Como o Brasil pode ter Remédio a Preço Justo

Coordenadora de Saúde do IDEC revela os obstáculos a vencer: regulação fictícia de preços, que favorece corporações farmacêuticas. E, em especial, o pavoroso declínio da indústria brasileira de medicamentos

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Ana Carolina Navarrete em entrevista a Gabriel Brito

Será possível, num Brasil devastado pelos desmonte dos serviços públicos e pelo empobrecimento generalizado da população, sonhar com Remédio a preço justo? Ana Carolina Navarrete, coordenadora de Saúde do IDEC – Instituto Brasileiro em Defesa do Consumidor – pensa que sim. E este é, aliás, o objetivo da campanha do a organização, participante ativa da Frente pela Vida, lançou em 2020, e que está se tornando cada vez mais atual e necessária. Ao abordar um tema de enorme repercussão na vida das maiorias, o movimento pode engrossar as águas da luta para que o pós-bolsonarismo seja também um período de reconstrução do país em novas bases.

Para alcançar Remédio a preço justo, o IDEC busca dois objetivos principais. O primeiro pode ser alcançado com certa rapidez, pois depende apenas de uma mudança na lei que regula o preço dos medicamentos. Na entrevista que concedeu a Outra Saúde, e está publicada a seguir, Carolina explica: a campanha é uma resposta a um ato de demagogia primitiva do governo. Em março de 2020, o Palácio do Planalto baixou a Medida Provisória 933/20, que suspendia o reajuste anual de preços dos remédios por 60 dias em razão da pandemia. Foi, desde o início, conversa para boi dormir.

Isso porque a regulamentação do preço dos medicamentos no Brasil é fictícia, como explica a coordenadora do IDEC. Ela “controla” um preço máximo, que está muito acima do praticado. Quanto este valor de referência é “congelado”, o reflexo no que a população paga na farmácia é mínimo. “Por exemplo, um medicamento cujo preço é 100, com reajuste anual de 10% passa a 110. Mas na farmácia o preço é 30, pois esse é o valor real de mercado. Isso dá uma margem muito grande para a empresa reajustar o preço conforme as possibilidades do momento. Ela pode aumentar muito mais do que 10%”, explica Carolina.

Para enfrentar este primeiro problema, há uma saída legal. Na mesma época da MP, o senador Fabio Contarato apresentou, com apoio dos movimentos pela Saúde Pública, o PL 5591/20, até hoje não votado. O projeto estabelece novas bases para a regulação do preço de remédios.

“A indústria nunca compartilha informações de custo com o regulador. O PL visa tornar obrigatório informar o quanto se gastou com pesquisa e desenvolvimento. Nesse sentido, propõe parcerias entre a CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos) e órgãos como o PROCON, que já fazem essa fiscalização na ponta. Tais parcerias podem ajudar a constituir o preço teto de tabela. O PL também propõe mudar a base de comparação a partir do qual os preços são fixados. Ela hoje referencia-se a uma cesta de nove países, boa parte deles na Europa e com realidade muito distinta à brasileira.

Mas se a mudança na lei é eficaz para evitar as manipulações da indústria, ela nada pode contra um problema de fundo: a devastação da indústria brasileira de medicamentos, que hoje depende, em 90% do Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) importados – especialmente da China e da Índia. Nos últimos dois anos, quando estes países restringiram suas exportações em função da pandemia, o país ficou a ver navios. É esta a causa de problemas gravíssimos, como a falta de fármacos essenciais nas farmácias e nos próprios hospitais.

Carolina, que é advogada, sabe que não basta tentar regular um poderoso setor econômico, que sequer tem obrigação de fornecer seus produtos ao Brasil. Por isso conecta a pauta do preço justo com a retomada do Complexo Econômico Industrial da Saúde. Ela explica: “A solução passa por medidas de médio e longo prazo. A gente já vem há muitos anos discutindo o tema, no âmbito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. O acesso a medicamentos, seja pela rede pública ou pela privada, só acontece se as políticas de produção estiverem integradas às políticas regulatórias e de distribuição de assistência farmacêutica”.

Trata-se de reativar plantas industriais e a expertise nacional para produzir os IFAs. Reverter o desmonte de Temer e Bolsonaro, simbolizado na quase extinção do programa Farmácia Popular, será condição indispensável para garantir o acesso a fármacos de consumo intenso pela população.

Um caso elucidativo é o zolgensma, que trata atrofia muscular espinhal (AME) e ficou famoso por matérias na mídia. A coordenadora do IDEC conta: “Houve dificuldade de estabelecer preço razoável. O medicamento já entrou no Brasil com preço-teto de R$ 2,8 milhões de reais, o mais caro da história do país. Mas a empresa recorreu, com base na referência internacional, uma vez que entrara nos EUA com preço de R$ 12 milhões, e ainda alegou que pelo preço-teto estabelecido não tinha interesse em entrar no mercado brasileiro. A CMED negociou e chegou a um meio termo de R$ 6 milhões”.

Do jeito que está, conforme ela explica na entrevista que vem a seguir, a escassez e o descontrole dos preços prosseguirão. E as farmácias seguirão a se aproveitar da enorme margem de manobra permitida pela tabela atual e apresentar descontos fictícios aos seus clientes, felizes em fornecer, em troca, o CPF às grandes redes varejistas.

Fique com a entrevista completa.

No dia 31 de março, de 2020 o presidente da República, por meio da Medida Provisória 933/2020, determinou a suspensão do reajuste anual dos preços dos medicamentos por 60 dias, em decorrência da pandemia do novo coronavírus. O objetivo, segundo alegado, foi o de segurar os preços dos medicamentos durante o choque causado pela pandemia. Mas vocês do Idec sempre alegaram o caráter artificial da medida. Qual efeito real essa MP teve ao longo de sua vigência?

A MP é artificial por ter pouco efeito prático em aumentar o subsídio ao consumidor, porque o reajuste anual dos medicamentos não acontece sobre o preço efetivo, isto é, o preço que o consumidor encontra na farmácia. Ele acontece sobre o chamado preço-teto.

O nosso sistema de regulação de preços já tem 20 anos e está ultrapassado. Foi criado no final dos anos 90 e precisa se modernizar. Ele estabelece um preço-teto a cada medicamento novo que entra no mercado brasileiro, regulado por um órgão ligado à secretaria executiva da Anvisa, a CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos). Ela fixa esse preço teto e todo ano há um reajuste (10,89% em 2022). E não se permite que a CMED ajuste o preço-teto pra baixo.

Outro ponto é que os preços se referenciam numa cesta de nove países e considera seus fatores de logística e produção, geralmente com proteção de patente ou em monopólio. A tendência geral é que com o passar do tempo e aumento da oferta o preço se reduza. Na prática, o medicamento até se reduz ao consumidor, mas o limite a que ele pode aumentar não se reduz com o tempo. Junta-se o reajuste anual e há uma distorção. Gera-se uma diferença grande entre o que a empresa pratica na farmácia e o padrão técnico estabelecido pela CMED, o que permite às empresas aumentarem os preços acima da taxa de reajuste anual.

Por exemplo, um medicamento cujo preço é 100, com reajuste anual de 10% passa a 110. Mas na farmácia o preço é 30, pois esse é o valor real de mercado. Isso dá uma margem muito grande para a empresa reajustar o preço conforme as possibilidades do momento. Ela pode aumentar muito mais do que 10%.

Em suma, o critério de aumento com reajuste sobre o teto não tem eficácia nenhuma, incide muito pouco no preço que o consumidor encontra, exatamente porque os reajustes acontecem sobre o preço-teto e não sobre o preço real que o consumidor sente. O preço-teto estipulado é irreal e permite que as empresas possam aumentar bem mais do que o reajuste legal.

O PL 5591/20, apresentado na ocasião da MP pelo senador Fabio Contarato, poderia reverter essa dinâmica aqui analisada?

O PL pode conter o aumento de preço e também aumentar a transparência no mercado. O fato de termos tal regulação gera uma opacidade de preço muito grande, o que fica muito claro quando a gente vê a questão da venda de um remédio na farmácia casada com o fornecimento do CPF do cliente. Você se depara com um preço-teto que é de R$ 100 e a farmácia dá uma nota fiscal dizendo que, pelo fato de você ter se cadastrado no aplicativo dela, ficou por R$ 30. Mas na verdade o preço real do medicamento sempre foi R$ 30.

Precisamos deixar claro o que é desconto de verdade e o que é um desconto ilusório, baseado numa norma técnica sem aplicação na realidade. E o PL 5591/20 tem o mérito de estabelecer mecanismos que ao mesmo tempo modernizam a regulação e fortalecem a CMED. Uma das propostas é dar competência de se reajustar o preço-teto para baixo com o passar do tempo. Se um remédio chega na farmácia já no preço-teto, a CMED poderá recalculá-lo e com o tempo ficaria mais barato. Trata-se de acompanhar a realidade, ver o preço real na ponta.

Uma outra coisa importante é imprimir mais transparência na fixação do preço-teto. Hoje consideramos nove países pra estabelecê-lo: Estados Unidos, França, Portugal, Nova Zelândia, Austrália, Canadá, Espanha, Grécia e Itália. Uma boa parte deles na Europa e todos desenvolvidos, com um contexto econômico muito diferente do brasileiro. O PL também propõe retirar a comparação e considerar países com uma realidade socioeconômica mais parecida com a brasileira.

Outra vantagem: a transparência. Hoje, quando uma empresa quer colocar o medicamento novo no mercado brasileiro, tem de informar qual preço gostaria de cobrar e seus gastos com logística. O PL vai avançar também em pedir informações sobre gastos com pesquisa e desenvolvimento. Por quê? Porque em muitos medicamentos novos a indústria farmacêutica justifica o seu preço elevado dizendo que por muitos anos teve de fazer grandes investimentos para desenvolvê-lo e agora está recuperando o capital. Mas quando pedimos dados que mostrem o curso de todo o processo nunca são fornecidos. A indústria nunca compartilha essas informações com o regulador e o PL visa tornar obrigatório informar o quanto se gastou com pesquisa e desenvolvimento.

Como avalia a tabela da CMED? O que ela reflete da atual forma de regulação do preço dos remédios no Brasil?

Está estabelecida dentro dos parâmetros que eu coloquei e considera países fora da realidade brasileira. A tabela é um instrumento muito importante, é o que temos de melhor em termos de proteção contra preços abusivos. Mas temos a necessidade de modernizar a regulação, pois os preços da CMED muitas vezes estão fora da realidade factual que o consumidor encontra na farmácia ou mesmo o gestor público encontra nos pregões.

Isso faz com que outras tabelas ganhem mais espaço. O próprio mercado farmacêutico tem suas tabelas de precificação, que são mais baixas que o preço da CMED. O órgão precisa passar a fazer controle de preço na ponta, saber o preço real na farmácia. Hoje a CMED não tem condição de fazer isso, porque não tem governança suficiente.

Nesse sentido, o PL propõe parcerias entre o CMED e órgãos como o PROCON, que já fazem essa fiscalização na ponta. Tais parcerias também poderiam ajudar a constituir o preço teto de tabela.

Como isso afetou o declínio do programa Farmácia Popular, uma vez que em valores nominais o governo dobrou seu gasto com remédios entre 2009 e 2019?

O primeiro fator é a regulação defasada, que permite elevação de preços bem acima do reajuste anual, o que explica aumento de custos ao governo e do orçamento do Ministério da Saúde com medicamentos. O Ministério da Saúde tem um grande poder de compra e pode usar esse poder para conseguir melhores condições e fazer a distribuição. Mas esbarra-se em alguns limites, como o próprio interesse da empresa em produzir ou fornecer aquele medicamento, e isso coloca o governo numa situação muito delicada. É um equilíbrio muito difícil de conseguir.

Um caso elucidativo é o zolgensma, que trata atrofia muscular espinhal (AME). Houve dificuldade de estabelecer preço razoável. Entrou no Brasil com preço-teto de R$ 2,8 milhões de reais, o mais caro da história do país. Mas a empresa recorreu, com base na referência internacional, uma vez que entrara nos EUA a R$ 12 milhões. Também alegou que pelo preço estabelecido não tinha interesse em entrar no mercado brasileiro. A CMED negociou e chegou num meio termo de R$ 6 milhões.

É assim. Se não temos uma política regulatória aliada a uma política produtiva de autossuficiência ficamos refém do interesse da indústria. Isso também explica o aumento dos gastos com medicamentos no período referido.

Quanto ao Farmácia Popular, está numa chave um pouco diferente, mais ligada à regulação de preço, porque é um programa extremamente bem sucedido, com subsídio de medicamentos a doenças de alta prevalência na população brasileira, desde hipertensão, diabetes, até anticoncepcionais. E teve o mérito de conseguir se capilarizar pelo país em parceria com farmácias privadas. Sofreu cortes muito significativos no governo Temer e agora sofre novos cortes que podem inviabilizá-lo.

De 2016 para cá a indústria da saúde no país decaiu vertiginosamente, produzindo insumos e remédios em quantidades muito menores num contexto de crise econômica que corroeu bastante a renda das famílias. Acredita que os objetivos do Idec neste tema tenham relação direta com uma retomada da indústria brasileira do setor?

Acho que tem mais a ver com as situações de desabastecimento que vivemos, não no sentido de que falta tudo, mas falta muita coisa em diferentes regiões do país. E faltam medicamentos muito básicos como por exemplo soro, antibiótico, dipirona injetável. Isso nos coloca numa situação de alerta.

Muitos especialistas falam da desvalorização cambial e essencialmente falta de matéria-prima, o Insumo Farmacêutico Ativo, que permite a produção. A indústria brasileira é extremamente embaladora, com exceção de alguns laboratórios públicos. Precisamos importar IFA de China e Índia. Com a pandemia veio toda uma dificuldade de atender a demanda mundial, impactada na produção e na importação. Ficou evidente a fragilidade de nossa capacidade produtiva. E a solução pra reduzir a dependência externa não é simples, não é de curto prazo. É no mínimo de médio prazo.

A vantagem brasileira é temos estrutura, temos plantas fabris públicas, com expertise pra produção local. Mas precisa de uma coordenação. Nossa visão é de que o desabastecimento é consequência da enorme dependência que o Brasil tem de importação de insumo e da variação cambial decorrente disso. A solução passa por medidas de médio e longo prazo que envolvem melhorar a nossa capacidade produtiva e a conversão de nossas plantas para a produção dos IFAs. Isso se resolve com liderança política.

A covid-19 tornou muito nítida uma situação que antes estava mascarada: a dependência brasileira de importações de medicamentos. Durante o tempo de normalidade sanitária isso não era tão relevante. E agora se tornou extremamente relevante. Por quê? Porque numa situação de escassez mundial não temos uma posição internacional prioritária, motivo pelo qual devemos pensar em alternativas de se produzir no país. Não é uma proposta nova, a gente já vem há muitos anos discutindo no âmbito do Complexo Econômico Industrial da Saúde. A questão é que a gente nunca tinha vivido uma crise tão aguda e tão generalizada. Já tivemos questões de desabastecimento de penicilina, por exemplo, mas pontuais. O que estamos vivendo agora é muito diferente.

Faltam medicamentos diversos e em várias regiões do país. A gente só consegue sair dessa situação se olhar para políticas de produção e pensar na integração. Devemos pensar que o acesso a medicamentos, seja pela rede pública ou pela privada, só acontece se as políticas de produção estiverem integradas às políticas regulatórias e de distribuição de assistência farmacêutica. Enquanto não considerarmos essas políticas de maneira integrada não teremos solução.

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