Covid: as lições de Araraquara

Durante fase mais dura da pandemia, cidade do interior de São Paulo adotou isolamento social rígido e conseguiu reduzir os casos em 74%. Por que o município se destaca, no estado recorde de mortes pela doença? O que isso tem a ver com sua recusa pelo negacionismo bolsonarista?

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“A desmemória em relação à covid é perigosa”, foram as palavras de Margareth Dalcolmo, pesquisadora da Fiocruz, ao constatar a eleição de parlamentares como o general Eduardo Pazuello, que dava festas na cidade de Manaus enquanto seus cidadãos morriam por falta de oxigênio. Com cerca de 2% da população mundial, o Brasil concentra algo em torno de 12% dos óbitos por coronavírus. No entanto, uma das justificativas que mais “pegou” no debate público foi a de que “a economia não podia parar”. Com uma população precarizada e empobrecida, os trabalhadores foram à luta e o país produziu seus 688 mil mortos.

Houve quem tenha conseguido se diferenciar. É o caso dos estados do Nordeste, como já tratado no Outra Saúde. A região tem o menor IDH e o segundo menor PIB per capita do país, e contabilizou 40% óbitos a menos, na pandemia, que São Paulo. Mas há exceções, mesmo nos estados sudestinos: a cidade de Araraquara é um exemplo de boa gestão da pandemia, com lockdown feito em diálogo com os moradores.

“Somente com a quarentena, houve redução de 10,6% no índice de transmissibilidade do vírus. Já com a quarentena combinada com a restrição do transporte público, houve queda de 17,83% e, se aliada ao distanciamento social, 38,58%”, informa o artigo “Lockdown contra a Covid-19 funciona ou não? Um estudo de caso com o município de Araraquara, escrito por pesquisadores da Unesp e USP. 

O texto foi publicado na edição 8 da revista Proceeding Series of the Brazilian Society of Computational and Applied Mathematics, da Sociedade Brasileira de Matemática Aplicada e Computacional, e faz uma comparação com a cidade de São Carlos, localizada a 50km de distância. A escolha se deveu à proximidade dos níveis socioeconômicos de ambos os municípios, como se vê no gráfico abaixo.

O lockdown em Araraquara foi adotado por seu prefeito Edinho Silva (PT), entre 21 de fevereiro e 2 de março de 2021, quando a cidade (como o Brasil) batia recordes de contaminações e se viu à beira do colapso sanitário, com uma estrutura física em saúde incapaz de absorver a demanda de atendimentos se tudo continuasse naquele ritmo. Em dez dias de fechamento total, a redução de casos foi de 74%. Outras medidas pouco vistas pelo Brasil também foram tomadas, a exemplo da barreira sanitária estabelecida pela prefeitura, que só permitia a entrada na cidade de quem apresentasse um teste negativo de covid.

Nestes mesmos dez dias, a vizinha São Carlos, conforme mostra o artigo, manteve suas altas curvas de incidência das infecções. “No período pós-lockdown, em que se observa uma rápida redução nos óbitos em Araraquara, o oposto não ocorre em São Carlos: na verdade, este passa a apresentar mais óbitos do que Araraquara nas semanas finais (antes do lockdown). Portanto, a análise qualitativa dos dados evidencia que, após o período de fechamento, a situação pandêmica em Araraquara melhora significativamente, tal como apontado pela redução dos cinco índices avaliados. Por outro lado, São Carlos apresenta a situação oposta”, conclui o estudo comparativo.

Uma diferença na maneira com que Araraquara lidou com o isolamento social pode ter sido importante. Como conta reportagem da Piauí de 2021, a prefeitura ouviu as recomendações de epidemiologistas, mas também ficou em contato com a população. Por meio das redes sociais, dois boletins diários eram publicados em vídeo. O transporte para profissionais da saúde foi garantido. Foi feito, ainda, o rastreamento e isolamento de casos casos, medida importantíssima mas ignorada pela maior parte do Brasil.

Segundo o médico epidemiologista Bernardino Alves Souto, da UFSCar, 258 vidas foram poupadas somente nestes dias de fechamento total da cidade, além de outras 3579 infecções terem sido evitadas, como mostrou matéria da CNN.

Há outro fator que une a cidade do interior de São Paulo e os estados nordestinos, além do fato de terem ouvido a ciência para lidar com a pandemia de covid: a notável rejeição a Bolsonaro e suas políticas de aceleração do vírus. No conhecido mapa de quais candidatos venceram em quais regiões, no primeiro turno, Araraquara e cidades próximas chamam a atenção como um dos bolsões petistas no estado majoritariamente bolsonarista. O município deu 46,2% dos votos para Lula e 42,9% para Bolsonaro. No mapa abaixo, Araraquara está na região vermelha e rosa, ao sul de Ribeirão Preto.

Como já exposto por Outras Palavras, o argumento econômico jamais se sustentou. Cidades que tomaram menos precauções não obtiveram vantagens visíveis e o adoecimento de uma escala excepcional de pessoas gera custos intangíveis à sociedade. Por fim, para além da obviedade de se colocar vidas humanas acima de resultados econômicos, as autoridades brasileiras falharam em observar a própria saúde como um ativo econômico fundamental. Investir em pessoal, melhorar o cuidado da população, produzir insumos básicos e controlar os surtos epidêmicos geram múltiplos retornos.

Quanto à economia de Araraquara, a cidade, próspera em relação à média nacional, vivenciou os mesmos altos e baixos do restante do país, em linhas gerais. Após a vacinação em massa da população, defendida inclusive pelo empresariado, veio a retomada, marcada em especial pela inauguração de uma fábrica da cervejaria espanhola Estrella Galícia.

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