Jogo de identidade

Saúde tem destaque entre as propostas do candidato, que se apresenta sob a ideia de que “Haddad é Lula”

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Por Raquel Torres, do Outra Saúde

04 de outubro de 2018

Neste momento, quando os dois candidatos mais bem posicionados nas pesquisas eleitorais têm índices de rejeição acima dos 40%, é difícil imaginar qualquer cenário em que o “povo” vá ser “feliz de novo”, como promete, em seu nome, a coligação PT-PCdoB-PROS que lançou a candidatura de Fernando Haddad, do PT.  

Pouco conhecido de parte do eleitorado até dois meses atrás, o candidato foi quem mais cresceu nesse período. Nas primeiras pesquisas, antes de a candidatura de Lula ser indeferida, ele tinha 4% das intenções de voto, mas depois chegou a 21% ou 22% em poucos dias. Agora, está parado aí há quase duas semanas. Presença praticamente certa no segundo turno ao lado de Jair Bolsonaro (PSL), Haddad tem um grave problema: sua rejeição também não para de subir.

Desde o primeiro minuto a campanha está centrada na ideia de que “Haddad é Lula”. O que, por sinal, não é explorado só nas ruas, na propaganda eleitoral e nos memes, mas também no próprio plano de governo, que traz na capa a fotografia de Haddad no centro, ladeado pela candidata a vice, Manuela D’Ávila (PCdoB), e pelo próprio Lula.

O documento é mais abrangente do que foram os dois programas de governo das campanhas eleitorais de Dilma Rousseff. Para vários temas – como reforma agrária, reforma tributária e um novo marco regulatório da comunicação social, por exemplo -, fica sempre aquela indagação, difícil de o partido conseguir justificar, sobre por que questões tão urgentes não foram priorizadas desde 15 anos atrás. Ao longo de todo o documento, abundam alusões ao impeachment sofrido pela ex-presidenta e ao governo de Michel Temer.

O que passou

Formado em direito, mestre em economia, doutor em filosofia e professor de ciência política na Universidade de São Paulo (USP), Haddad entrou na política no início dos anos 2000 como subsecretário de finanças e desenvolvimento econômico da prefeitura de São Paulo, na gestão de Marta Suplicy. Em 2013, ele próprio assumiu a prefeitura da cidade. Antes disso, nos governos Lula e Dilma, ficou conhecido por comandar o ministério da Educação, o que fez entre 2005 e 2012.

A gestão como prefeito de São Paulo não teve boa aprovação e, quando tentou a reeleição, em 2016, Haddad não chegou a 17% dos votos, perdendo ainda no primeiro turno. Na entrevista ao Jornal Nacional, ele justifica essa rejeição afirmando que na época “o clima que se criou no Brasil, de antipetismo, porque se represaram informações sobre os demais partidos, foi enorme”. De acordo com ele, o eleitor foi induzido ao erro a partir das informações que possuía, ou seja, “que o PSDB era de santos, o PMDB era de santos e o PP era de santos e o demônio do país virou o PT. E isso se provou errado”.

Sua explicação faz sentido. Mas ao mesmo tempo, no término de sua gestão, uma boa parte das promessas de campanha não havia sido cumprida integralmente. Entre elas, algumas da saúde, como a inauguração de hospitais, UPAs e unidades básicas de saúde. Das sete metas para a área, a única integralmente cumprida, segundo o Tribunal de Contas do Município, foi a implantação de 12 consultórios de rua com tratamentos odontológicos e relacionados ao abuso de álcool e outras drogas. A implantação do modelo de prontuário eletrônico na rede municipal de saúde – um xodó dos candidatos, presença certa nos planos de governo, inclusive no de Haddad – atingiu 92,5% de cumprimento. Outros percentuais: a construção de três novos hospitais (75,8%), a recuperação de 16 hospitais (88,6%), a construção de 43 UBSs (67,5%), a reforma de 20 Pronto-Socorros e instalação de cinco UPAs (53,7%), a implantação de 30 Centros de Atenção Psicossociais (31,6%).  

No geral, mais de metade das promessas foram integralmente cumpridas. Ainda no Jornal Nacional, o candidato afirmou que o não-cumprimento integral das restantes foi devido à recessão econômica, “a maior da história da cidade de São Paulo”. O fato é que os paulistanos sentiram a falta de resultados, e, em julho de 2016, quase 80% avaliavam que Haddad havia feito menos do que o esperado para a saúde. Houve pontos interessantes, porém. Mais à frente alguns deles vão aparecer neste texto.

E as coisas não melhoraram após a sua saída: mesmo que Haddad tenha deixado o cargo com dinheiro em caixa, o prefeito seguinte, João Dória (PSDB) implantou um ajuste fiscal que cortou verba da saúde, e só entre janeiro e agosto de 2017 aplicou R$ 1 bilhão a menos que Haddad no mesmo período do ano anterior; foram cortados recursos para obras e implantação de unidades de saúde.  

O que se quer

A saúde aparece bastante no plano de governo de Haddad, tanto no capítulo dedicado especificamente a ela como ao longo de vários outros. Um dos compromissos centrais é a revogação da Emenda Constitucional 95, que congela gastos federais com áreas como a saúde até 2036. Essa revogação vai ser proposta “por todos os meios democráticos, inclusive por referendos e plebiscitos”. Ainda em relação ao financiamento, a chapa promete o seu “aumento imediato e progressivo” e estabelece um valor: 6% do PIB (atualmente, são gastos 3,9%). Os recursos para isso viriam de novas regras fiscais, de uma reforma tributária e do retorno do Fundo Social do Pré-Sal.

A reforma tributária seria “orientada pelos princípios da progressividade, simplicidade, eficiência e da promoção da transição ecológica”, embora não fique claro o que seria essa transição. Quem recebe até cinco salários mínimos (hoje, R$ 4.770) ficaria isento, e “em compensação, o ‘andar de cima’, os super-ricos, pagarão mais”, diz o documento, sugerindo a definição de novas e mais altas alíquotas, mas sem especificar.

O programa do PT é o único que dá atenção à alimentação e à prática de atividades físicas enquanto medidas promoção da saúde. Prevê uma atuação do governo com políticas regulatórias e tributárias referentes ao tabaco, sal, gorduras, açúcar e agrotóxicos e “programas” que incentivem atividades físicas e alimentação saudável. Vale mencionar que uma das medidas mais bem faladas do governo Haddad em São Paulo foi a regulamentação de uma lei que torna obrigatória a inclusão de alimentos orgânicos ou de base agroecológica na alimentação escolar do sistema municipal de ensino.

Também é um dos poucos que cita a Política Nacional de Atenção Básica. De acordo com o plano, a organização de uma “atenção básica resolutiva e organizadora do cuidado à saúde é o eixo central da política assistencial que se quer implementar”. Diz que uma “ousada iniciativa” para garantir a expansão nesse nível de atenção é o Programa Mais Médicos, que deve “nortear novas ações de ordenação da formação e especialização dos profissionais de saúde”. E que devem ser ampliados a Estratégia de Saúde da Família, o SAMU, o Farmácia Popular, Brasil Sorridente, a Rede de Atenção Psicossocial e a Rede de Atenção às Pessoas com Deficiência.

Uma novidade proposta é a criação de Clínicas de Especialidades Médicas, em parceria com estados e municípios, em todas as regiões de saúde. Elas seriam integradas com a atenção básica e garantir o acesso a exames, cirurgias de média complexidade e consultas com especialistas, tanto da medicina (ortopedista, cardiologista, ginecologista, oncologista, oftalmologista, endocrinologista) como de outras áreas (fisioterapia, fonoaudiologia, nutrição, psicologia, entre outras). Parece a Rede Hora Certa, implantada pelo candidato na prefeitura de São Paulo com a mesma finalidade. Por lá, ajudou a reduzir as filas para determinadas especialidades e exames. E foi copiada por João Dória.

Além disso, o documento prevê valorizar o parto normal, humanizado e seguro e superar a violência obstétrica. Essa foi uma preocupação dos governos Dilma e,  enquanto prefeito de São Paulo, Haddad também atendeu bem a esse tópico. Já havia uma casa de parto do SUS (a de Sapopemba)  e, em 2015, a prefeitura firmou convênio com a Casa Ângela, um centro de parto humanizado que funciona em uma região periférica.  O número de nascimentos em casas de parto dobrou, e o percentual de episiotomias (um corte no períneo totalmente desnecessário e que é uma das formas mais comuns de violência obstétrica) caiu praticamente pela metade. Entre “mães de primeira viagem”, que passam mais rotineiramente pelo procedimento, o percentual de epísios caiu de 40% para 14%.

De forma vaga, o programa promete uma “forte ação de controle do Aedes aegypti” e explorar “ao máximo” a “potencialidade econômica e tecnológica” do complexo industrial da saúde.

E o setor privado?

Há um posicionamento incerto em relação à privatização. O documento critica “a concepção fortemente privatizante da saúde”, mas a ênfase é na  proposta de planos populares e na visão mais direta de saúde como mercadoria. No plano da gestão, por outro lado, a ideia é “aprimorar a regulamentação” das relações com o terceiro setor, principalmente com as organizações sociais (OS), que são justamente uma forma de privatização.

Quando ele se candidatou à prefeitura de São Paulo, onde as OS abundam, havia uma certa expectativa de que pudesse acabar com elas. Ainda durante a campanha ele fez questão de deixar claro que não o faria – e, durante seu mandato, chegou a beneficiá-las com a aprovação de um projeto de lei que isenta do pagamento do Imposto Sobre Serviços as OS das áreas de saúde, cultura, esportes, lazer e recreação, e ainda as Parcerias Público­-Privadas (PPPs) das áreas de transporte público metropolitano, saúde, educação, habitação de interesse social e iluminação pública. Muitos anos antes, no primeiro governo Lula e antes de assumir a Educação, Haddad integrou por breve tempo o Ministério do Planejamento na gestão Guido Mantega, e foi responsável por elaborar o projeto de lei que instituiu as PPP no Brasil.

Quanto aos planos de saúde, Haddad pretende  regulá-los “de forma mais transparente”, mas não explica como isso será feito. E o texto afirma que, se não forem “capturadas pelo poder econômico”, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) são essenciais para “reduzir os gastos dos trabalhadores, das famílias e dos empregadores com remédios, planos, médicos e hospitais.

Em entrevista publicada ontem no Viomundo, ele volta a falar das agências, referindo-se, ainda que sem citar nomes, às indicações de Michel Temer para suas diretorias: “Consideramos fundamental que as agências reguladoras possam ter autonomia em seus processos decisórios. Suas decisões precisam ser pautadas no interesse público e em estudos técnicos com a devida Análise de Impacto Regulatório. A escolha dos diretores deve cumprir os critérios definidos nas leis e na missão institucional das agências. Não se pode admitir que os interesses políticos ou privados se sobreponham ao interesse público. No nosso governo, as indicações de diretores para a ANS e Anvisa deverão seguir esses preceitos”

Questões transversais

Fora das propostas específicas de saúde, mas intrinsecamente ligada a elas, está a questão do saneamento e da proteção de recursos naturais. Há um bom destaque para o meio ambiente e, como se a devastação tivesse iniciado dois anos atrás, o plano diz que “nossos recursos naturais serão preservados e protegidos da devastação que os ameaça com os ataques do governo golpista”.

De acordo com o documento, a água deve ser vista a água como direito humano e, o saneamento, como política pública essencial para a oferta desse direito. Propõe retomar e ampliar o programa de construção de cisternas, que fez muita diferença para quem enfrenta a seca, e fala ainda sobre a retomada da revitalização de bacias hidrográficas como a do São Francisco.

Haddad também promete ter o cuidado com a primeira infância como “uma diretriz estratégica do governo”, e com ações em “todas as áreas”. Diz que o “governo ilegítimo é o responsável direto pelo aumento da mortalidade infantil, além de ter paralisado o apoio aos municípios para a construção de creches”. A promessa é a de retomar as políticas de saúde para as gestantes e de combate à mortalidade infantil, e ainda apoiar “fortemente” os municípios para a ampliação dessas vagas novamente. Há outras propostas, como combater o trabalho infantil, retomar as políticas de proteção prevenindo o abandono e a violência e qualificar e equipar os Conselhos Tutelares.

O programa petista é um dos que dão mais espaço às questões rurais e propõe “integrar três dimensões essenciais à transição ecológica”. A prioridade para a agricultura familiar, a ampliação da oferta de serviços nas pequenas cidades do interior, para evitar a evasão do campo, e a democratização da propriedade da terra “com políticas de reforma agrária, fortalecimento da agricultura familiar de base agroecológica e da agroindustrialização da sua produção e ampliação do crédito e da economia solidária como instrumentos de desenvolvimento”.

Nos governos Dilma a reforma agrária se retraiu imensamente: entre 2011 e 2015, foram assentadas em média 25 mil famílias por ano, enquanto nas gestões de Lula a média foi de 76,7 mil. Mas mesmo com Lula, que tinha a reforma agrária como grande meta, ela foi considerada tímida. O processo basicamente se concentrou no primeiro governo e, mesmo assim, o número de famílias assentadas ficou aquém do prometido. Apesar de tudo – inclusive de ter privilegiado o agronegócio -, as gestões do PT ainda permitiram avanços para pequenos agricultores, por exemplo com o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).

Pontos sensíveis

Algo que deu uma certa repercussão negativa é a proposta de “criar as condições” para uma nova Assembleia Constituinte. Teve gente – inclusive Ciro Gomes – comparando a ideia à do General Mourão, que afirmou recentemente o desejo de convocar uma Assembleia Constituinte formada por ‘notáveis’ não-eleitos. Não tem rigorosamente nada a ver, ainda que a proposta petista possa ser discutida e criticada. O plano afirma que “para assegurar as conquistas da Constituição de 1988, as reformas estruturais e das instituições preconizadas, será necessário um novo processo constituinte”, e que ela será eleita, “livre, democrática, soberana e unicameral”

Ao longo do documento há ênfase nos direitos humanos. A promessa é de resgatar e atualizar o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), convocar uma conferência nacional “popular”, implementar as recomendações da Comissão Nacional da Verdade, recriar, “com status de ministério, as pastas de Direitos Humanos, Políticas para as Mulheres e para Promoção da Igualdade Racial” e criar Sistema Nacional de Direitos Humanos, articulado com os estados, municípios, movimentos sociais e sociedade civil organizada. Mas não fica claro o que exatamente seria este plano.

O documento também fala especificamente em ter uma “nova política de drogas”. Diz que a atual política de repressão é “equivocada, injusta e ineficaz”, porque prende mais as pessoas “não violentas, não organizadas e desarmadas, envolvidas no varejo disperso” do que “homicidas, traficantes de armas e lideranças do crime organizado que já se transnacionalizou”, fazendo dos presídios locais de “recrutamento em massa para facções criminosas”. Sem estabelecer a descriminalização como meta, o documento diz que é preciso “olhar atentamente para as experiências internacionais que já colhem resultado positivos com a descriminalização e a regulação do comércio”.

Na prefeitura de São Paulo, Haddad fez o programa Braços Abertos, criado no fim de 2013 para lidar com a cracolândia. Foi uma tentativa de removê-la a partir da redução de danos e de acordos com usuários – a eles, eram oferecidos abrigos, trabalho remunerado na limpeza das vias e tratamento para dependência não-compulsório. Elogiado por agências internacionais de combate às drogas como a Open Society Foundation, o programa reduziu em um ano o fluxo da região em dois terços – de 1,5 mil pessoas para 500 – e foi eficaz na diminuição do uso de crack entre os atendidos. Mas houve problemas. Como em 2015, quando uma operação para convencer usuários da região a entrar no programa e também desmontar barracas, com apoio da PM, acabou levando a um grave confronto.

Aliás, um dos pontos mais marcantes, negativamente, da gestão de Haddad no município se refere às pessoas em situação de rua. No frio inverno de 2016, quando cinco pessoas já tinha morrido de hipotermia na capital paulista, chegou a notícia de que a Guarda Civil retirava violentamente colchões e cobertores de quem dormia nas praças e calçadas. Haddad disse na época que a orientação era “não deixar favelizar praças públicas”

Voltando ao plano de governo, e finalizando com mais uma questão sensível, há um nome oculto no ar: o documento promete a promoção da saúde integral da mulher “para o pleno exercício dos direitos sexuais e reprodutivos”, com base no “princípio constitucional da laicidade do Estado”. Mas a palavra “aborto” não está lá.

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