Para compreender a nova disputa pelas vacinas

Diante de uma pandemia gravíssima e um vírus muito mutante, são urgentes novos imunizantes. Mas a Big Pharma recusa-se a colaborar, por temer lucros menores. E mais: SP ignora estudos e usa Coronavac como terceira dose em idosos

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PARA A PRÓXIMA GERAÇÃO
A primeira geração de vacinas contra a covid-19 tem funcionado bem, especialmente na redução de hospitalizações e mortes, mas as pesquisas não pararam. Há necessidade de maior oferta para cobrir rapidamente a população mundial; seriam muito bem-vindos imunizantes que evitassem melhor a transmissão do vírus; e as novas variantes podem impor desafios adicionais. Essas pesquisas, porém, esbarram em um entrave: a falta de cooperação das farmacêuticas que já estão com produtos no mercado. Em carta publicada na Nature, a Coalition for Epidemic Preparedness Innovations (CEPI) alerta que isso deve ser resolvido com urgência. 

A questão é que, a essa altura, não faz mais sentido promover ensaios clínicos comparando novas potenciais vacinas com placebo. Primeiro porque, como existem imunizantes sabidamente eficazes, o ideal é que os da nova geração sejam ainda melhores do que eles (e não apenas melhores do que placebo). E segundo porque não é ético administrar uma substância inerte aos voluntários das pesquisas neste momento, quando eles podem muito bem ser protegidos. Pelo mesmo motivo, sequer é fácil conseguir voluntários nessas condições. Só que os contratos entre os fabricantes e os governos em geral restringem o uso das vacinas para o controle dos surtos – não permitindo, portanto, que sejam usados em ensaios clínicos. 

É um problema possível de se resolver, mas não muito simples. A diretora da CEPI nos Estados Unidos, Nicole Lurie, disse ao STAT que a organização tenta quebrar o impasse há meses: “Estamos dando voltas e mais voltas em círculos”. O número de doses necessárias para a realização de pesquisas é muito pequeno, não passando de algumas dezenas de milhares.

Mas, para as empresas, não é muito vantajoso participar de mais ensaios clínicos. Se uma nova vacina de outro fabricante se mostrar melhor, por exemplo, a antiga ficará desvalorizada. O mesmo vale para a aplicação de terceiras doses: não interessa a uma empresa saber oferece um reforço melhor do que a sua. E até ensaios envolvendo apenas os imunizantes de uma mesma farmacêutica podem trazer resultados que mudem o jogo: se um estudo demonstrar que doses menores oferecem o mesmo grau de proteção, isso será uma ótima notícia para o mundo – mas ruim para os lucros. 

Segundo Lurie, a chave está nos governos nacionais, que devem alterar seus contratos com os fornecedores para permitir o uso dos imunizantes nos ensaios. A reportagem diz que, apesar da dificuldade, algumas pesquisas estão sendo conduzidas. É o caso do recém-anunciado ensaio de fase 3 da empresa sul-coreana SK Bioscience, que vai comparar uma nova vacina com a da AstraZeneca (também produzida pela SK). E também de países como Reino Unido e Estados Unidos, que estão avaliando os efeitos da vacinação heteróloga (feita com doses de diferentes fabricantes).

Lembramos que, no Brasil, o Ministério da Saúde anunciou recentemente o início de um estudo sobre a terceira dose em quem tomou CoronaVac, para comparar os resultados de marcas diferentes. Nesse caso, não sabemos se havia impedimentos nos contratos e, se havia, como eles foram resolvidos.
OVOS DE OURO
A Pfizer espera faturar este ano, apenas com sua vacina contra a covid-19, US$ 33,5 bilhões. Isso é quase metade de todas as suas receitas. A matéria da Folha diz que a estratégia da empresa para lidar com a doença nos próximos anos envolve uma aposta na vacinação frequente – o que pode já ter começado a tomar corpo em países como Estados Unidos e Israel, cujos governos aprovaram a aplicação de reforço em toda a população. A reportagem lembra ainda que as doses da Pfizer são vendidas a preços menores para países de renda média (metade do valor pago pelos países ricos) e a preço de custo a nações mais pobres.

É interessante que a AstraZeneca não esteja, ao menos por enquanto, em semelhante empreitada. O presidente-executivo,  Pascal Soriot, e o vice-presidente executivo de Pesquisa e Desenvolvimento, Mene Pangalos, escreveram ao jornal The Telegraph afirmando que ainda não se sabe se há necessidade de um reforço para essa vacina quando se trata da população em geral – embora, para idosos e imunossuprimidos, eles o considerem uma “precaução sensata”: “Quando se trata de oferecer o reforço a grandes faixas da população, os dados clínicos devem conduzir a tomada de decisão. Sabemos que a vacina da AstraZeneca é altamente protetora contra as formas graves da doença. Os ensaios clínicos demonstraram uma forte resposta imunitária até 45 semanas após uma segunda dose, em particular um elevado nível de células T, que são essenciais para uma imunidade duradoura. Uma terceira dose aumentou os níveis de anticorpos seis vezes com uma resposta forte e contínua das células T, mas ainda não sabemos se essa terceira dose é clinicamente necessária”, dizem.

Vale lembrar que, ao contrário da Pfizer, a AstraZeneca foi uma das empresas que se comprometeram a não lucrar com seus imunizantes na pandemia, vendendo-os a preço de custo.
ATÉ QUANDO?
Na segunda-feira, primeiro dia de aplicação de terceiras doses de vacina contra a covid-19 em São Paulo, 99,2% das pessoas receberam CoronaVac. São todas maiores de 90 anos, público que será o alvo da campanha até o fim desta semana.

Estadão visitou três unidades básicas de saúde e observou hesitação dos idosos quanto à CoronaVac. Não porque sejam negacionistas ou sommeliers – afinal, tomaram esse mesmo imunizante quando ele foi ofertado em primeiro lugar, há mais de seis meses – mas porque a decisão do governo do estado, apoiada pela direção do Instituto Butantan, vai contra não apenas a recomendação oficial do ministério da Saúde como também a posição declarada de vários especialistas. Nesses mesmos locais de vacinação havia doses da Pfizer/BioNTech disponíveis, mas destinadas apenas a adolescentes.

Além de São Paulo, o único outro estado a incluir a CoronaVac como opção para a terceira dose foi o Rio de Janeiro. Por lá, a orientação máxima é a de que os municípios misturem vacinas: quem já tomou CoronaVac recebe Pfizer, Oxford/AstraZeneca ou Janssen, enquanto quem já tomou uma dessas três recebe agora a CoronaVac. Porém, ao menos a capital não pretende seguir o esquema: vai dar só Pfizer e AstraZeneca para todos.

Temos falado muito por aqui sobre as questões envolvendo o uso da CoronaVac em idosos. Esta ótima reportagem da Folha, publicada no sábado, resume os indícios que apontam a conveniência de escolher outro imunizante para proteger melhor essa população. E a Anvisa informou que o Butantan ainda não enviou dados de estudos sobre a terceira dose com essa vacina para sustentar sua indicação e posologia.

Em tempo: no sábado, a Anvisa interditou 25 lotes da CoronaVac, com ao todo 12 milhões de doses, por elas terem sido envasadas numa fábrica que não foi inspecionada pelo órgão, o que não é permitido. O Butantan criou uma força-tarefa para resolver as pendências – é preciso apresentar relatório de inspeção de outras autoridades ou a realização presencial da inspeção pela própria agência. Quatro milhões dessas doses chegaram a ser aplicadas. Quem as tomou deve ser monitorado por 30 dias para avaliação de efeitos adversos, de acordo com o Ministério da Saúde. Mas, segundo a Anvisa, a medida foi tomada por cautela e não há razão para pânico.
CRIANÇAS TAMBÉM
O Instituto de Saúde Pública do Chile (ISP) autorizou na segunda-feira o uso emergencial da CoronaVac para crianças a partir de seis anos de idade. A decisão foi baseada no mesmo estudo chinês (feito com crianças de três a 17 anos) que a Anvisa considerou insuficiente no Brasil.

No caso do ISP, os especialistas entenderam que a partir de seis anos o uso já se justifica – foram cinco votos favoráveis a essa faixa etária, dois favoráveis ao uso apenas em maiores de 12 anos e um voto contra qualquer ampliação no uso. Para os pequenos de três a cinco anos, eles concordaram que há necessidade de mais informações. 

Além do Chile, a Indonésia e a China já aprovaram a CoronaVac para uso pediátrico.

E Cuba aprovou seus imunizantes – Soberana 02, Soberana Plus e Abdala – para crianças crianças com mais de dois anos. Apesar de a campanha lá ter começado tarde, avança muito rápido: cerca de 40% da população está com o regime completo. O efeito disso na redução das mortes, porém, ainda não começou a aparecer
BONS VENTOS
Após o retrocesso nos EUA, uma boa notícia sobre a garantia de direitos sexuais e reprodutivos às mulheres vem do México: a Suprema Corte do país aprovou ontem a descriminalização da interrupção da gravidez, considerando inconstitucional a penalização do procedimento. A decisão foi unânime. Por lá, o aborto já é legal  até a 12ª semana de gestação nos estados de Oaxaca, Veracruz, Hidalgo e na capital federal, a Cidade do México. 

A decisão de ontem abre caminho para que os demais estados também aprovem o aborto legal. De acordo com as leis mexicanas, os estados devem decidir autonomamente sobre leis relativas aos direitos civis, e a decisão da Suprema Corte encoraja a discussão e aprovação dessas leis pelos legislativos regionais. Além disso, a descriminalização permitirá tirar da cadeia mulheres que foram presas depois de realizar abortos ilegais. 
 
SUBIU O TOM
Havia muita dúvida sobre o que, de fato, seria o 7 de setembro de Bolsonaro. Depois de meses de convocação e reiterados acenos à radicalização e à ruptura institucional, as manifestações de ontem acabaram se configurando como mais um passo na escalada golpista. Com agravantes, já que o tom das ameaças ao judiciário subiu: dizendo que não reconhecerá decisões do STF, Bolsonaro deu um ultimato ao presidente da corte, Luiz Fux.  “Ou o chefe desse Poder enquadra o seu [ministro] ou esse Poder pode sofrer aquilo que nós não queremos“, falou, diante de um público de milhares em Brasília.

O alvo específico, claro, era o ministro Alexandre de Moraes, que tem conduzido investigações e tomado decisões contrárias a bolsonaristas no Supremo. Ainda assim, há quem tenha normalizado e mesmo achado o tom do discurso em Brasília comedido. Mas à tarde, em São Paulo, Bolsonaro não apenas reiterou os ataques ao Ludiciário como tingiu de cores mais intensas a aventura golpista, ao citar Moraes nominalmente e afirmar que “só sai morto” da Presidência da República, depois de mais uma vez atacar sem provas a votação eletrônica e o sistema eleitoral brasileiro. 

Na semana em que vê sua popularidade bater recordes negativos, Bolsonaro busca esticar a corda e, ao que parece, testar suas possibilidades. E nesse ponto nem tudo saiu como prometido: a lotada Avenida Paulista que o recebeu tinha em torno de 125 mil pessoas, bastante longe dos 2 milhões esperados pelas redes bolsonaristas. Os atos aconteceram, no entanto, em todas as 27 capitais brasileiras e, segundo o G1, também em outras 152 cidades. Em muitas delas, houve pedidos por intervenção militar, embalados por todo o léxico da propaganda da extrema direita contra forças sociais progressistas e movimentos populares. 

A ver se, dessa vez, as instituições irão acordar de seu sono profundo e desenhar alguma reação. Ao fim da tarde, os ministros do STF já estavam reunidos para discutir uma resposta às declarações de Bolsonaro. Resta saber se a Corte planeja algo mais contundente do que (mais) uma nota de repúdio. De acordo com o Poder 360, ficou acertado que Luiz Fux fará um pronunciamento na abertura da sessão de hoje, quando será retomada a discussão sobre o “marco temporal” que pretende usurpar direitos indígenas. 

Também no legislativo se desenham novas reações. Partidos do centrão como PSDB, MDB, Podemos e PSD anunciaram que consultarão suas bancadas e discutirão a adesão aos pedidos de impeachment contra Bolsonaro. Até hoje, os pedidos foram sustentados e articulados pelas bancadas dos partidos de esquerda na Câmara, com destaque para o PT, o PSOL e o PCdoB. Também ontem, Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, anunciou o cancelamento das sessões de hoje e amanhã, diante da insegurança gerada pelas ameaças golpistas. 

Do outro lado, há resistência. As manifestações da 27ª edição do tradicional Grito dos Excluídos se uniram aos protestos anti-Bolsonaro e ocorreram em cerca de 200 cidades em todo o país. Segundo os organizadores, foram mais de 300 mil pessoas reivindicando melhorias nas condições de vida (redução no preço dos alimentos, do gás e da eletricidade), mais empregos, aceleração da vacinação para enfrentar a pandemia e o impeachment de Bolsonaro. À noite, panelaços contra o presidente foram registrados em algumas cidades. 

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