A necessária liderança do SUS na revolução digital

Em livro provocador, que será relançado hoje, pesquisador sustenta: defensores da Reforma Sanitária não podem voltar as costas para a medicina de dados — sob o risco de entregar ao setor privado uma ferramenta de enorme potência

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Luiz Vianna Sobrinho em entrevista a Gabriela Leite

Em que bases será construído o SUS de que a sociedade brasileira precisa? Luiz Vianna Sobrinho, médico e doutor em bioética, tem uma hipótese contundente no que diz respeito à ciência médica e à medicina de dados – que, de alguma maneira, pensa, são vistas de esguelha pela Reforma Sanitária desde os anos 1980. Ele argumenta que é a hora de o SUS entrar com força na disputa pelo desenvolvimento das tecnologias médicas e hospitalares, e utilizá-las de acordo com seus princípios coletivos de saúde. Do contrário, perderá espaço para a abordagem mercadológica que tanto tenta combater.

A obra em que Vianna expõe essas ideias essenciais será relançada hoje, a partir das 18h, na livraria da Travessa de Niterói (RJ). O ocaso da clínica veio ao mundo em 2021, e a prova de sua relevância é que o debate torna-se cada vez mais atual. A última investida daqueles que enriquecem com a lógica da saúde como mercadoria foi feita pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. Alinhado com o mercado, ele sustenta a criação do chamado open health, sistema que compartilha dados de saúde dos brasileiros com empresas de planos de saúde, hospitais, farmácias, organizações sociais e laboratórios. A proposta é considerada inconstitucional e ilegal por juristas, mas festejada por capitalistas da saúde.

Em entrevista ao Outra Saúde, Vianna aborda o tema do open health e como ele se encaixa no contexto histórico em que a medicina de dados vem ganhando cada vez mais força – tema central de seu livro. Faz críticas contundentes ao ministro Queiroga e à gestão da pandemia no Brasil. Mas vê um futuro possível em que a tecnologia seja incorporada pelo SUS e esteja disponível de forma justa a todos os brasileiros: “É esse modelo de política de Estado que tem de liderar a revolução digital da saúde. Não será fácil, mas é o futuro bem próximo que está nas mãos do SUS”.

Seu livro O ocaso da clínica, que está sendo relançado hoje, causou impacto. Mas nos últimos meses surgiram novos sinais de que o uso da medicina de dados está se alastrando. Como você vê o programa “open health”, que o ministério da Saúde pretende promover?

Bem, primeiramente, eu penso que esses sinais estão presentes já desde a década passada; mesmo antes do desenvolvimento de algoritmos mais complexos baseados em machine-learn, no próprio modelo em que as metas e práticas de gestão passaram a ter um peso mais decisivo nas decisões clínicas. Reduzir toda a possibilidade de conhecimento da questão médica à objetividade de dados possibilitou que se aplicasse a extração e gestão desses dados em proporções populacionais, como nunca visto antes… Então, o que estamos vendo agora, é a aplicação plena por corporações e mesmo por sistemas de gestão estatal da saúde, como o chinês.

No Brasil, surgiu a ideia do “Open Health” nos últimos meses. Ela vem sendo apresentada como proposta de política sanitária, declaradamente inspirada em modelo praticado pelo mundo financeiro; notadamente pelos grandes bancos, que nadaram em lucros vultuosos nos últimos anos, destacando-se em plena crise. Mas, no cuidadoso e bem trabalhado artigo distribuído para a apresentação pública desta proposta na grande mídia, o aprimoramento e melhoria da dinâmica de concorrência no mercado de planos de saúde demonstra, com clareza, que a tônica está na oportunidade de crescimento para melhores negócios. E está totalmente inserida nessa dinâmica da medicina de dados.

O próprio ministro da Saúde diz que criou o termo “open health” e analogia a “open banking”. O que este paralelo sugere sobre a tendência hoje hegemônica na medicina de dados?

Não podemos deixar de destacar, que a mensagem publicada em jornais de distribuição em todo o país foi a de um Ministro dos Negócios, não de um Ministro da Saúde. (FSP/6/3/22). Nos provoca desde a apresentação do problema em seu contexto, quando relata no primeiro parágrafo que “a pandemia de Covid-19 deixou clara a necessidade de fortalecer a capacidade de resposta dos sistemas de saúde”. Pois, tudo o que vimos nas suas atitudes, à frente da pasta durante a pandemia, foi a total ausência de organização de um sistema, onde governos estaduais e municipais se sobressaíram no comando das melhores condutas sanitárias; e coube ao seu comando federal uma defesa insana, do ponto de vista das evidências científicas utilizadas em todo o mundo, de medidas que seguiam apenas a orientação de sua política. Surpreende, então, que ainda no mesmo parágrafo ele clame pela “transparência na adoção de políticas públicas”. O que assistimos foi um escárnio. Uma situação da qual nos envergonhamos frente às entidades sanitárias e acadêmicas do exterior.

Assim, o que temos: um projeto incostitucional e ilegal, como já vem sinalizado, pois viola as garantias fundamentais da proteção de dados da intimidade e vida privada dos cidadãos, já que a Lei Geral de Proteção de Dados é clara ao proibir expressamente este uso pelas operadoras de planos de saúde “para a prática de seleção de riscos na contratação de qualquer modalidade, assim como na contratação e exclusão de beneciários” (Art. 11,parágrafo 5º). No interesse de que não haja “discriminação: impossibilidade de realização do tratamento para fins discriminatórios ilícitos ou abusivos” (Art. 6º, inciso IX).

Além disso, não há preocupação com os mais de 75% da população que estão fora do segmento de saúde suplementar. Não há crítica à renúncia fiscal que desidrata o erário e subsidia a assistência mais onerosa ao quarto da população que conta com a saúde suplementar. Não há, definitivamente, uma proposta que inspire a confiança de que estejamos caminhando para a organização e fortalecimento do que o início do artigo se propõe, um sistema – o SUS. E o que esperamos de um ministro da saúde, em seu papel constitucional, é que defenda, lute e fortaleça esse Sistema Único, que mostrou sua potência justamente na crise sanitária mais difícil das últimas décadas.

Por outro lado, você tem chamado, insistentemente, a atenção dos movimentos pela Reforma Sanitária para que se envolvam ativamente na disputa pelos sentidos da medicina de dados. Qual a importância de fazê-lo, hoje?

Nós começamos a falar isso na ENSP (Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fiocruz) por volta de 2018, quando criamos o Observatório da Medicina, enquanto fui desenvolvendo minha tese, que está nesse livro. Em 2019, nosso grupo realizou um seminário onde apresentamos esse conceito de ‘medicina de dados‘, reunindo algumas características que a literatura mundial vem discutindo nas novas formas e formatos do capitalismo na atualidade – noções como Capitalismo de Vigilância, Capitalismo de Plataforma etc. O que nós já chamávamos a atenção naquele debate era a necessidade do pensamento sanitário brasileiro não deixar passar esse momento, essa grande transformação…. que é inexorável.

Aos poucos, transparece uma possível estratégia dos planos de Saúde para se beneficiar da medicina de dados. Implica reduzir custos, por meio da telemedicina e do uso de algoritmos para manejar a relação custo-benefício em seu favor; e contar com o atraso do SUS no uso destas ferramentas. Como reagir a esta estratégia?

Na disputa com os interesses de mercado das corporações tem de surgir uma política de Estado que fomente o desenvolvimento e domínio dessa nova tecnologia, mas que a aplique com os propósitos que norteiam a proposta de coletividade do SUS. Temos de escapar tanto dos interesses de exploração mercantil da saúde, quanto de um Estado que utilize esses dados para vigilância coercitiva dos cidadãos ou de grupos específicos, que diminua as iniquidades do sistema. E é esse modelo de política de Estado que tem de liderar a revolução digital da saúde. Não será fácil, mas é o futuro bem próximo que está nas mãos do SUS.

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