Como garantir Cuidados Paliativos para todos

Médica da Frente Paliativista comemora aprovação de uma Política Nacional para investir na área. Ela lembra: esse tipo de atenção deve estar disponível a qualquer paciente com doença que ponha a vida em risco. E o SUS precisa integrá-la também na Atenção Primária

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Nas últimas semanas de 2023, o Ministério da Saúde aprovou enfim a Política Nacional de Cuidados Paliativos, reivindicação importante de movimentos sociais e pauta que se destacou na 17ª Conferência Nacional de Saúde. Com previsão de R$ 850 milhões em investimentos na formação e qualificação profissional, a iniciativa reconhece esta nova especialidade em saúde, em compasso com a Política Nacional de Cuidados do Brasil, ainda em fase de elaboração. Trata-se de uma importante atualização da concepção de direito à saúde e um avanço na estruturação da economia do Cuidado, área onde o país ainda engatinha. A política ainda deve ser regulamentada por meio de portaria.

Os cuidados paliativos já existem nos serviços públicos de saúde, mas como explica Julieta Fripp, médica e liderança da Frente Paliativista, ainda estão limitados a poucos estabelecimentos, quase sempre hospitais. Além disso, como explica ao Outra Saúde, reproduzem tradicionais desigualdades brasileiras.

“Identificamos 312 serviços implementados, a maioria concentrada na região Sudeste e em hospitais. Há muita diferença e vazios assistenciais e regionais no nosso país. É preciso capilarizar a política para todas as regiões e todos os cenários assistenciais. Por isso nós defendemos que o cuidado paliativo deve ser ofertado desde o momento diagnóstico, e não no hospital somente”, explicou.

Esta afirmação mexe com outra noção predominante a respeito de cuidados paliativos, excessivamente associados a pessoas em condições de saúde muito debilitadas, próximas à morte.

“O conceito dado pela Organização Mundial da Saúde diz que cuidados paliativos são uma estratégia de melhoria da qualidade de vida de pessoas portadoras de doenças que ameaçam a vida. Deve ser ofertado o mais precocemente possível, atenta a quatro aspectos: físico, emocional, social e espiritual. Deve cuidar das pessoas e também dos seus familiares, inclusive na fase de luto. É um conceito bastante ampliado, que tem como objetivo final o alívio da dor total”, contextualiza Fripp.

Aqui, a “paliativista” conecta a nova política, lançada pelo governo, a outra dimensão social. Ao reconhecer a especialidade e ampliar a quantidade de profissionais habilitados a ofertarem tal tipo de assistência em saúde, entramos numa esfera mais ampla da política pública, que visa reconhecer os esforços de pessoas que dedicam muito tempo a tais cuidados, inclusive de maneira informal, mas permanecem invisíveis, tanto para o Estado como para a sociedade.

“Famílias de baixa renda não têm condições de contratar cuidadores. Essa profissão deveria ser muito valorizada. Porque nós precisamos cada vez mais dar amparo aos idosos que precisam de cuidados paliativos. Eu penso que a Política Nacional de Cuidados Paliativos tem muita relação com o Programa Nacional de Cuidado que está sendo discutido pelo governo federal de forma intersetorial e interministerial. Queremos contribuir nessa discussão porque está faltando atenção às pessoas que cuidam, tanto os cuidadores formais quanto os informais”, avisa ela.

Ou seja, como se pode depreender da entrevista de Julieta Fripp, a Política Nacional de Cuidados Paliativos promove não só o direito à saúde daqueles que vão ser tratados, como também visa a integração social e econômica daqueles que empregam esforços no cuidado de quem precisa (quase sempre mulheres). Em resumo, inclui-se na noção de direito à vida também o direito a uma morte digna. Ao mesmo tempo, amplia-se o mercado de trabalho do setor, fato que merece atenção num país que dará importante salto demográfico na direção de uma população mais velha nas próximas duas décadas.

Confira a entrevista completa com Julieta Fripp.

Como avalia a aprovação da Política Nacional de Cuidados Paliativos pelo Ministério da Saúde e como deve impactar no SUS, que terá orçamento anual de R$ 851 milhões para sua execução?

Sentimos bastante satisfação e esperamos para breve a publicação da portaria da Política Nacional de Cuidados Paliativos. Nós estamos muito engajados através do movimento Frente Paliativista, que engloba milhares de pessoas no Brasil inteiro, incluindo usuários, trabalhadores e também gestores do SUS, de serviços de diferentes modalidades. Estamos há muito tempo na linha de frente para qualificar o cuidado de pessoas portadoras de doenças que ameaçam a vida e precisam receber cuidados paliativos desde o momento do diagnóstico.

Estamos com uma sensação de dever cumprido. Estivemos participando de toda a construção dessa política a partir da 17ª Conferência Nacional da Saúde, participamos ativamente nas pré-conferências, municipais, estaduais. Construímos a primeira Conferência Livre Nacional de Cuidados Paliativos, com a participação de mais de 2.800 pessoas, em diferentes polos que constituímos no Brasil. Estivemos com a maior delegação na 17ª Conferência em Brasília, em julho de 2023, para defender a política pública de cuidados paliativos. Lá, nossa proposta foi aprovada unanimemente como diretriz em todos os eixos de sua implementação, integrada às Redes de Atenção à Saúde e como componente de cuidado na atenção primária, através da Estratégia de Saúde da Família.

Portanto, estamos muito felizes que as coisas avançaram logo após a última agenda que tivemos, quando houve a pactuação tripartite em dezembro de 2023, com a presença do ministério da Saúde, Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), Conasems (Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde). A mensagem é de que chegou a hora de cuidar de pessoas que apresentam doenças que ameaçam a vida.

Considerando que já havia a prestação de tais cuidados na rede pública, estamos falando de uma sistematização técnica e reconhecimento de tal ocupação como um ramo profissional?

Em 2023 fizemos a pesquisa Selfie e criamos o Observatório de Cuidados Paliativos (ver aqui), ferramenta que ajudou a fazer o mapeamento dos serviços existentes no SUS. A pesquisa contava com respostas espontâneas, qualquer pessoa poderia responder se conhecia algum serviço de cuidados paliativos. No Observatório, somente os coordenadores de serviços de cuidados paliativos davam informações.

Assim, socializamos a ferramenta de coleta de dados, através do Observatório, e identificamos 312 serviços implementados, a maioria concentrada na região Sudeste e em hospitais. Há muita diferença e vazios assistenciais e regionais no nosso país. Realmente, é preciso capilarizar a política para todas as regiões do país e todos os cenários assistenciais. Por isso nós defendemos que o cuidado paliativo deve ser ofertado desde o momento diagnóstico, e não no hospital somente. Devemos ofertar o cuidado paliativo na atenção primária, secundária e terciária, e que as pessoas possam ter acesso na medida em que necessitam.

Para se ter uma ideia, existe um mapeamento internacional que se chama Observatório Internacional de Cuidados de Final de Vida, que classifica os serviços de cuidados paliativos em 4 grupos, subdivididos em dois níveis cada (A e B). Neste sistema, o grupo 1 se refere a locais onde não há nada de cuidados paliativos e o 4 se refere a locais onde tal política é mais capilarizada. Estados Unidos, Canadá e outros países da Europa estão dentro da classificação 4, ou seja, tem política pública e oferta de cuidados paliativos generalizadas (no caso dos EUA, não é dentro do âmbito de política pública).

O Brasil se encontra na classificação 3A. Ou seja, tem oferta pontual e não existe política pública. Está na classificação 3A, com um indicador de 0,49 equipes por 100 mil habitantes. Essa é a nossa situação hoje. Nós queremos chegar à classificação 4B, a maior de todas. E para chegar a tal nível devemos ter pelo menos de 1 a 1,49 equipe por 100 mil habitantes, podendo chegar a duas por 100 mil. Idealmente, precisamos de pelo menos duas mil equipes implementadas no país. E hoje temos em torno de 300, de acordo com o nosso Observatório da Frente Paliativistas.

Pelo que já conversamos com o Ministério da Saúde, que investirá cerca de R$ 800 milhões, acredito que possamos implementar 1.500 equipes especializadas.

Como a nova lei impacta no mercado de trabalho da saúde? Abre-se um nicho para novos profissionais ou, essencialmente, médicos e enfermagem serão treinados para esta especialidade? 

Com certeza a Política Nacional de Cuidados Paliativos abre caminhos para a valorização profissional de pessoas que já fazem cuidados paliativos há muito tempo no SUS. Médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas são profissionais que fazem muita diferença no cuidado em saúde. Isso sem considerar outras áreas, pois também devo destacar especialidades como odontologia, terapia ocupacional, farmácia, áreas da saúde que fazem todo um cuidado multidisciplinar, porque cuidado paliativo tem a ver com o alívio da dor total.

Não se faz cuidado paliativo somente com uma profissão, deve-se ter um cuidado multi e interdisciplinar, pensar no cuidado de pessoas que apresentam doenças que ameaçam a vida, incluindo pacientes, os usuários e também os seus familiares.

Acreditamos que com esta nova política, que envolve habilitações e recursos, na medida em que um hospital, um ambulatório ou qualquer outro cenário assistencial resolva contratar pessoas e receba recursos do Ministério da Saúde, tais profissionais vão aparecer no SUS. Porque hoje nem o registro, a chamada Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), aparece no sistema do SUS.

Na medida em que se habilitam as equipes, tanto as equipes matriciais quanto as equipes assistenciais diretas, o profissional que está atuando em uma equipe de cuidados paliativos poderá ser contratado, remunerado e reconhecido como profissional da área, o que irá qualificar o serviço no SUS.

O que são, conceitualmente, cuidados paliativos? Eles só são ofertados a pessoas com reduzida expectativa de vida ou vão além disso?

O conceito de cuidados paliativos dado pela Organização Mundial da Saúde diz que cuidados paliativos são uma estratégia de melhoria da qualidade de vida de pessoas portadoras de doenças que ameaçam a vida. Deve ser ofertado o mais precocemente possível, atenta a quatro aspectos: físico, emocional, social e espiritual. Deve cuidar das pessoas e também dos seus familiares, inclusive na fase de luto.

É um conceito bastante ampliado, que tem como objetivo final o alívio da dor total. O conceito da dor total foi criado por uma médica, enfermeira e assistente social chamada Cicely Saunders, na Inglaterra da década de 1960, que trouxe esse conceito da dor total. A ideia é de que devemos aliviar o sofrimento humano, trazer um olhar para as singularidades das pessoas e buscar reduzir ao máximo aquilo que causa desconforto nessas quatro dimensões.

Portanto, é nesse sentido que queremos trabalhar para verdadeiramente cuidar das pessoas ao longo da trajetória de uma pessoa que apresenta uma doença ameaçadora à vida.

Como a nova lei dialoga com um futuro em que a população brasileira será mais idosa?

Nós estamos vivenciando há muito tempo as transições demográficas e epidemiológicas. As pessoas estão vivendo mais e, portanto, estão desenvolvendo mais doenças crônicas. Temos estatísticas do Ministério da Saúde de cerca de 1,3 milhão de óbitos no país, sendo 25% por doenças oncológicas e 75% por doenças crônicas (ambas podem estar sobrepostas). E aqui cabe destacar as demências. Obviamente, uma população que envelhece fica mais exposta ao desenvolvimento de doenças crônicas, como, por exemplo, as demências.

Portanto, a Política Nacional de Cuidados Paliativos terá de se organizar para cuidar de tais pessoas, desde o momento do diagnóstico, porque muitas vezes as pessoas entendem como cuidado paliativo algo que deve ser ofertado só quando a pessoa está nos últimos dias, semanas ou meses de vida. Sim, precisamos cuidar dela até o último suspiro. Porém, não é só isso. É necessário cuidar das pessoas desde o momento do diagnóstico de uma doença ameaçadora à vida. Enquanto ela se trata nas especialidades, com neurologista, pneumologista, oncologista, em muitos casos com o objetivo de cura, os cuidados paliativos já precisam ser ofertados. Precisam aparecer nos ambientes onde o brasileiro se relaciona mais com o SUS, a exemplo das Unidades Básicas de Saúde e os ambulatórios.

Precisamos conhecer e cuidar dessa pessoa desde o começo. À medida que a doença progride, a carga de sintomas pode se modificar e deve-se atuar, inclusive, para prevenir complicações que podem estar relacionadas à doença e ao próprio tratamento. Será importante atentar para o fato de que nos próximos anos pessoas com mais de 60 anos serão a faixa etária mais populosa do país.

Devemos, mais amplamente, aprofundar debates e políticas que se refiram a uma “economia do cuidado”? 

Sabemos o quanto o cuidado de pessoas que apresentam fragilidades e doenças ameaçadoras à vida é fundamental. As pessoas preferem ser cuidadas, na medida que apresentam carga de sintomas que necessitam de mais complexidades, no próprio domicílio. Atualmente, observamos que as famílias ficam muito sobrecarregadas, de maneira que devemos dar uma atenção especial ao cuidador.

A atenção ao cuidador é um capítulo à parte. Porque sabemos o quanto aqueles cuidadores que se identificam como cuidadores principais, muitas vezes informais, se dedicam, deixam de trabalhar. São principalmente mulheres que se dedicam ao cuidado de pais, mães, filhos, irmãos, irmãs, um cuidado que muitas vezes é 24 horas por dia. E não existe nenhum tipo de remuneração e muito menos apoio, como por exemplo o sistema público de saúde, que pode remunerar cuidadores formais.

Famílias de baixa renda não têm condições de contratar cuidadores. Essa profissão deveria ser muito valorizada. Porque nós precisamos cada vez mais dar amparo aos idosos que precisam de cuidados paliativos. Eu penso que a Política Nacional de Cuidados Paliativos tem muita relação com o Programa Nacional de Cuidado que está sendo discutido pelo governo federal de forma intersetorial e interministerial. Queremos contribuir nessa discussão porque está faltando atenção às pessoas que cuidam, tanto os cuidadores formais quanto os informais.

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