Inteligência Artificial e Saúde: perigos e possibilidades

Estratégia Latino-Americana de Inteligência Artificial (ELA-IA) conversa com o Outra Saúde sobre como as novas tecnologias vão transformar a Saúde – e por que devemos questionar sua lógica de mercado sem nos deixar levar pelo ludismo

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O desenvolvimento da Inteligência Artificial (IA) e sua incorporação em setores diversos da sociedade vem atraindo cada vez mais o interesse de empresas, instituições e da opinião pública. A execução de tarefas por sistemas que copiam a inteligência humana através da coleta massiva de dados promete avanços, soluções e lucro – mas também gera preocupações: nosso trabalho será substituído por máquinas? O desemprego irá acelerar? Ao acessarmos um serviço, seremos atendidos por robôs? Afinal, quais serão os impactos sociais e políticos das novas tecnologias? 

São essas questões que a Estratégia Latino-Americana de Inteligência Artificial (ELA-IA) tentará abordar, através do trabalho conjunto de pesquisadores, intelectuais e ativistas da área tecnológica. Um dos focos da iniciativa é compreender, por exemplo, os riscos da penetração da IA no Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro – e, ao mesmo tempo, os potenciais da incorporação dessas tecnologias quando colocadas à serviço da população. 

O foco do ELA-IA não é uma coincidência: a Saúde está entre as três principais áreas de investimento e inovação quando se fala de Inteligência Artificial. As outras duas são a financeira e a bélica-militar, explica Leandro Modolo, sociólogo e pesquisador em Saúde Coletiva na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Não por acaso, vêm se multiplicando os investimentos de empresas como Google, Amazon, Meta e Apple no setor da Saúde. “Hoje, essa é uma das áreas de maior valorização do capital”, afirma o sociólogo, “um dos maiores flancos de inovação e de desenvolvimento”.  Em junho, a revista The Economist revelou que a Alphabet, holding dona da Google, adquiriu cerca de 100 empresas entre 2019 e 2021 na área de ciências vitais e saúde. 

Modolo analisa que as Big Techs, corporações que concentram a maior parte do capital produtivo, enxergam o setor da Saúde como uma área de investimento integrada às outras, e não fracionada. O objetivo da ELA-IA ao estudar a Inteligência Artificial será analisá-la dentro do “conjunto da sociedade, com todas suas complexidades”, explica, e a partir do debate ético, propor soluções para a sua aplicação. 

Para Luiz Vianna Sobrinho, médico, autor e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o impacto positivo da IA na Saúde pode ser “poderosissímo”, com capacidade de desenvolvimento métodos de diagnóstico mais precisos, avaliação de prognósticos e gestão mais eficiente de filas e prontuários. “Nossa preocupação é sobre a utilização dessa tecnologia sob a ótica de mercado. Nosso intuito é que essa tecnologia venha para beneficiar a sociedade brasileira, e não como mais um investimento para empresas privadas”, argumenta. 

“Vivemos um tempo acelerado de transformações. É um consenso na literatura crítica que vivemos um momento de crise do capitalismo, ou crise da globalização, em um processo que se iniciou no fim dos anos 1980 e que trouxe para países como Estados Unidos e China a oportunidade de empreender  em novas tecnologias”, explica Modolo. “A ELA-IA tem a proposta de tentar desacelerar essa avalanche no plano reflexivo, ético e político. Esses avanços que vivemos estão interferindo naquilo que talvez seja mais importante para nós: a vida, e sua manutenção fisiológica e mental”, conclui. 

“Hoje, a tecnologia já faz distinções entre ricos e pobres, enquanto grandes corporações internacionais lucram com os dados das pessoas”, argumenta Hernán Poblete, especialista em antropologia digital e do consumo e Diretor de Pesquisa da IPI Global Solutions em Santiago, Chile. Segundo ele, é necessário promover o desenvolvimento da Inteligência Artificial, mas sem deixar de lado suas consequências legais, éticas, sociais e econômicas. 

Os pesquisadores explicam que negar o momento que vivemos e tentar remar na contracorrente do avanço tecnológico é um erro – já cometido no passado, quando uma parte considerável do movimento sanitarista se “absteve de disputar o significado das transformações tecnológicas que vivíamos nos anos 1970, 80 e 90”. A ELA-IA defende a criação de “novas bandeiras” para o movimento sanitarista hoje, com o objetivo de colocar as novas tecnologias a serviço do SUS.

Vianna cita como exemplo o Open Health, proposto pelo ministério da Saúde do governo de Jair Bolsonaro (PL), em que dados acumulados pelo SUS de milhões de pacientes serão oferecidos a operadoras privadas. Com o cruzamento desses dados, essas empresas podem distinguir quais pacientes seriam interessantes para o atendimento, obedecendo aos interesses lucrativos e financeiros de cada instituição. “Quando o ministro lançou esse texto, ele não estava preocupado com o sistema de saúde. Tudo depende da finalidade com que uma tecnologia é lançada ou utilizada. Nesse caso, fica claro que é para uma oportunidade de negócios”, explica Vianna. 

“Isso diz respeito ao controle e à manipulação de dados das pessoas. Não importa se essas empresas são boas ou ruins. O controle sobre os dados é um direito”, argumenta Poblete. O acúmulo de dados permite o mapeamento de tendências que, em nível extremo e sem controle, pode levar, por exemplo, à discriminação genética. “Isso não é ficção científica, está acontecendo hoje. E precisamos começar a prever esse tipo de problema”, alerta Poblete. 

No caso do Open Health, uma possível consequência do programa seria a proliferação de aplicativos voltados para a atenção primária e vendidos às prefeituras. “Seria substituir um serviço baseado em relações humanas por protocolos de call center”, explica Vianna, que atingirá especialmente pessoas que vivem nas periferias urbanas e em regiões rurais. 

Propostas de regulamentação são necessárias, mas não são suficientes, argumenta Leandro Modolo. “Precisamos de proposições e iniciativas funcionais para a saúde e que sejam em prol do paciente, dos profissionais de saúde e dos cidadãos”, conclui. 

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