A que preço virá o Dovato?

SUS distribuirá medicamento que permite aos portadores de HIV tratarem-se com apenas uma pílula por dia. Incertezas ainda pairam: Será comprado a preço justo? Poderá ser produzido no país? Chegará para todos os que precisam?

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Até o final do ano, o ministério da Saúde (MS) deve iniciar a distribuição de mais um medicamento contra o HIV/Aids pelo Sistema Único de Saúde (SUS). É o Dovato. Aprovado pela Anvisa em outubro de 2021, ele entrou há pouco na fase final de licitação para que os estoques cheguem aos estados e municípios.

O Dovato reúne em um só comprimido dois medicamentos, o dolutegravir e a lamivudina, o que pode significar para muitos o bem-estar de tomar apenas uma pílula por dia – cenário distante dos antigos “coqueteis anti-aids”, quando, no início da pandemia da doença, seus portadores chegavam a tomar mais de uma dezena de substâncias diferentes diariamente. A praticidade também aumenta a adesão ao tratamento, apontam as estatísticas.

Mas algumas perguntas persistem, explicou Susana van der Ploeg ao Outra Saúde. Integrante da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) e coordenadora do Grupo de Trabalho de Propriedade Intelectual (GTPI), ela  acompanha o processo atentamente.

“A simplificação e a facilitação para os usuários são muito boas”, aponta Susana, mas o ministério da Saúde poderá garantir que todos os que delas se beneficiariam possam acessá-las? Poderá garantir também que sua compra não seja excessivamente onerosa para o SUS e lucrativa para a indústria farmacêutica, possivelmente por meio da produção 100% nacional? A resposta depende de meandros da política (nem sempre clara) do MS para a questão das patentes.

A primeira confusão que deve ser esclarecida sobre o Dovato, aponta Susana, é que “em termos de tecnologia, ele não é uma novidade tão grande assim”. Os medicamentos que o compõem já estão em uso no Brasil há alguns anos. A lamivudina é produzida como genérico por laboratórios estatais como Farmanguinhos. Já o dolutegravir é distribuído no Brasil desde 2017, e está no centro de um embate já coberto por Outra Saúde. A farmacêutica ViiV – dona da patente – tenta impedir no Judiciário que o Ministério da Saúde compre o fármaco a preços mais baixos. Isso poderia ser feito por meio de uma Parceria de Desenvolvimento Produtivo (PDP) encabeçada pelo laboratório público pernambucano Lafepe. 

Sendo assim, são de certa forma enganosas as chamadas que surgem na mídia empresarial sugerindo que haveria um “novo” medicamento chegando ao Brasil, quando essas terapias já são velhas conhecidas das mais de 700 mil pessoas que fazem terapia antirretroviral no país. Isso tudo, é claro, não diminui a importância do que o Dovato tem a oferecer. E é precisamente por essa importância que as autoridades competentes não podem fugir do dever de garantir o amplo acesso à droga. “Quem vão ser os usuários elegíveis para tomar o medicamento?”, indaga Susana. Alguns dados sugerem que podem ser poucos.

Por meio de um questionamento ao ministério da Saúde feito pelo GTPI com base na Lei de Acesso à Informação, o Departamento de HIV/AIDS, Tuberculose,  Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DVIAHV/MS) informou que pretende comprar 10,8 milhões de comprimidos do Dovato em 2023. A título de comparação, 180 milhões de comprimidos do dolutegravir serão comprados neste mesmo período. Ao se considerarem esses números junto ao universo de pessoas em terapia – Susana põe os números em 460 mil pessoas usando o dolutegravir diariamente –, fica mais clara a escala modesta da compra do Dovato.

Portanto, “quando se diz que o medicamento poderá chegar em dezembro, ele chega em dezembro para quem e aonde?”, pergunta a coordenadora do GTPI. “Não adianta fazer propaganda se ele for inacessível para a maioria”, completa.

Um fator determinante para essa restrição pode ser o preço do comprimido. Aqui entra, incontornável, o antagonismo entre os interesses da indústria farmacêutica e os do SUS. “A gente vira refém importando medicamentos caros que estão sobrecarregando o SUS, quando o que a gente quer é a sustentabilidade da Saúde pública”, conta a advogada. 

Considerando que essa sustentabilidade não pode simplesmente vir do corte de serviços e o governo deve seguir atendendo à busca dos pacientes por terapias que lhes tratem com eficácia, grupos como o GTPI pressionam as autoridades para que abram o debate da produção 100% nacional dos medicamentos.

Um dos componentes do Dovato, o dolutegravir, é alvo de uma ação que corre em segredo de Justiça. A margem para que a farmacêutica estadunidense ViiV tente impedir um laboratório público brasileiro de produzir o medicamento surgiu após a decisão de 2020 do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) de conceder a patente do medicamento no Brasil à empresa. O GTPI considera a concessão “imerecida”. “Foi um erro ter concedido essa patente, e agora estamos colhendo os frutos caros desta medida”, avalia Susana.

Algumas decisões são indispensáveis para virar o jogo. A primeira é o licenciamento compulsório das drogas – a famosa “quebra das patentes”, algo que não seria inédito na luta contra a Aids no Brasil. O GTPI já enviou uma carta ao ministério da Saúde se oferecendo para fornecer os subsídios técnicos que justifiquem a flexibilização patentária. Por enquanto, a missiva segue sem resposta.

Outra medida essencial é a nacionalização do ingrediente farmacêutico ativo (IFA) dos remédios em questão. “Na produção de medicamentos, é o IFA que torna o medicamento mais caro. Não é o trabalhador, a aquisição de máquinas, a energia gasta ou o investimento para a construção de uma nova fábrica”, ressalta. No caso do Dovato, a Farmanguinhos já têm condições de produzir o comprimido de dolutegravir e lamivudina. Mas ainda não o faz com toda a autonomia necessária, não obstante o ministério considerar o medicamento “estratégico”.

Por fim, impõe-se também o investimento maciço na consolidação do complexo industrial da saúde no Brasil. “Investir nele é sair do sistema financeiro internacional da indústria farmacêutica. O que o Estado brasileiro tem que fazer é buscar a soberania, com produção local de todas as etapas. A gente não pode aceitar uma PDP em que continuamos reféns do insumo farmacêutico que vem lá dos Estados Unidos”, diz Susana. 

Isto é, não bastam as meias medidas – parcerias de desenvolvimento produtivo onde o lado brasileiro praticamente só embala e faz testes de qualidade, com pouca transferência tecnológica. O que pode mudar os rumos estratégicos da questão é a produção 100% nacional.  “A gente espera que, com o Carlos Gadelha, isso assuma um outro patamar”, conta Susana, fazendo referência ao secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do MS, que assumiu o cargo com a perspectiva de avançar nessa pauta.

Assim, o cenário sugere que, por enquanto, o Dovato chegará, o que deve ser comemorado. Porém, a despeito dos avanços que promove, não chegará para todos, com sua distribuição sendo limitada pelos preços e pela incipiente autonomia do Brasil na produção dos medicamentos de que sua população precisa.

O caso desse importante medicamento no tratamento do HIV/Aids, ainda que específico, ajuda a ilustrar um problema que não pode ser ignorado pelas autoridades em Saúde. As patentes indevidas e os interesses da Big Pharma são entraves a uma ampliação ainda mais ousada do direito à saúde da população. Para pôr em prática o salto de qualidade nas políticas públicas de saúde que se vislumbrou com a chegada de Nísia Trindade, a ministra e sua equipe deverão responder ao interesse do povo brasileiro em efetivar essas mudanças.

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