OMS expõe fracasso global no combate à covid

Após 4,6 milhões de mortes, só 29% da população do planeta está imunizada — e há um imenso apartheid vacinal. Sinal de um sistema incapaz de enfrentar até mesmo uma pandemia para a qual há prevenção eficaz e conhecida

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MAIS LONGE DO FIM
Uma redução de 25%, um gosto de derrota na guerra contra o apartheid vacinal e a sensação de que o equilíbrio global no enfrentamento à pandemia, única forma de realmente contê-la, ainda está longe de acontecer. Esse foi o saldo do anúncio feito ontem pela Covax Facility, que revisou sua previsão para a distribuição de imunizantes em 2021.

Na avaliação do consórcio, criado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para impulsionar a distribuição equitativa de vacinas contra a covid-19  pelo mundo, neste ano serão entregues apenas 1,4 bilhão de doses, das 2 bilhões inicialmente previstas aos países participantes. A expectativa é que a meta original seja cumprida ao final do primeiro trimestre de 2022.

“Não queremos mais promessas, queremos vacinas”. A pronta reação de Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, ao anúncio teve como alvo as farmacêuticas e governos de países de alta renda. Segundo ele, circula atualmente um entendimento que precisa ser combatido: o de que em breve os países pobres poderiam começar a receber suas doses, em função da finalização da vacinação nos países ricos. Tedros atacou essa concepção afirmando que “os pobres não devem ficar com as sobras” e que a proposta da Organização nunca foi a de que nações de baixa renda iniciassem seus programas de imunização após as ricas.

Mais uma vez, ele pediu uma moratória na aplicação de reforços das vacinas até que as taxas mínimas de cobertura em todo o mundo sejam atingidas. Denunciando a desigualdade, reforçou que o objetivo da OMS é apoiar todos os países a vacinarem ao menos 10% de suas populações até o fim deste mês; 40% até o fim deste ano; e chegar aos 70% da população mundial até o meio do ano que vem. E alertou: “Quase 90%  dos países de alta renda atingiram a meta de 10%. Mais de 70% deles chegaram aos 40%. Mas nem ao menos um dos países de baixa renda chegou a esses índices. Isso não é culpa deles”. 

Até agora, a Covax distribuiu 240 milhões de doses. A expectativa é que o ritmo de acesso e distribuição dos imunizantes seja bastante acelerado no último trimestre, o que, no entanto, não será suficiente para chegar aos dois bilhões anteriormente esperados. Das 1,4 bilhão de doses previstas para 2021, 1,2 bilhão será destinado aos países pobres, o que seria suficiente para imunizar 20% de suas populações, ou 40% dos adultos dos 92 países que se encontram nessa faixa. 

Três principais razões foram enumeradas pela Covax para explicar a redução da previsão de doses a serem recebidas e distribuídas: as restrições às exportações do Instituto Serum da Índia, um dos principais fornecedores do consórcio, diante do agravamento da pandemia no país; os problemas para aumentar a escala de produção em fábricas fornecedoras, especialmente das que produzem imunizantes da Janssen e da AstraZeneca; e os atrasos e negativas para aprovação de candidatos à produção de imunizantes com os quais se esperava contar, como Novavax, SII-Novavax e Clover. 
DOIS EM UM
A farmacêutica Novavax anunciou ontem a inscrição dos primeiros voluntários em um ensaio clínico de fases 1 e 2 para testar uma vacina combinada contra gripe e covid-19. O estudo vai acontecer na Austrália e envolver 640 participantes, com resultados previstos para o primeiro semestre de 2022. Se der certo, a vacina ‘dois em um’ pode facilitar a aplicação de eventuais reforços anuais. 

O imunizante da empresa contra a covid-19 mostrou uma ótima eficácia nos ensaios de fase 3, com cerca de 90% de proteção contra infecções sintomáticas. A Novavax fez um acordo com o Instituto Serum da Índia para aumentar sua capacidade de produção; isso, junto com o fato de a vacina poder ser armazenada em geladeira comum, fez dela uma boa promessa para aumentar a oferta global. 

Mas, até agora, nenhum país aprovou seu uso, porque os dados necessários não foram entregues às agências reguladoras. A Novavax pretende entrar com um pedido na FDA (a Anvisa dos Estados Unidos) neste quarto trimestre; na União Europeia, a previsão é que isso aconteça em outubro. O diálogo para a aprovação na OMS já começou, mas não tem data para terminar. 
NÃO SÃO OPCIONAIS
A ênfase na covid-19 desde o ano passado tem feito com que exames e cirurgias eletivas sejam deixados de lado. Os números levantados pel’O Globo impressionam: de janeiro a maio de 2019, o SUS realizou 811,8 mil cirurgias eletivas. Em 2020, foram 587,2 mil e, neste ano, no mesmo período, foram 432,8 mil. 

O nome “eletivo” engana. Trata-se de operações como as de catarata, hérnia ou retirada de vesícula que são necessárias, e cujo atraso piora o estado de saúde dos pacientes. Ou exames importantes, que detectam problemas graves. A matéria traz a história de um homem de 34 anos que, bem no começo da pandemia, começou a sentir dores no pé. Não conseguiu agendar os exames de que precisava, porque não se sabia se era um caso urgente. Só agora, mais de um ano depois, ele descobriu que tem um tumor raro. Já precisou de duas cirurgias, além das sessões de quimioterapia.

No mundo todo, caíram as taxas de testes de rastreamento de câncer, como mamografias (para câncer de mama), Papanicolau e testes de PSA (para próstata). E um artigo publicado ontem no JAMA Oncology mostra como atrasos nesse tipo de diagnóstico podem levar a desfechos piores. A pesquisa comparou pessoas diagnosticadas com câncer colorretal metastático antes e depois do lockdown no país, que durou 55 dias no ano passado. As 40 pessoas diagnosticadas após o bloqueio tiveram uma carga de tumor quase sete vezes maior do que as 40 pessoas diagnosticadas antes da pandemia. A sobrevida média diminuiu de 20 meses para pouco menos de 15 meses.

E o Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária alertou para os efeitos da pandemia no controle dessas doenças: pela primeira vez desde 2002, houve diminuição na prevenção e tratamento. A luta contra a malária não foi muito impactada, mas a realização de testes para HIV caíram 22% em relação a 2019, e o número de pessoas tratadas para tuberculose caiu 19%. É sempre bom lembrar que a tuberculose é uma das doenças que mais matam no mundo – só em 2019, foram 1,4 milhão de mortes.
 
TRATAMENTO APROVADO
A Anvisa aprovou ontem o uso emergencial do sotrovimabe, um novo medicamento para pacientes com Covid-19. O remédio é um anticorpo monoclonal produzido pela GSK. Deve ser indicado para pacientes com casos leves e moderados, mas que apresentem alto risco de progressão da doença: pessoas com idade avançada, obesidade, doença cardiovascular, doença pulmonar crônica, asma, diabete, doença renal crônica, doença hepática crônica e imunossuprimidos.

O uso é restrito a hospitais, sob prescrição médica, e a incorporação no SUS ainda não foi avaliada. A venda é proibida ao comércio. 

Como observa a Folha, este já é o quinto medicamento aprovado pela Anvisa para ser usado contra a covid-19. Os outros são o antiviral remdesivir; o coquetel o Regn-CoV2; a associação dos anticorpos banlanivimabe e etesevimabe; e o regdanvimabe.
EM QUEDA
Seguem caindo as taxas de ocupação de leitos de UTI para adultos no SUS, segundo a edição extraordinária do Boletim Observatório Covid-19 Fiocruz. Mais de 90% dos estados e 85% das capitais estão fora da zona de alerta. O Rio de Janeiro que, como vínhamos destacando, experimentou alta nas internações e destoava do cenário nacional, apresentou queda: saindo de 72% para 66%, agora está na zona de alerta intermediário. O único estado na zona crítica é Roraima, com 82% de leitos ocupados. 

Os pesquisadores do Observatório explicam que os dados expressam tendência geral de diminuição de casos graves, internações e mortes por covid-19, creditado ao avanço da campanha de vacinação. Mas ponderam: o índice de testes positivos e a taxa de letalidade da doença seguem altos, indicando que a taxa de transmissão do vírus ainda é significativa e também a probabilidade de muitos casos assintomáticos ou mesmo não confirmados estarem ocorrendo.

Ontem foram registradas 250 mortes e a média semanal ficou em 461 por dia. É a primeira vez neste ano que o número fica abaixo de 500 – e é o menor em dez meses. 
RECOMENDAR, MAS SEM GARANTIAS
Há bastante expectativa quanto as efeitos terapêuticos da cannabis e dos canabinoides (os compostos químicos encontrados na planta) em pacientes com dor crônica. Mas um painel de especialistas publicou ontem no BMJ um conjunto de diretrizes não muito animadoras nesse sentido. Após revisar 32 ensaios clínicos randomizados e outras dezenas de estudos observacionais, eles concluíram que as terapias podem ser úteis para alguns desses pacientes ­– trazendo-lhes melhorias “pequenas” ou “muito pequenas” na intensidade da dor auto-relatada, funcionamento físico e qualidade do sono –, mas provavelmente não beneficiam a maioria das pessoas.

 “Portanto, cannabis medicinal provavelmente não será uma panaceia“, disse ao STAT o autor principal, Jason Busse, diretor associado do Centro Michael G. DeGroote para Pesquisa de Cannabis Medicinal da Universidade McMaster. O trabalho está inserido na iniciativa de Recomendações Rápidas do BMJ, criada para produzir diretrizes para a prática clínica com base em novas evidências. Além dos especialistas, o painel contou com três pacientes que convivem com dor crônica.

Os benefícios encontrados nas pesquisas analisadas foram modestos, assim como os riscos (que envolvem principalmente danos transitórios, como perda de concentração, vômito, sonolência e tontura). A partir desse balanço, o painel não recomenda a prescrição de forma ampliada, mas a oferta a adultos e crianças quando o tratamento-padrão não for suficiente – os especialistas também apoiam fortemente a decisão compartilhada entre pacientes e médicos.

O conselho é para que pacientes mais jovens usem preparações com CDB (canabidiol) em vez do THC, por conta do conhecimento limitado sobre os efeitos deste último no desenvolvimento neurocognitivo. Tanto com CDB como com THC, a dosagem deve começar baixa e ser aumentada aos poucos, conforme a necessidade. Além disso, por falta de dados, o uso da cannabis fumada ou inalada não está entre as recomendações.

Uma observação importante, aliás, diz respeito justamente a essa falta de dados em geral, com lacunas sobre a segurança em crianças e pessoas com transtornos mentais, por exemplo. Em parte, isso acontece porque até hoje a classificação da cannabis nos Estados Unidos é como droga de classe 1 (o que a coloca ao lado de drogas como a heroína), e isso trava a realização de pesquisas governamentais.

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