Por que é preciso questionar o Open Health

Entidades pelo direito à saúde e à privacidade unem-se contra um dos projetos mais obscuros do governo Bolsonaro. Documento aponta: além de ameaçar o SUS, ele dá aos planos privados poder avassalador sobre seus usuários

Imagem: Matt Kenyon
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Leia aqui a carta aberta Os perigos do Open Health

A ideia surgiu sorrateiramente, já nos primeiros dias de 2022. O ministro Marcelo Queiroga denominou-a Open Health e alardeou que mimetizava a suposta “modernidade” presente no sistema financeiro. O sentido geral ficou logo claro: trata-se de oferecer, ao conjunto dos entes que atuam em Saúde, os dados sanitários disponíveis de todos os brasileiros. Mas os contornos da ideia são muito opacos. É o que denunciam entidades da saúde coletiva e de direitos digitais, que escreveram carta aberta para denunciar os riscos e irregularidades do projeto – divulgada em primeira mão, hoje, pelo Outra Saúde.

A alegação do ministro Queiroga, para reunir, numa base de dados única, as informações médicas dos cidadãos brasileiros, é  “ampliar a concorrência no mercado de planos de saúde”, Isso permitiria às operadoras ter “acesso a perfis dos usuários e, a partir daí, oferecer propostas adequadas às necessidades de cada um”. Em agosto, um grupo de trabalho do ministério da Saúde divulgou um relatório que, em teoria, elabora melhor a proposta. Mas ainda há muitas dúvidas em torno dele.

A carta aberta Os perigos do Open Health é produto de uma parceria inusual entre o Cebes, a Abrasco, a Frente pela Vida e a Coalizão Direitos na Rede (CDR), que luta pela proteção de dados pessoais em plataformas digitais. O documento lista algumas das principais preocupações das entidades em relação ao Open Health – em especial o fato de que o SUS não está sendo levado em conta nessas formulações, a não ser como fornecedor de dados para empresas e operadoras de saúde. O paradoxo é claro. Os planos privados, que hoje atendem a cerca de 25% da população, podem ter acesso aos prontuários dos pacientes do SUS, que abrangem, de alguma maneira, 100% dos brasileiros. Esta informação preciosa lhes permitirá estabelecer estratégicas seletivas de captação de clientes.

Por isso, o Open Health impõe grandes riscos à população, da maneira como parece estar sendo desenhado. O primeiro é o de que as empresas de saúde conhecerão os perfis a fundo – inclusive os riscos de doenças que podem aparecer no futuro, previstas inclusive por inteligência artificial. Com isso, podem impor preços diferentes, criar categorias de consumidores ou até mesmo rejeitar novos clientes com histórico considerado ruim. Essa prática vai contra as determinações da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), mas as entidades que lançam o alerta já percebem aberturas para que as empresas contornem as restrições.

Outro problema é que esses dados de saúde, por si só, já representam uma mina de ouro para as empresas. “Qual a garantia de que dados e informações em saúde da população não serão utilizados exclusivamente para se obter vantagens comerciais?”, questiona a carta. Há, ainda, a questão da segurança.  “Em dezembro de 2021, por exemplo, o Conecta SUS e as plataformas do Programa Nacional de Imunização (PNI) sofreram incidentes de vazamento e alteração irregular de dados pessoais que perduraram por meses sem que fossem resolvidos e que permanecem sem um desfecho”, relembra a carta.

Segundo o próprio Queiroga, a ideia surgiu a partir do sistema de open banking, de compartilhamento de dados financeiros entre instituições. “Contudo, pautar essa iniciativa a partir de uma analogia entre o sistema de saúde e o sistema financeiro desconsidera as diferenças substanciais entre ambos”, alerta a carta. “Desse modo, impõe ao direito à saúde uma abordagem voltada à lógica de mercado, em latente contradição ao seu acesso universal e igualitário.”

O fato mais crítico parece ser o de que tudo é idealizado às escuras pelo ministério – bem à maneira do governo Bolsonaro. O projeto é pensado sem participação popular, não há debate público e nem indícios de que há preocupação com a governança dos dados de saúde da população brasileira. 

Não se trata, segundo as entidades em favor do direito à Saúde e dos direitos na rede, de querer impedir avanços tecnológicos no SUS. Mas isso só pode ser feito com participação popular e com governança pública dos dados dos brasileiros – não a portas fechadas com grandes empresas.

Leia aqui a carta aberta “Os perigos do Open Health”

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