Pela última vez?

Apresentando-se como terceira via, Ciro evita os tabus e enfatiza desenvolvimento industrial, inclusive na saúde

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Por Raquel Torres, do Outra Saúde

01 de outubro de 2018

Ciro Gomes (PDT) já viveu dias melhores nesta corrida presidencial. Desde que a candidatura de Fernando Haddad (PT) foi oficializada, o segundo turno, que já era incerto, parece ainda mais distante para ele. Na última pesquisa do Datafolha, Ciro vem empatado em terceiro lugar com Geraldo Alckmin, que, por sua vez, está em ligeiro crescimento*.

O candidato se divide entre repreender o PT e o primeiro colocado, Jair Bolsonaro (PSL), e agora pesa cada vez mais a mão em relação a Haddad. No debate de ontem, transmitido pela Record, ele chegou a aproximar o candidato petista  e a chapa de Bolsonaro. Ciro comparou o desejo do General Mourão (candidato a vice deste último) de convocar uma Assembleia Constituinte formada por ‘notáveis’ não-eleitos à certamente criticável proposta de Haddad de “criar as condições” para no futuro fazer uma reforma constitucional por meio de uma constituinte eleita, “livre, democrática, soberana e unicameral” (conforme está em seu plano de governo). Tentando se apresentar como ‘terceira via’, Ciro ainda afirmou a necessidade de “superar a intolerância, ódio e violência que o Bolsonaro interpreta, mas o ‘outro lado’ também aperfeiçoa”.

Na semana passada ele já havia endurecido bastante as críticas. Disse à Rádio Guaíba, do Rio Grande do Sul, que o PT se tornou uma organização “odienta” de poder e que não pode esperar seu apoio no 2º turno: “O PT contou comigo ao longo dos últimos 16 anos até o impeachment da Dilma”; mas como “eles acusam de ter havido um golpe” e seguem em alianças com os senadores Renan Calheiros e Eunício Oliveira, “não é mais possível para mim andar com eles, definitivamente”, declarou. Durante a pré-campanha, ele afirmou ao El País que uma chapa sua com Haddad como vice seria o “dream team”.

No passado

É a terceira vez que Ciro concorre à presidência — e, de acordo com ele, a última. Apesar de nunca ter vencido, tem uma carreira extensa na política, que começou aos 20 anos e já lhe rendeu passagens por vários partidos, alguns que já não existem com estes nomes: PDS, PMDB, PSDB, PPS, PSB, Pros e, finalmente, o PDT, ao qual está filiado desde 2015.

A trajetória faz sentido em seu cenário familiar. Alguns Gomes passaram pela prefeitura de Sobral (CE) desde os anos 1890. O irmão Cid já foi foi deputado estadual, prefeito de Sobral, governador do Ceará e ministro da educação no segundo governo Dilma Rousseff. Ivo, outro irmão, foi deputado estadual várias vezes. E ainda abundam tios e primos com cargos semelhantes em períodos diversos. “Nossa família tem cem anos de vida pública, colhemos o espaço natural de quem trabalhou direito a vida toda”, disse à piauí, há uma década, o primo Tim gomes.

Quanto a Ciro, já foi duas vezes deputado estadual no Ceará, prefeito de Fortaleza, governador do Ceará, deputado federal e ministro nos governos Itamar Franco e Lula. Seu último cargo público foi como secretário de saúde do Ceará, lugar que ocupou duas vezes, em 2013 e 2015, primeiro no governo de Cid e depois no do petista Camilo Santana. De acordo com ele, sua gestão fez com que a saúde pública no Ceará se tornasse uma das melhores do país. Mas há reclamações. E uma pesquisa recente do Ibope mostrou que o problema que mais aflige cearenses de todas as idades e escolaridades é a saúde, citada por 73% dos entrevistados (a segurança ficou em segundo lugar, com 54%).

Apesar das críticas, o candidato tem outros trunfos. Quando prefeito de Fortaleza, entre 1989 e 1990, teve a melhor avaliação de desempenho entre os prefeitos das capitais. Mais tarde, em 1994, encerrou o mandato como governador do Ceará com elevado índice de aprovação. O índice de mortalidade infantil no estado foi reduzido em um terço no período.“No seu governo, a economia cearense registrou taxas de crescimento superiores à do Nordeste e à do Brasil. O Ceará ganhou manchetes internacionais com programas para combater epidemias, o desemprego e o analfabetismo”, diz uma matéria da Folha de S. Paulo, em 2002 — ressalvando, porém, que os bolsões de pobreza e miséria persistiram. E apontando ainda que, em sua gestão, ele “arrochou salários e terceirizou alguns serviços públicos”.

No primeiro governo Lula, Ciro assumiu o ministério da integração nacional e esteve à frente de um dos seus projetos mais famosos e controversos: a transposição das águas o Rio São Francisco, que gerou protestos em relação ao alto custo, ao impacto ambiental e à destinação da água transposta (que não iria apenas para o consumo  humano e animal, mas também para a agroindústria e grandes proprietários de terra).

Indústria

O programa cirista vem centrado no desenvolvimento da indústria brasileira. O tema, transversal, também tem força na saúde: há ênfase na necessidade de investimentos no complexo industrial da saúde e na produção de medicamentos nacionais.

O plano propõe reduzir as barreiras da atual lei de propriedade intelectual, especialmente na proteção de patentes, “fazendo uso das flexibilidades do Acordo TRIPS da OMC, como a emissão de licenças compulsórias para a sustentabilidade do direito à saúde, quando necessário”. Mas, para além disso, o candidato critica que não se produzam aqui remédios que já tiveram suas patentes vencidas: Este ano, a União vai comprar 17 bilhões de dólares de fármacos, próteses, cama de hospital, cadeira de roda, bengala, coisa que uns 70% já tem patente vencida e você, com engenharia reversa, copia, cola e pode produzir no interior do semiárido do Nordeste”, explicou ao jornal GGN.

Ainda sobre medicamentos, ele mencionou no debate da TV Aparecida a experiência cearense de “centralizar toda licitação de remédios, unindo todos os municípios ou consórcios de municípios e os estados” e fazendo com que “as licitações acompanhem os fluxos por onde os remédios saem”, com informatização. “No Ceará conseguimos relativo êxito”, disse. Na mesma noite,  criticou fortemente a patente Instituto Nacional de Propriedade Industrial deu à farmacêutica americana Gilead para o medicamento sofosbuvir, contra hepatite C, o que considerou uma “aberração feita infelizmente pelo judiciário brasileiro, que vedou a possibilidade de Farmanguinhos, da Fiocruz, produzir o medicamento”.

Na ponta

O plano de Ciro reforça a atenção básica como porta de entrada no Sistema e coloca como necessário o “aprimoramento da cobertura”, mas sem metas objetivas. Também aponta o problema das filas de espera, dizendo que  um “ponto a ser trabalhado é a redução da espera para os atendimentos ambulatoriais, as consultas especializadas e a realização de exames, bem como a diminuição da espera para as cirurgias eletivas”. Mas, também aqui, a proposta é vaga: não há uma meta objetiva de redução.

Algumas soluções são ventiladas quando o documento fala em  “investir na rede de atendimento, nas campanhas de prevenção e de vacinação, na formação de médicos generalistas, na melhoria dos sistemas de informação, na coordenação entre as diversas esferas de atendimento, incluindo o pacto federativo, e na premiação do bom desempenho”.

Outra, mais objetiva, é a “compra de procedimentos junto ao setor privado”, que seria acompanhada de uma correção nos valores da tabela de procedimentos que o SUS usa para comprar serviços.

Aliás, este mês, o responsável pela saúde em seu plano de governo — Henrique Javi, secretário de saúde do Ceará — participou de um evento na Fiesp organizado por entidades que representam o setor privado na área. Estiveram com ele os “ministeriáveis” do PT, do PSDB, da Rede e do Novo. Como relatou Bruno dias em coluna do Outra Saúde, Javi ressaltou a necessidade de marcos regulatórios,  “desmistificando a criticidade das relações público-privado”.

Quanto aos planos de saúde, o documento prevê incentivos à melhoria da gestão, “com critérios de entrada e priorização no atendimento, definição de protocolos médicos, verticalização do atendimento e acompanhamento do histórico dos pacientes”.

Outra proposta para melhorar o acesso é  implantar uma rede de policlínicas, como feito no Ceará. Na entrevista ao GGN, ele disse que elas “são administradas por consórcios municipais, co-financiadas pelo estado, que paga metade, deixando metade para os municípios”.

Já a premiação do bom desempenho mencionada no plano tem sido muito comentada pelo candidato. No debate da TV Aparecida, ele explicou que vai separar R$ 4 bilhões do orçamento da saúde para  premiar, com R$ 100 mil por ano, as unidades básicas de saúde que cumprirem metas de satisfação do usuário e metas objetivas para problemas como diabetes, mortalidade infantil e febre amarela.

Seu plano de governo também fala em criar um Sistema Nacional de Ouvidoria do SUS — como não detalha o que seria este sistema, ficamos sem saber se é diferente do que já existe. E, como quase todo mundo, Ciro propõe a o registro eletrônico de saúde para registrar o histórico do paciente e facilitar o atendimento em todas as esferas. Em recente matéria da Folha, o professor de saúde preventiva Mário Scheffer, da Universidade de São Paulo, explicou que trata-se de algo difícil de implantar no país por conta da fragmentação da rede assistencial e pelo alto custo. “É muito precária a comunicação entre as unidades básicas, a rede de especialistas e os hospitais”, disse.

Profissionais de saúde esquecidos

Ciro é favorável à manutenção e ampliação do programa Mais Médicos, mas sem profissionais estrangeiros. E diz que o problema da distribuição desses profissionais tem diferentes nuances. “Isso é oferta e demanda. Se a oferta é restrita, sobe o preço dramaticamente. O salário dos médicos no interior do Ceará é exorbitantemente fora da realidade brasileira. Um médico de pequena comunidade tem o salário maior do que todas as pessoas da cidade, inclusive o juiz. E troca por coisas tipo presença dois dias na semana, ou ir só um turno, porque há uma demanda muito violenta. No interior do Ceará já temos 100% de cobertura, e estamos pagando R$ 20 mil, R$ 25 mil para um garoto em início de carreira ir fazer atenção básica”, comentou em vídeo. Ele também critica a falta de médicos generalistas para fazer atenção básica. “Se não houver uma questão de ordem pública que interfira na formação e que se pondere o orçamento discriminado de recursos humanos, que inverta a lógica de especialização precoce… Quem sabe essa ideia de se fazer primeiro uma especialização em Saúde da Família”, opinou.

Outros profissionais de saúde não mereceram atenção no plano de governo.

O dinheiro

Assim como Guilherme Boulos (PSOL) e Fernando Haddad (PT), Ciro defende que há pouco dinheiro para a saúde. Seu programa não responde, porém, quanto seria necessário ou desejável para pôr em marcha suas propostas.

Ele pretende revogar a Emenda Constitucional 95 para descongelar os gastos federais para a área. Quer um outro instrumento de contenção, mas que preserve gastos com investimento, saúde e educação. No plano, defende ainda outras medidas que aumentariam o volume de recursos disponíveis: a revisão das despesas do governo, “de modo a eliminar desperdícios, sobreposições e privilégios”. E apresenta medidas para uma reforma tributária que permitiria taxar mais quem tem bolsos mais gordos: recriar o Imposto de Renda sobre Lucros e Dividendos e elevar a alíquota do imposto sobre heranças e doações.

A importância da vice

Um dos pontos mais polêmicos da candidatura de Ciro não está em seu programa, mas na composição da chapa. A escolha da a empresária Kátia Abreu, pecuarista e ex-dirigente da Confederação Nacional da Agricultura, recebe inúmeras críticas, e o candidato diz que optou por ela à despeito de suas diferenças de posicionamento.

Em entrevista a Glenn Greenwald, do Intercept, ele disse que “a Kátia Abreu é uma mulher que votou contra o impeachment, votou contra esse conjunto de reformas antipobre, antipovo, antinacionais, que o Michel Temer representa e foi expulsa do PMDB”. Quando perguntado sobre a diferença entre escolher uma vice como ela ou Temer, ele mencionou “decência e espírito público”, completando: “E basicamente compromisso com o projeto que eu tô defendendo. O Brasil não vai sair dessa encalacrada estrutural sem um projeto nacional de desenvolvimento que associe concretamente os interesses da produção, que a Kátia pra mim representa brilhantemente, com os interesses do mundo do trabalho, que eu tenho mais instantâneo reconhecimento como representante”.

Ciro não traz o termo “agrotóxicos” em seu plano de governo nem propõe qualquer medida para diminuir o uso desses produtos. A ausência da palavra não quer dizer que os agrotóxicos não estejam lá: o documento menciona a necessidade de “defensivos agrícolas específicos para as nossas culturas e problemas, de menor conteúdo tóxico para pessoas e o meio ambiente, e incentivo à adoção de sistemas de controle alternativos na agricultura, prática essa que se constitui em uma tendência mundial”.

E, fora do documento, o candidato já falou sobre a necessidade de expandir essa indústria aqui. “Nós temos o agronegócio, especialmente a agricultura, mais competitiva do mundo, com 40% dos seus custos importados. Não há uma fábrica com contabilidade em real de fertilizante, uma fábrica sequer de agrotóxico com contabilidade em Real, uma fábrica sequer de implementos agrícolas. Se você misturar aqui crédito, incentivo fiscal e um esforço de coordenação estratégica do governo com a iniciativa privada, você pode verticalizar para dentro, para fora e para frente”, disse, na entrevista ao jornal GGN.

Sem tabus: uma estratégia

Grandes pontos de discordância entre Kátia e Ciro estão na flexibilização do porte de armas — ela  já se manifestou favoravelmente, ele é contra  — e na descriminalização do aborto — Kátia não quer, ele se mostra favorável. “Acho que a mulher tem direito ao respeito a seu próprio corpo. O aborto é uma tragédia humana, social, mas, antes de tudo, é uma tragédia de saúde pública. As ricas fazem [aborto] na hora que querem nas clínicas clandestinas, sem problemas, e as pobres estão morrendo. Tenho certeza que se o Estado acolhesse, aconselhasse, oferecesse uma adoção, se fizesse a mediação dos traumas familiares que as adolescentes experimentam ao se verem grávidas sem planejar, a quantidade de abortos cairia profundamente”, afirmou Ciro à BBC.

Mas não há nada explícito no plano de governo quanto a isso, nem sobre armas, nem sobre drogas. A Greenwald, o candidato explicou que não tocar em temas tabus para parte do eleitorado é uma estratégia importante. Por exemplo, a despeito de ser contra o encarceramento de pequenos traficantes, ele disse: “Eu não preciso entrar nesse debate dando murro na ponta de uma faca, que não é racional. É tabu pros grupos religiosos que são ampla maioria na sociedade brasileira, isso é tabu. E de repente eu tô preocupado com combate à corrupção, e eles são meus aliados; eu tô preocupado com a pobreza, miséria, a desigualdade, e eles são meus aliados. Eu vou jogar todos eles fora por uma imprudência, um descuido, um despotismo esclarecido?”.

* Na pesquisa do Ibope divulgada horas apos a publicação desta análise, a distancia entre Ciro e Alckmin é um pouco menor.

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