Covid: como as farmacêuticas planejam lucrar mais

EUA anunciam que não distribuirão mais doses de vacinas a sua população; Pfizer e Moderna aproveitam para triplicar preços. Virá nova fase da pandemia, ainda mais desigual? Ou haverá outras maneiras de contornar monopólio da big pharma?

Imagem: Jess Hurd/Global Justice Now
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Enquanto a comunidade internacional busca planejar 2023 como o ano em que a pandemia de covid foi superada, ao menos relativamente, a chamada Big Pharma parece fazer deste momento histórico uma oportunidade para ampliar seus lucros a níveis quase intangíveis. Se de um lado boa parte da população mais pobre do mundo não se vacinou (apenas 27% daqueles que vivem em países de renda baixa), de outro, Pfizer e Moderna não se envergonham em anunciar a intenção de quadruplicar o preço de seus imunizantes. Suas direções ameaçam vender cada dose por algo entre US$ 110 e 130. Até aqui, eram vendidas a pouco menos de US$ 30.  

Isso mesmo depois de terem recebido subsídios bilionários do governo dos EUA, como já publicara o Outra Saúde em 2022. Até o Congresso norte-americano considera o movimento um abuso e criou um Comitê de Saúde Pública, presidido pelo Senador Bernie Sanders, que tenta pôr um freio à iniciativa.

“Cada dose custa à Moderna apenas US$ 2,85. Estamos falando de um preço que seria cerca de US$ 127 acima do custo de produção para cada injeção que vai para o braço de alguém”, criticou John Nichols no artigo “A ganância sem limites”, no The Nation. “Mesmo pelas medidas padrão de excesso da empresa farmacêutica, isso é, como sugerem os senadores Elizabeth Warren e Peter Welch, um exemplo de ‘lucratividade indecorosa’. A Moderna precisa do dinheiro? Não. Nos últimos dois anos, a empresa obteve mais de US$ 18 bilhões em lucros com sua vacina. A empresa está inundada de dinheiro – tanto que seu CEO agora vale mais de US$ 6 bilhões, acima dos US$ 4,3 bilhões em 2021”. Nichols é autor do livro Coronavirus Criminals and Pandemic Profiteers: Accountability for Those Who Caused the Crisis.

Para além do debate ético em torno da indústria farmacêutica, que frequentemente subjuga interesses coletivos em favor de margens de lucro exorbitantes, é preciso ler o movimento das duas gigantes. Por considerar a pandemia sob controle, o governo Biden já anunciou que não comprará novos lotes de imunizantes, após oferecer uma quantidade até maior que a necessária para a sua população. Assim, as vacinas seriam vendidas pelas empresas diretamente ao público.

“O governo dos EUA vem assegurando a vacina contra covid-19 sem custo para a população, como tem sido uma constante no mundo. As negociações bilaterais dos países do ‘primeiro mundo’ asseguraram bilhões de dólares de faturamento às empresas farmacêuticas, que ostentam um monopólio gigantesco ao longo da pandemia. Recentemente, com o anúncio de que a partir de maio de 2023 o governo dos EUA cessaria a disponibilização da vacina de forma gratuita e pública, tanto a Pfizer como a Moderna, produtoras das vacinas de mRNA, anunciaram que devem quadruplicar seus preços, migrando para o setor privado e as empresas de seguro”, explicou Jorge Bermudez, médico e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, ao Outra Saúde.

Em suma, uma fonte fácil e segura de compras sai de cena e a solução é se aproveitar da necessidade das pessoas em protegerem suas vidas. Num país que gasta tanto e tão mal com saúde, não é de se duvidar que tal forma de “autorregulação” dos mercados desestimule a vacinação por parte de pessoas indispostas a pagar tanto e, em algum momento, o vírus volte a se propagar.

“Felizmente, existe uma alternativa se o governo Biden estiver preparado para desafiar a Moderna, e as empresas farmacêuticas em geral, em seus preços de monopólio. Peter Hotez e Elena Bottazzi, dois pesquisadores altamente respeitados da Baylor University e do Texas Children’s Hospital, desenvolveram uma vacina covid de código aberto e simples de produzir. Ele usa tecnologias bem estabelecidas que não são complicadas (ao contrário do mRNA). Sua vacina tem sido amplamente utilizada na Índia e na Indonésia, com mais de 100 milhões de pessoas recebendo a vacina até o momento”, pontuou Dean Baker, economista sênior do Centro de Economia e Política de Washington, no Counterpunch.

A crítica ao monopólio da Big Pharma não é isolada. A própria OMS já fez suas avaliações críticas a respeito da resposta global à pandemia e sugere uma série de mudanças para enfrentar futuras epidemias. Por sua vez, Carina Vance, ex-ministra da saúde do Equador e ex-diretora da Unasul, elencou uma série de iniciativas que os países poderiam tomar, tais como: compras conjuntas, o que garante preços melhores; aumento da regulação; investimentos na produção interna.

“Meu primeiro pensamento é de indignação e de repúdio pela negação do acesso a tecnologias como direito humano fundamental e das vacinas como bens públicos globais, como foi proposto na Chamada Global pela Solidariedade endossada pela OMS no início da pandemia”, critica Bermudez. Na guerra das vacinas, mas não apenas nela, temos que dar um basta nos monopólios e na precificação que a indústria nos impõe. Custo e preço não podem estar dissociados e vamos estimular a competição, fortalecer o Complexo Econômico e Industrial da Saúde, investir novamente em pesquisa e desenvolvimento, expandir nossa capacidade produtiva e implementar políticas que assegurem o acesso, privilegiando nossas populações negligenciadas e vulneráveis.”

Como se vê, não se trata de um debate, ao menos por enquanto, radicalizado, onde se defende a supressão das patentes e a garantia de vacinas para toda a humanidade sem os imensos sacrifícios de orçamentos públicos que vimos na pandemia de coronavírus. Como ironiza Dean Baker, trata-se de dar aos capitalistas aquilo que eles supostamente defendem: concorrência. “A raiva de Sanders é bastante justificada. Mas, em vez de apenas persuadir a empresa a reduzir seu preço, podemos tirar sua capacidade de cobrar US$ 130 por dose dando-lhes alguma concorrência. A competição é ótima para o capitalismo, mesmo que não seja boa para os indivíduos capitalistas”.

“Os governos e a sociedade como um todo se encontram empenhados em discutir e aprovar medidas que assegurem a saúde como direito e atenuar os riscos de futuras emergências. Nosso SUS é um patrimônio nacional e o Complexo Econômico e Industrial da Saúde devem ser fortalecidos, como vemos pela equipe que hoje comanda nosso país e as ações de saúde. A solidariedade e a melhoria das condições de saúde de nossa população, em especial das populações negligenciadas e vulneráveis, é uma premissa que certamente podemos e vamos superar”, finaliza Jorge Bermudez.

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