“Ministeriáveis” da saúde debatem na Fiesp

Entidades empresariais entregam pauta de interesses colocando os representantes dos candidatos no centro das atenções

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Por Bruno C. Dias para o Outra Saúde

24 de setembro de 2018

“Sabe que estou me sentindo um presidenciável com esse sorteio? ‘Tô’ achando graça, isso é um perigo!” brincou David Uip em meio ao quarto bloco do evento “Presidenciáveis – Propostas para a Saúde”, realizado na última quarta-feira, 19 de setembro, no Edifício-sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. “A intenção é essa”, falou o cerimonialista, mas nem precisava. Organizado pelo Comitê da Cadeia Produtiva da Saúde e Biotecnologia (ComSaúde/Fiesp); pelo Instituto Coalizão Saúde (ICOS) e pelo Colégio Brasileiro dos Executivos da Saúde (CBEXS), o debate reuniu executivos, tecnocratas e dirigentes de entidades nacionais da gestão e da saúde suplementar para ouvirem da boca dos responsáveis pelos programas de saúde das candidaturas ao Palácio do Planalto o que de fato pensam sobre assuntos caros ao empresariado do setor. De quebra, antecipou o mar de encruzilhadas que se abre diante do SUS a partir de 2019.

O quilate acadêmico e a qualidade da inserção política do time não deixavam dúvidas de que se tratavam de ministeriáveis, ou, no mínimo, de integrantes das elites partidárias com suficiente respaldo para representarem seus candidatos e poderem adiantar posicionamentos pouco ou simplesmente não explicitados nos programas registrados pelas candidaturas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que, como exposto num importante estudo recém-lançado, apresentam pouca materialidade sobre ações programáticas para o setor.

Como anunciado, foram convidados representantes dos seis candidatos com maior intenção de votos. Em ordem alfabética, participaram Arthur Chioro, ex-ministro da saúde e professor da Escola Paulista de Medicina (Unifesp), representando Fernando Haddad (PT); David Uip , ex-secretário de saúde do Estado de São Paulo e diretor-geral da Faculdade de Medicina do ABC, representando Geraldo Alckmin (PSDB); Henrique Javi, secretário de saúde do Estado do Ceará, representando Ciro Gomes (PDT); Marcia Bandini, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM/Unicamp), representando Marina Silva (Rede); e Roberta Grabert, médica obstetra e candidata a deputada estadual, representando João Amoedo (Novo). A campanha de Jair Bolsonaro (PSL) não retornou ao convite, logo não marcou presença no evento.

“Desejamos que no próximo dia 5 de janeiro todos os seus candidatos tomem posse. Como a Constituição não permite multipresidentes, que quem seja eleito discuta com as cabeças brilhantes aqui presentes as propostas de governo para o setor, que, como sempre pregamos, só permite um partido, o partido da saúde”, saudou Ruy Baumer, dirigente do ComSaúde/Fiesp, ao centro da mesa. Nas pontas, Giovanni Guido Cerri, vice-presidente do ICOS, e Francisco Balestrin, presidente do CBEXS. Antes do debate, os ministeriáveis já haviam participado de uma reunião na qual foi entregue o Caderno de Propostas – Coalizão Saúde Brasil 2018 e acertada a mecânica do evento.

Ao todo, foram duas horas de debate divididas em cinco blocos – apresentação; duas rodadas de perguntas da mesa – em que cada representante respondeu cinco de nove perguntas; uma rodada de perguntas do público – cada representante respondeu duas de dez perguntas sorteadas – e considerações finais.

Em linhas gerais, todos os participantes mantiveram o mesmo tom ao longo do debate. Ainda que soubessem – e muito bem – os posicionamentos históricos do empresariado da saúde, dialogaram com o público sem abusar da tática de “jogar para a plateia”, ressaltando visões de Saúde Pública bem consolidadas e coerentes com a programática geral representada por suas coalizões, com clara distinção dentro do espectro ideológico ali representado. Vale destacar que os ministeriáveis em uníssono criticaram e pediram o fim da remuneração por produção, citada recorrentemente no termo em inglês fee for service, e apontaram o reordenamento da regionalização como forma de qualificar a gestão e os gastos públicos.

Por sua vez, as questões apresentadas refletiram a conhecida pauta do empresariado. As perguntas da primeira rodada, feitas diretamente pelo triunvirato empresarial que compôs a mesa, funcionaram como insígnias de cada entidade, chamando os representantes às falas em temas como judicialização, liderança em recursos humanos e inserção do setor privado no planejamento do sistema. Já as demais perguntas da mesa e do público valorizaram assuntos como regulação da saúde suplementar, contratualização das ações e serviços, incorporação de tecnologia, papel das agências e dos entes filantrópicos, constituição de redes de atenção especializada e complexo industrial. Da prestação em si, apenas a saúde bucal teve uma pergunta específica.

No bloco de apresentação, os ministeriáveis centraram foco nas concepções sobre o SUS e a relação público-privado. Roberta Graibert se disse “apaixonada pela gestão” e apresentou o “novo SUS”, que definiu curtamente como um sistema marcado pela “integralidade com prioridades; saúde com competitividade”. Ao longo do debate, Roberta repetiu diversas vezes a ideia de se guiar por uma “agenda técnica”, pontuada pelo uso da tecnologia, “cooperação” do setor privado com o público, e unificação das agências reguladoras, numa tentativa de marcar sua diferenciação de uma “agenda política”. Foi a participante mais aberta aos interesses empresariais expressos nas perguntas, indicando a responsabilização dos usuários na pergunta sobre judicialização; afirmando que “não adianta falar em formação se continuamos formando péssimos profissionais”, ao debater o tema da liderança, e dizendo “ser música para os ouvidos” a pergunta que apontou para a inserção do setor privado na ordenação e planejamento do sistema.

Com a experiência de quem já foi ministro, Arthur Chioro conseguiu falar dos pontos altos da inserção da iniciativa privada no SUS, buscando “ressaltar a confiança do setor”, sem deixar de frisar a centralidade da agenda política. Trouxe à baila a importância das políticas industriais, das parcerias para o desenvolvimento produtivo (PDP), dos hospitais filantrópicos de excelência (como o Albert Einstein em que Bolsonaro encontra-se internado) e da ampliação da assistência farmacêutica por meio do programa Farmácia Popular, mas frisou também a necessidade de revogação da Emenda Constitucional 95 e a “ampliação da base de orçamento público para garantir acesso com qualidade”, enfrentando assim o subfinanciamento. Chioro foi enfático ao afirmar que a atividade de planejamento compete ao Estado e que, num eventual governo Haddad, não se abrirá mão da gestão do sistema, contando com “uma forte participação” do setor privado, mas ouvindo também os gestores estaduais, municipais e os conselhos. “Temos visto experiências locais em que literalmente se entrega a capacidade de gestão [à iniciativa privada]. Esse país é extremamente heterogêneo. […] O setor privado não está distribuído homogeneamente. Um projeto de parceria público-privado em São Paulo tem uma dimensão, mas nas demais 437 regiões de saúde isso se transforma num desafio muito maior”.

Ao conclamar a união da sociedade brasileira para “criar redes em defesa da saúde”, Marcia Bandini encarnou bem a estratégia do discurso centrista, apresentando ideias para o que entende como “um SUS universalista no direito”, ressaltando, para isso, cooperação de órgãos públicos, filantrópicos e privados com avaliação por metas de desempenho; capacidade técnica e gestão eficiente. “A gente faz muito com R$ 3 por dia nesse país. Não dá pra tomar um cafezinho, nem pra pegar o ônibus aqui na cidade.” Ainda na apresentação, foi quem destacou os eixos de forma direta: reorganização do sistema; prevenção e promoção da saúde; e ações articuladas e intersetoriais. Defendeu ainda a definição de autoridades sanitárias para cerca de 400 regiões de saúde por critérios técnicos e sem interferência de indicações e a reorganização das agências reguladoras com total independência da agenda política. Bandini não tocou na polêmica EC 95, ressaltando apenas que “austeridade tem de ser no combate ao desperdício e à corrupção”.

David Uip valorizou toda a experiência à frente do maior orçamento público entre os estados para destacar sua concepção de gestão orientada pelo acesso ofertado centralmente por organizações sociais e demais instituições privadas em rede com o serviço público, mas se valeu de uma leitura enviesada como justificativa. “O Sistema Nacional de Saúde é composto pelo SUS e pela iniciativa privada. O SUS é público, mas não é estatal”, repetindo uma cantilena criada pelos representantes do mercado em 2013 sem nenhum respaldo no texto constitucional. Ainda na apresentação, destacou o projeto de sustentabilidade para as Santas Casas paulistas como modelo a ser seguido e ressaltou a redução do financiamento do SUS pelos entes públicos, apontando a necessidade de “encurtar o caminho do que é público e privado”. Defendeu ainda as PPPs como estratégia “criativa” para alavancar orçamento e organizar o sistema e afirmou que o pagamento por produção é incompetente e incentivador do desperdício. Ao final, foi enfático: “Saúde não é coisa para amador. Presidência da República não é coisa para oportunista. […] Ninguém aqui se iluda que a gente vai ter mais dinheiro em 2019. Ninguém se iluda que nós vamos ter mais disponibilidade de recursos. Vamos precisar de rigidez e criatividade”.

A máxima “desenvolver para devolver os melhores serviços ao público” foi repetida quase que em todas as intervenções de Henrique Javi. No curto tempo da apresentação, o secretário cearense conseguiu chamar o setor privado ao diálogo, ressaltando a necessidade de marcos regulatórios “desmistificando a criticidade das relações público-privado” e articular o tema da eficiência com o debate do financiamento, declarando o compromisso em romper com a política de austeridade sob a égide da EC 95. Falou ainda de uma nova organização do modelo “preventivo centrado no cidadão”, implementado no estado do Ceará e cujos resultados foram atestados recentemente em boletim da Firjan. O ministeriável voltou à carga no binômio desenvolvimento-financiamento tanto na pergunta sobre judicialização, incluindo na resposta a reformulação do pacto federativo; como na pergunta sobre política industrial. “Quatro setores vão merecer atenção especial e o complexo industrial da saúde é quem vai justamente botar o Brasil na vanguarda. Temos excelentes universidades e excelentes pesquisadores, com produtos totalmente possíveis de serem desenvolvidos em nosso contexto e estão relegando e trazendo de fora”, numa das poucas citações às estruturas cientificas e universitárias nacionais do evento. Foi quem mais vezes estourou o tempo e mais vezes citou o nome do seu candidato.

O debate está disponível na íntegra no canal da Fiesp no YouTube. Vale a pena conferir para ver os demais posicionamentos dos ministeriáveis e captar nuances e discrepâncias com programas das candidaturas e as trajetórias dos políticos e partidos. É uma aula de Saúde Pública, num debate altamente qualificado e pautado exclusivamente pela iniciativa econômica, que segue no seu histórico papel de “partido da saúde”, que não brinca em serviço e impõe suas cartas ao SUS e ao conjunto das políticas de saúde.

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