Liberal até certo ponto

Amoêdo, do Novo, prega autonomia do indivíduo com “responsabilidade”, privatização das estatais e mais parcerias público-privadas na saúde

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Programa de governo de João Amoêdo, do Novo, prega autonomia do indivíduo com “responsabilidade”, privatização de todas as estatais e mais parcerias público-privadas na saúde

20 de setembro de 2018

Por Maíra Mathias, do Outra Saúde

As raízes do pensamento liberal estão no século 19. Em síntese, os liberais pregam menor participação do Estado na economia e também na esfera social. Ao mesmo tempo em que defendem desregulamentação do mercado, acreditam que os indivíduos devem ser livres para optar, sem interferência do Estado, sobre as mais diversas questões. As mais lembradas são o porte de armas, a orientação sexual, o uso de drogas e o fim de gestações indesejadas. O Partido Novo, que disputa as eleições presidenciais pela primeira vez este ano, gosta se de definir não como uma legenda de direita, mas como um partido “liberal”.

Seu candidato, João Amoêdo, contudo, prega um liberalismo seletivo. Seu programa de governo prevê, na mesma frase, “a defesa das liberdades individuais com responsabilidade” e o “livre mercado” (este sem ressalvas). Embora não fique claro o que isso quer dizer no texto protocolado no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em entrevistas a contradição é explorada como um dos calcanhares de Aquiles do candidato.

Amoêdo faz questão de se definir “conservador nos costumes” e se posiciona contra a descriminalização da interrupção da gravidez no país. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, de 2016, uma em cada cinco mulheres até os 40 anos, já realizou pelo menos um aborto.  

Um museu de novidades

Segundo a última pesquisa Ibope, divulgada anteontem (18) Amoêdo tem 2% das intenções de voto – uma queda de um ponto percentual em relação aos levantamentos anteriores (divulgados em 5 e 11 de setembro), em que aparecia com 3%. Já segundo a Datafolha de ontem (19), ele está estável, com 3%. 

Com patrimônio declarado de R$ 425 milhões, é o candidato mais rico. Em segundo lugar, está o banqueiro Henrique Meirelles (MDB) com R$ 377,4 milhões. Amoêdo é formado em engenharia civil e administração de empresas e tem sua trajetória profissional ligada a bancos. Foi diretor-executivo do Banco BBA Creditanstalt, vice-presidente do Unibanco, instituição na qual atuou como membro do conselho de administração, posição que também exerceu no Itaú BBA. É associado à Casa das Garças, think tank liberal criada em 2003, enclave do pensamento neoliberal no Brasil. Para ele, “não é função do Estado criar empregos“.

O programa de Amoêdo tem clara inspiração empresarial, com cada uma das dez prioridades de governo sintetizadas por uma “visão”. O lema é ‘Mais oportunidades, menos privilégios’ e, ao longo do texto, se defende uma sociedade que “valorize o sucesso e não o vitimismo”. O “grande sonho” do candidato é um país onde “todos possam chegar lá”. Mas perguntado no Roda Viva sobre as desigualdades estruturais da sociedade brasileira que fazem com que amplos estratos da população partam nessa ‘corrida’ atrasados (pela pobreza, pelo racismo, pelo machismo, pela violência) Amoêdo se limitou a responder que não quer dividir o país.   

Tanto nas entrevistas, quanto no programa de governo, o candidato surfa da narrativa do Partido Novo. Segundo o documento, Amoêdo e seus correligionários fizeram um caminho da “indignação para a ação”. Revoltados com os altos impostos, a ineficiência dos serviços públicos e a falta de “assistência aos menos favorecidos”, concluíram que a melhor forma de mudar o quadro seria através da política. O Novo começou a ser construído em 2011. E conseguiu registro em setembro de 2015, a tempo de participar das eleições municipais no ano seguinte, quando elegeu quatro vereadores em Belo Horizonte, Rio de Janeiro São Paulo e Porto Alegre. Se coloca o objetivo ambicioso de ser uma instituição que irá renovar a forma de fazer política para mudar o Brasil.

Algumas das críticas repetidas por Amoêdo em todos os lugares estão no programa de governo: os parlamentares brasileiros seriam os mais caros do mundo e o Congresso custaria R$ 29 milhões por dia, enquanto a Presidência da República custaria mais do que a “Coroa Britânica”. O fundo partidário, novidade depois que o financiamento empresarial de campanha foi proibido em 2015, é outro alvo preferencial. Estabelecido nestas eleições em R$ 2,6 bilhões, o fundo seria desperdício de dinheiro público, e o Novo pretende devolver ao Tesouro a parte que lhe coube, cerca de R$ 3 milhões. Porém, o ‘toma lá, dá cá’ do financiamento empresarial de campanhas não é problematizado pelo partido, nem pelo candidato.

E a saúde?

Segundo o programa do Novo, o governo deve priorizar o que é mais importante para o cidadão: educação, saúde e segurança. O texto lista fatores que fariam do Brasil um país disfuncional. “Escolas que não ensinam e hospitais que deixam os pacientes morrerem sem atendimento – e que consomem bilhões de reais sem nenhuma prioridade” estão na lista das disfuncionalidades. Nesse sentido, a “saúde acessível” aparece entre as dez bandeiras do candidato. Não por acaso tem este nome “acessível”, que remete ao que o ex-ministro Ricardo Barros deu para a proposta de planos de saúde com cobertura reduzida.

Pelo menos é o que se conclui depois da entrevista concedida por Amoêdo à EBC em agosto. Na ocasião, ele anunciou a criação de um voucher que destinaria recursos públicos não para o SUS, mas para o setor privado. Com o “vale saúde”, o cidadão poderia pagar uma consulta em uma clínica popular ou um plano popular de saúde.   

O programa de governo defende um “novo modelo” para a saúde que “trate a todos com dignidade”. Na sabatina da EBC, afirmou que o caminho para a melhoria são parcerias público-privadas. No programa, as PPPs e parcerias com o terceiro setor, como Organizações Sociais (OSs), aparecem como solução do governo federal para os hospitais brasileiros. E aqui o Novo entra em contradição, pois a esmagadora maioria dos hospitais públicos pertence aos estados e municípios. Em outra parte do programa, o candidato defende a descentralização do poder, com transferência de recursos e responsabilidades para estados e municípios, pois estão “mais próximos do cidadão”.  Se a ideia é dar mais autonomia para os entes federados, para que intervir na forma como escolhem gerir as unidades? Ao mesmo tempo, fica subentendido que a Rede Federal – composta por seis hospitais e três institutos especializados em cardiologia, ortopedia e câncer sediados no Rio de Janeiro, hoje sob administração direta – seria atingida.

Há outra mudança que fica subentendida e tem a ver com hospitais. Trata-se do futuro da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Criada no fim do governo Lula, a estatal administra hospitais universitários. Como Amoêdo defende a privatização de todas as estatais, o futuro da EBSERH e, portanto, do ensino nos cursos de saúde no país é incerto.

Mas contradições não faltam no programa de Amoêdo. Logo de saída, o texto da saúde parece concordar com a realidade de subfinanciamento do SUS: “O sistema brasileiro sofre pela combinação da tripla carga de doenças (infecto contagiosas, não transmissíveis e causas externas), com recursos limitados e uma população envelhecendo rapidamente”, diz. Mas, em seguida, o documento circunscreve os problemas do SUS à esfera da gestão, com o mantra “gasta-se muito, mas gasta-se mal”. E cita o estudo do Banco Mundial, que é um hit dessas eleições, e afirma que o governo federal poderia economizar 16% do orçamento da saúde com medidas como “cooperação” do setor público com o setor privado.

Como os pesquisadores Ligia Bahia (UFRJ) Mário Scheffer (USP) e Ialê Falleiros (Fiocruz) observaram em um estudo sobre os programas dos candidatos à Presidência para saúde, há muitas propostas genéricas. O documento do Novo não é exceção. Promete simplesmente o “aprimoramento do acesso e da gestão da saúde pública” sem dizer como isso se daria. Há também um certo desconhecimento. Ao invés de citar a Estratégia Saúde da Família (ESF), fala em expansão e priorização de “clínicas da família”, nome dado pelo ex-prefeito Eduardo Paes às unidades básicas inseridas na lógica da ESF – reduzindo a política a prédios, e a atenção básica à “prevenção” (o documento não menciona a promoção e a recuperação da saúde, por exemplo).

Amoêdo cita a criação de consórcios de municípios para dar maior escala de eficiência e fazer gestão regionalizada de recursos e prioridades. Sem explicar como. Ele não é o único candidato que tem falado nisso (no Roda Viva especial sobre saúde, a proposta foi defendida pela representante da candidata da Rede Marina Silva). Parece que ninguém se atenta para o fato de esse instrumento já existir. Chama-se COAP, sigla para Contrato Organizativo de Ação Pública, e foi criado por decreto presidencial em 2011. A certa altura, a regionalização via COAP foi uma agenda prioritária do Ministério da Saúde. Não houve muitos avanços.

Assim como outros candidatos, Amoêdo também dá centralidade à tecnologia, verdadeira panaceia destas eleições. Ele promete o prontuário único, “universal” – ou seja, aparentemente um prontuário que circule entre o setor público e o privado – que tenha o histórico do “paciente”. Aliás, o documento sempre fala em “paciente”, nunca em usuário, deixando transparecer o jargão médico sem sintonia com o vocabulário do SUS.

Por fim, o candidato do Novo promete eliminar as filas (não reduzir, não racionalizar, mas eliminar). Isso seria feito com mais serviços? Parece que não. Seria feito com “utilização de plataformas digitais para marcação de consultas”.

Os objetivos concretos do candidato em relação à saúde são aumentar a longevidade (passando de 76 anos para 80) e diminuir a mortalidade infantil para menos de 10 óbitos por mil nascidos vivos.

Pontos de contato (ou não) com a saúde

Entre as dez bandeiras de Amoêdo, está o “respeito à vida”. “O Brasil vive uma epidemia de violência, espalhada por todas as regiões, dos grandes centros urbanos às cidades médias e pequenas”. O texto destaca que em 2017, houve 63.680 assassinatos, o que representa um índice de 30,8 homicídios a cada 100 mil habitantes. Mas o problema, apesar de definido como “epidemia” não é tratado por um viés que integre a segurança com a saúde pública. Entre as pretensas soluções do candidato, está mais encarceramento, que seria alcançado com mudança na legislação e estabelecimento da prisão em segunda instância (algo que aguarda novo julgamento no Supremo Tribunal Federal) – e a entrega dos presídios para a iniciativa privada.

Outro conjunto de promessas que têm impactos na saúde tem a ver com a proteção social, que tem como metas de longo prazo a eliminação da pobreza extrema, a eliminação da pobreza entre os jovens e o aumento da renda dos 20% mais pobres.

Amoêdo elogia o Bolsa Família como “exemplo de programa bem-sucedido”, e afirma que pretende mantê-lo e melhorá-lo (não diz como), mas destaca que “é preciso criar alternativas para que cada vez mais pessoas deixem os programas assistenciais e passem a conseguir manter sua vida e sua família sem a dependência do Estado”. Como fazer isso? Em vários pontos do programa, há ênfase no empreendedorismo. Em nenhuma parte, há a promessa de criação de empregos de qualidade. O candidato anuncia que vai rever os demais programas de transferência de renda, e embora não cite quais, não é difícil adivinhar que provavelmente o Benefício de Prestação Continuada (BPC) está na lista.

O agronegócio tem destaque no programa de governo. E na chapa. O vice de João Amoêdo é Christian Lohbauer, que já foi executivo da Bayer e presidente da Associação Nacional dos Exportadores de Sucos Cítricos (CitrusBR).

“A garantia da propriedade privada e da segurança no campo para que o agronegócio tenha todas as condições jurídicas e estruturais para tirar o máximo de seu inigualável potencial” é uma das condições citadas para fazer um “novo” Brasil. Não há menção a uma política industrial.

Essa parte do programa é particularmente confusa, pois une a palavra mágica “sustentabilidade” à desregulamentação. (Caracteriza, aliás, a natureza como “ativos naturais diversificados”.) É nessa parte que entram dados sobre saneamento, retirados da think tank Trata Brasil, que afirma que metade dos brasileiros não têm coleta de esgoto e cerca de 44% do esgoto coletado é tratado. “É um problema que afeta o meio ambiente, a qualidade de vida nas cidades e a saúde das pessoas”, diz o texto. Por que cargas d’água isto está na parte do agronegócio não fica claro. A promessa é universalizar o saneamento no país. Rios, baías e praias seriam recuperadas em parceria com o setor privado.

E a promessa é de “conciliação definitiva” entre a conservação ambiental e o desenvolvimento agrícola, com aplicação do Código Florestal, avanço no cadastro ambiental rural e redução do desmatamento na Amazônia Legal (outros biomas, como o Cerrado, ficaram de fora).

Outras propostas que afetam todo o setor público federal e, portanto, geram impacto no SUS são a promessa de dar transparência completa e fazer avaliação de políticas públicas por entidades independentes; o estabelecimento de um processo seletivo para cargos de alta direção no setor público, a redução de ministérios para no máximo 12, com quadros técnicos (não se sabe quem sai e quem fica), e a indexação dos salários do setor público ao setor privado. “Profissionalização e despolitização das agências reguladoras” é um dos itens do texto.

No programa há uma proposta de “atração de talentos” em que Amoêdo promete reduzir a burocracia para revalidação do diploma obtido em instituições de ensino de fora, tanto para brasileiros quanto para estrangeiros que queiram trabalhar por aqui. O que, provavelmente, impactaria as profissões da saúde, e tem potencial para entrar em rota de colisão com as entidades médicas.

No que tange à previdência, outra das bandeiras de Amoêdo, a reforma será feita o “quanto antes” na direção da criação de um sistema único para funcionários públicos e empregados do setor privado, com o fim dos regimes especiais. A idade mínima seria de 65 anos. Sem distinção entre trabalhadores do campo e da cidade. Sem distinção entre banqueiros e boias-frias. Sem “vitimismos”, ao gosto do programa de governo do Novo.

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