Em meio à crise climática, falta água para milhões

Após 46 anos, ONU volta a realizar Conferência da Água para debater rumos do abastecimento e saneamento básico. Houve melhora, em 20 anos, mas meio bilhão de pessoas continuam vulneráveis – e mudanças no clima agravam o problema

Escola rural em Ruanda, na África Central. Foto: Water for Life
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A Conferência da Água da Organização das Nações Unidas (ONU) se encerrou na última sexta-feira (24/3), em Nova York. A última cúpula para discutir o assunto ocorreu em 1977. Desde então o acesso ao tratamento da água melhorou em todos os países – com exceção daqueles localizados na África Subsaariana, onde os números referentes ao acesso à água pioraram nos últimos 20 anos. 

A conferência definiu 639 compromissos assinados por chefes de estado e governo, que vão de ações para escolhas alimentares mais inteligentes até reavaliar a água como uma forma de impulsionar a economia. A construção de banheiros públicos e a restauração de 300 mil quilômetros de rios degradados também foram pautados. Segundo Marcos Montenegro, engenheiro e Coordenador de Comunicação do Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), a Conferência foi positiva mesmo que não tenha sido organizada para “resultar em compromissos firmes dos países membros”.

Entre 2000 e 2020, o acesso à água potável aumentou no mundo. No começo do milênio, cerca de 5 bilhões de pessoas tinham acesso básico ou seguro à água para beber (a população mundial era de pouco mais de 6 bi); em 2020, esse número aumentou para cerca de 7 bilhões (em uma população de quase 8 bi). Enquanto isso, o número de pessoas obrigadas a beber direto de um rio ou fonte a céu aberto, ou de canos sem qualidade verificada, caiu de 1 bilhão para cerca de 800 milhões. 

Quanto ao saneamento básico, em 2000 cerca de 3,5 bilhões de pessoas tinham acesso a saneamento básico ou seguro, enquanto mais de 2,5 bilhões defecavam ao ar livre, em latrinas sem tratamento ou compartilhadas. Em 2020, o acesso subiu para quase 6 bilhões de pessoas, enquanto menos de 2 bilhões continuam sem o serviço, segundo dados das Nações Unidas e Unicef compilados pela revista Nature.

Ou seja, globalmente, cerca de meio bilhão de pessoas ainda têm saneamento básico precário e outras milhões dependem de água contaminada. Em 1977, quando a primeira conferência ocorreu em Mar del Plata, Argentina, os líderes de 118 países temiam uma crise global de água no final do século 20 caso não fosse alcançado saneamento universal até a década de 1990. Depois da ocasião, países subdesenvolvidos passaram a pedir apoio financeiro para garantir acesso à água e ao tratamento de esgoto, sem muito sucesso – segundo a Nature, passaram a ser discutidos projetos envolvendo água e não financiamentos diretos aos sistemas dos países em questão. “A cooperação internacional dirigida aos países pobres é ainda pouco efetiva e os déficits em água e esgoto sanitário são, em geral, apenas parte de problemas socioeconômicos  mais complexos”, explica Montenegro.

No Brasil, a meta é garantir 99% de acesso à água e 90% de saneamento até 2030, mas quase 35 milhões de brasileiros ainda vivem sem água tratada e cerca de 100 milhões não têm acesso à coleta de esgoto. Segundo Montenegro, é impossível desenvencilhar a falta desses serviços com a ausência de renda justa, “trabalho decente, alimento, condições de moradia adequada e acesso à saúde e educação”. Dados do Cecad 2.0 de fevereiro de 2023 mostram que mais de 50 milhões de brasileiros cadastrados no CadÚnico e integrantes de famílias em situação de extrema probreza. O déficit se concentra no Norte e Nordeste e nas periferias das grandes cidades de todo país, onde o abastecimento de água também é um problema. “A solução exige políticas integradas com a reforma urbana e a reforma agrária, incluindo programas de melhoria habitacional, de saneamento integrado de favelas e saneamento rural”, argumenta Montenegro, que reforça que a abertura à iniciativa privada e a consequente consideração do saneamento como negócio não é a resposta adequada ao déficit. O especialista aponta programas governamentais, como o Um Milhão de Cisternas, coordenado pela Articulação do Semi Árido (ASA), e o Programa de Sistema Integrado de Saneamento Rural, no Ceará, como referências. “O Governo Federal tem papel importante na aplicação dos seus recursos e no direcionamento destes para priorizar o atendimento das populações mais vulneráveis”, afirma.

Em 2015, a comunidade internacional estabeleceu uma meta para 2030: as nações deveriam oferecer água limpa e saneamento a suas populações. O objetivo, contudo, ainda requer esforços, visto que um terço das pessoas no mundo não tem instalações básicas para lavar as mãos em suas casas, de acordo com os dados da OMS. Seguindo o ritmo atual, 1,6 bilhão de pessoas ainda não terão água potável em casa até 2030. Em 2021, uma em cada 10 unidades de saúde em todo o mundo não tinha serviços de saneamento e cerca de 857 milhões de pessoas não tinham serviço de água em suas unidades de saúde. 

Rachael McDonnell, diretora-geral para a pesquisa e desenvolvimento no International Water Management Institute, em Roma, afirmou à Nature que foi um erro a pauta da água não estar tão presente na última COP-27. “Não podemos esperar mais 46 anos porque o que está acontecendo é terrível demais no momento e vai piorar”, afirmou. A situação é mais grave na África Subsaariana, única região em que não houve melhora ao acesso nos últimos 20 anos – pelo contrário, houve uma pequena piora. Cerca de 70% da população nesta área do continente africano continua sem serviços de água potável. Em relatório, a Unicef aponta que, na Somália, atualmente envolvida em um conflito, até 43 mil pessoas podem ter morrido devido à seca.

A rapidez com que os eventos extremos derivados das mudanças climáticas estão se proliferando representa uma piora na situação. Hoje, cientistas já mapeiam que grande parte do mundo está vivendo grandes secas, que agravam ainda mais a falta de água potável em alguns países: cerca de metade da população mundial já corre o risco de escassez severa de água em pelo menos metade do ano, segundo o 6º relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. Se as temperaturas globais atingirem 1,5°C acima das temperaturas pré-industriais, espera-se que a seca agrícola extrema seja duas vezes mais provável em diversas partes do mundo. 

Por isso, o fomento à cooperação entre nações foi uma pauta importante da conferência. Para grande parte dos países do Oriente Médio e do Norte da África, por exemplo, cerca de dois terços dos recursos hídricos estão fora de suas fronteiras nacionais. “Uma abordagem transfronteiriça de bacia é muito importante, não como um instrumento de criação de conflitos, mas como um instrumento de criação de oportunidades para conversas, cooperação e coordenação”, afirmou Carol Cherfane, diretora do Arab Centre for Climate Change Policies. Assim como ocorreu na COP-27, especialistas e algumas delegações avaliaram que os compromissos assinados em Nova York são insuficientes frente à urgência do problema e da ameaça de uma crise hídrica agravada pelas mudanças climáticas. 

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