupam. Por exemplo: sempre pedem comprovante de residência aos usuários do SUS, mas se sabemos que a pessoa dorme na frente da padaria quando ela fecha, é vista todos os dias naquele local, é ali o contato real que o sistema tem com o usuário. Aquele espaço passa a ser a referência e a pessoa pode ser tratada na unidade de saúde mais próxima. Esse é o trabalho que os Consultórios na Rua fazem.

Tentamos fazer também com as abordagens sociais, mas a visão higienista da maioria dos governos municipais faz com que a pessoa seja punida por estar na rua. Eles tiram a pessoa, mandam andar, tiram cobertor. Existe muita violação de direito. Tudo isso foi discutido na nossa Conferência e começamos a entender também a lógica nacional. Há coisas que acontecem no Rio Grande do Norte que sequer são cogitadas no Rio Grande do Sul. Precisamos de uma política também regionalizada ou que pelo menos leve em consideração as especificidades de cada território, de cada estado. Não é possível uma política única para um país desse tamanho, para uma população tão heterogênea quanto a da rua.

Tudo isso tem de ser muito bem pensado e nós estamos dispostos a levar tais discussões para 17ª Conferência Nacional de Saúde.

É óbvio que para a população de rua não faz sentido ter uma pauta de saúde isolada de outras. Para além deste tema, qual a agenda que este setor pretende levar para a Conferência Nacional de Saúde em julho?

Depois da Conferência Livre de saúde, estamos preparando também as conferências da assistência social. Nelas, pretendemos colocar essa população nos espaços de controle social, para que ela possa falar por si, para que ninguém tenha que levar o que a rua precisa ou necessita. A rua vai falar por si. Essa é a ideia dessas conferências.

Temos quatro eixos temáticos na nossa conferência, que são os mesmos da conferência nacional. De cada eixo nós tiramos uma diretriz e cinco propostas. Portanto, são muitas propostas. A rua traz algumas propostas que são específicas para a rua, mas podem ser aplicadas a qualquer outra população vulnerabilizada, pois a rua tem a noção de ser um recorte da sociedade; ela não está à margem da sociedade. Tudo que tem na rua tem na sociedade. A única diferença são os vínculos familiares rompidos, a extrema pobreza e o uso de espaços públicos como está no decreto 7.053 [de 2009, que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua]. Aliás, essa é uma briga nossa. Por que um decreto, que pode cair a qualquer momento?

Uma de nossas principais propostas é a criação de algum projeto de lei que vise instituir a Política Nacional para a População em Situação de Rua. Assim, deixa-se de depender só de um decreto federal, que é muito genérico, cada lugar usa de um jeito. Nossa ideia é forçar os municípios, onde as coisas acontecem, a usarem leis como base para fazer o cuidado da população em situação de rua, porque as leis são discutidas no Congresso, a União, que depois repassa verbas a estados e municípios, e estes fazem o que querem.

Nós temos que fazer com que os municípios entrem nessa pauta e sejam obrigados a efetivar algum tipo de projeto, não ficar só na decisão dos vereadores da cidade, porque normalmente os vereadores são na maioria brancos, não têm trajetória de situação de rua, não conhecem ninguém. É muito preconceito, eles nunca vão se preocupar em fazer leis do interesse desta população. Um bom exemplo é a economia solidária, pauta que nós puxamos para dentro da saúde, pois produz trabalho e renda para quem está em atendimento nos CAPS, nos abrigos, cria condição de fazer um projeto para que as cooperativas de economia solidária possam existir. Mas precisamos de regulações sobre tal tema, o que a maioria dos municípios não têm.

São pautas como esta, capazes de efetivar outras necessidades, que discutimos e queremos levar a Brasília.

Diante de tudo que foi exposto aqui, o que você espera que a Conferência Nacional apresente, não só à população de rua do país como também a todos os usuários do SUS como projeto para os próximos anos?

Precisamos conectar necessidades. Nossa conferência foi no dia 12 e no dia 13 muitos de nós participamos da Conferência Livre de Saúde da População Negra, pois mais de 80% das pessoas em situação de rua são negras, de maneira que dialogamos com outras políticas públicas de várias maneiras. Tem gente que acha que quem está na rua não tem diabetes. Como eu faço uma pessoa em situação de rua acessar o cuidado com o diabetes se não tem um comprovante de residência? Coisas assim foram conversadas, para que possamos efetivar os direitos. Porque há uma diferença muito grande entre garantir direitos e efetivá-los. Se ficar de braço cruzado o direito continua no papel. Ele tem de passar para a vida real das pessoas. E hoje nossa sociedade entende que coisas valem mais do que pessoas. Como a população em situação de rua não tem coisas, ela vale muito pouco diante da sociedade. Nós temos de mudar esse olhar.

Fizemos um trabalho bem potente, cada um voltou para o seu estado e estão lá nas conferências livres, da assistência social, da saúde, que já estão acontecendo, apesar de poucos moradores das ruas conseguiram passar para as conferências nacionais. Eles são bloqueados, barrados nas eleições, de uma forma às vezes sutil, às vezes nada sutil, até canalha. Mas aí nós resolvemos fazer a conferência livre para garantir que mais pessoas pudessem participar deste processo.

Infelizmente, não conseguimos as mil pessoas que pretendíamos para poder levar dez representantes; seriam oito pessoas em situação de rua e dois trabalhadores ligados a tal população. Afinal, a rua não tem celular, não tem computador, o que dificulta bastante. Mas conseguimos mandar três pessoas em situação de rua para a conferência nacional e um trabalhador. Foi uma mobilização muito grande, forte. A parceria com a OPAS foi fundamental também, conseguimos representação em dez estados, desde o Rio Grande do Norte até o Rio Grande do Sul. Isso tudo é muito significativo pra nós.

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