Fausto e miséria no reino da saúde-mercadoria

Nos EUA, país-símbolo da medicina privatizada, executivos ganham como nunca durante a pandemia. Seus rendimentos já são sete vezes maiores que os investimentos em pesquisa e gerenciamento de doenças zoonóticas

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Ao menos 15 milhões de pessoas morreram de covid, desde o início da pandemia. Centenas de milhões perderam o emprego, o teto, o direito a uma alimentação adequada. Mas uma série especial de matérias da revista médica norta-americana Stat News revela o outro lado desta história. Em meio à devastação, a saúde-mercadoria faz fortunas bilionárias. Os executivos-chefes (CEOs) de aproximadamente 300 empresas de saúde faturaram, juntos 4,5 bilhões de dólares, só em 2021, Os dados foram obtidos a partir de registros financeiros das corporações. Boa parte desta montanha de dinheiro está associada a lucros que só foram possíveis bloqueando o conhecimento necessário para produzir vacinas e medicamentos para todos.

Os números chocam pelo que revelam sobre o comportamento ético dos dirigentes da medicina privada; mas também, porque expõem sua ineficiência. Um único executivo — Leonard Schlefer, da Regenero Pharmaceuticals, recebeu sozinho US$ 453 milhões em um ano, Mas o que mais chama a atenção é a desproporção entre o muito que ganham os tecnocratas e o muito pouco que se investe para garantir o direito da população à Saúde. Os 4,5 bilhões de dólares auferidos pelos executivos-chefes de 300 corporações equivalem a sete vezes o valor que os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA tiveram para investir em pesquisa, supervisão e gerenciamento de doenças infecciosas emergentes e zoonóticas no ano de 2021 – quando o país se aproximou de 1 milhão de mortes por covid-19.

O levantamento da Stat também divulgou que a pandemia foi um período propício para a proliferação de empresas de saúde altamente tecnologizadas nos EUA. Além disso, os profissionais que trabalham em empresas de biotecnologia, ciências da vida e empresas farmacêuticas recebem os maiores salários quando comparados a outros trabalhadores da saúde. São sempre mais de 100 mil dólares anuais e frequentemente mais do que 250 mil. Esses profissionais têm qualificação avançada e estão mergulhados no conhecimento da ciência e do desenvolvimento de medicamentos. Mas os norte-americanos que trabalham em prestadores de serviços de saúde – especialmente aqueles que cuidam de pacientes vulneráveis ​​em casas de repouso, hospitais psiquiátricos e atendimento domiciliar — recebem os salários mais baixos do setor. A maioria desses trabalhadores são mulheres, uma porcentagem considerável são negros e hispânicos, e a maioria só trabalha meio período. Os melhores salários da categoria chegam a 40 mil dólares anuais. Os médicos fora das hightechs são os que recebem os melhores salários, mas a maioria das empresas de saúde pagam salários baixos à maioria, por vezes composta por trabalhadores estrangeiros. 

“Se você estivesse olhando para o sistema de saúde como é hoje e pensando sobre onde gostaria de investir seus recursos, acho que surgiria o questionamento de investi-los nesses líderes de saúde ou em enfermeiras, auxiliares de saúde domiciliar e pessoas que estão na linha de frente prestando cuidados”, disse Katie Martin, presidente do Health Care Cost Institute e ex-funcionária federal dos Estados Unidos para a saúde. Isto é, com os lucros astronômicos das hightechs de saúde, dificilmente os investidores pensam em se concentrar na atenção primária.

Além da atenção primária, os EUA enfrentam uma crise nos seus maiores hospitais. O salário médio anual de 2021 dos funcionários das maiores cadeias hospitalares de cuidados intensivos do país estavam próximos uns dos outros – entre 45 mil e 61 mil dólares anuais. Os institutos enfrentaram greves e esgotamento dos trabalhadores, enquanto contratavam empresas terceirizadas de enfermagem para cobrir a demanda. 

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