Covid: ciência e cobiça nas novas vacinas de mRNA

Eficazes contra múltiplas variantes do coronavírus, elas foram desenvolvidas rápido e abrem campo promissor para a ciência. Mas devido às patentes, serão para poucos – embora tenham sido criadas com dinheiro e pesquisa pública

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Estados Unidos e Europa aproximam-se de novo inverno e, além de gás russo para aquecer suas casas, a população precisará de novas vacinas contra a covid-19 e suas variantes. Não haverá dificuldades. Pfizer-Biontech e Moderna, as duas corporações farmacêuticas convidadas pelos governos europeus e norte americano a fornecer imunizantes, entregarão, nas próximas semanas dezenas de milhões de doses, que protegem tanto contra o vírus original quanto contra a ômicron e suas subvariantes. Faturarão bilhões de dólares e euros. 

Tirarão proveito, contou ontem matéria do Wall Street Journal, da tecnologia muito potente do RNA mensageiro (mRNA). A partir de bases de dados globais, que contém milhões de amostras de vírus, os cientistas “desenham” o código genético (DNA) da proteína que estimulará o sistema imunológico a produzir os anticorpos necessários a proteger a população vacinada. Deste DNA deriva-se o mRNA e se produzem a partir daí as vacinas. Poupa-se o exaustivo trabalho consumido, antes, para cultivar os vírus, enfraquecê-los ou neutralizá-los e prepará-los para injeção segura no corpo humano. No caso da Pfizer, relata a matéria, a fase final do processo de produção das novas vacinas consumiu apenas dez dias. A tecnologia faz milagres.

Ainda assim, o abismo vacinal que marca a covid desde o início da pandemia prosseguirá. Os novos imunizantes não serão destinados à população do Sul do planeta – um terço da qual não recebeu ainda nenhuma dose. Pfizer-Biontech e Moderna bloquearam, com apoio da Organização Mundial do Comércio (OMC) a produção das vacinas fora de seus laboratórios. Agora brigam entre si pela propriedade da patente. 

Mas há, nesta exigência de exclusividade, um aspecto pouco divulgado. Nenhuma das corporações desenvolveu a tecnologia que permite a produção tão rápida das vacinas. Em sua fase inicial, ela foi totalmente criada em laboratórios públicos. Mais tarde, para o desenvolvimento final, as empresas privadas receberam rios de dinheiro dos Estados. Um apelo dos Médicos sem Fronteiras sustenta: também por isso, as empresas deveriam ser obrigadas a partilhar do conhecimento desenvolvido. Se isso fosse feito, mais de 100 países teriam condições de produzir imunizantes.

A história do financiamento público está contada em textos como este artigo do National Center for Biotechnology Information (NCBI). Barney Graham, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID) – um órgão público dos EUA – foi o principal responsável pela descoberta do RNA mensageiro como potencial criador de uma proteína eficaz contra o antígeno que dá origem a este tipo de gripe. Ele e outros colegas receberam mais de 8 milhões de dólares de financiamento desta agência pública, distribuídos em 24 projetos, para investigar a proteína originária do betacoronavírus humano, associada a esta e outras doenças respiratórias.

Posteriormente, o próprio Departamento de Defesa dos EUA passou a oferecer financiamentos para pesquisas de alto risco em doenças respiratórias. Foram US$ 33 milhões que um de seus braços, o Defense Advanced Research Projects Agency, concedeu desde 2011 concedeu à CureVac (braço da Sanofi) e à In-Cell-Art para desenvolver pesquisas que utilizassem a tecnologia do mRNA como chave para a criação de vacinas. Em 2013, outros US$ 25 milhões foram concedidos à Moderna para desenvolver vacinas contra a chicungunha e o zika vírus a partir da mesma técnica.

Mas é após a eclosão da pandemia que o financiamento estatal explode. Foram 18 bilhões de dólares que a Operation Warp Speed, parceria público privada lançada pela Casa Branca, despejou em seis empresas candidatas a desenvolver uma vacina contra o coronavírus. Responsável por aportar US$ 6 bi à Moderna, o National Institute of Health inclusive é coproprietário de sua patente. Desenvolvida a vacina, a empresa já vendeu mais de 500 milhões de doses ao governo estadunidense e abocanhou ao menos outros US$ 4 bilhões.

“Foi o Estado quem desenvolveu a vacina”, afirmam enfaticamente Richard G. Frank, Leslie Dach, Nicole Lurie na publicação Health Affairs. Além do aporte econômico, os pesquisadores frisam que o Estado tirou todas as barreiras burocráticas, tais como riscos na pesquisa, obstáculos em comprovar sua eficácia, capacidade de armazenamento e garantia de compra mesmo que não houvesse demanda. Ainda lembram que a Biomedical Research and Development Authority (BARDA) investiu ao menos US$ 19 bilhões, conforme detalhamento do orçamento oficial do país, enquanto a jornalista Lisa Cornish projeta em até US$ 39 bilhões os aportes totais, em um trabalho que mapeia todo o investimento global de resposta à covid-19.

Agora, seus executivos aparecem em uma lista da Forbes dos mais ricos dos EUA. Tamanho lastro de dinheiro público, fez da vacina um grande negócio. 

Com 6,5 milhões de óbitos oficiais, mas suspeitas da OMS de um total real de até 17 milhões de mortes, vivemos mais uma história em que o capitalismo mostra sua incompatibilidade com a universalização de necessidades e direitos básicos e a afirmação de uma sociabilidade pautada pela ética.

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