Para construir o SUS que São Paulo precisa

O modelo de OSS avança, acelerando a precarização do trabalho e degradando o atendimento à população. Em ano eleitoral, movimentos sociais se reúnem para pensar propostas e ações, e disputar os rumos da saúde pública na cidade

Créditos: Cejam
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Tatiana de V. Anéas em entrevista a Gabriela Leite

Na última quinta-feira, 7/3, em São Paulo, aconteceu um encontro que pode ser a fagulha de uma nova mobilização em defesa do SUS naquele município. Representantes de diversos movimentos, trabalhadores, servidores e sanitaristas se reuniram na Associação Paulista de Saúde Pública (APSP) para discutir a situação da saúde pública na cidade mais abastada do país. 

O retrato não é bom. São Paulo está na vanguarda da privatização do SUS pelo modelo de Organizações Sociais da Saúde (OSS), que se espalha por outros estados. Isso tem resultado, nos últimos anos, em precarização do trabalho, enfraquecimento da participação social e, consequentemente, pior atendimento à população na Atenção Primária – porta de entrada do SUS.

Neste ano eleitoral, a cidade viverá uma das disputas mais tensas do país. O atual prefeito Ricardo Nunes (MDB), ligado ao bolsonarismo, busca a reeleição contra o deputado Guilherme Boulos (PSOL), candidato progressista que chegou ao segundo turno nas eleições de 2020 e está ligeiramente em vantagem nas pesquisas para 2024. 

Tatiana de V. Anéas, coordenadora da APSP, avalia que a gestão de Nunes deu novos passos atrás, rumo à precarização dos trabalhadores da saúde pública. Segundo ela, a situação está chegando próxima ao limite: “hoje em dia, não existe mais tempo e possibilidade de fazer a construção de um processo de trabalho de um jeito mais democrático”.

Em entrevista ao Outra Saúde, que você lê abaixo, ela fez um breve histórico do SUS na cidade de São Paulo e explica: “A gente nunca conseguiu sustentar o fortalecimento de uma atenção primária no município. Ela vem sendo historicamente fragilizada. Há sempre quebras políticas muito grandes”. Os contratos com OSS começaram na gestão da prefeita Marta Suplicy (PT) e foram sendo ampliados ao longo das duas últimas décadas. 

“Esses contratos foram construídos com base na produtividade, na quantidade de procedimentos e de consultas que os profissionais fazem”, explica Tatiana, ao fazer a crítica ao modelo gerencialista adotado pela prefeitura paulistana. Mas os números de produtividade não têm se refletido em melhora de fato. Ela exemplifica: “Já se percebe o aumento, por exemplo, de mortalidade materna e infantil no município – mas se você for ver os números, a maioria das gestantes tem mais de sete consultas”.

A gestão do prefeito Nunes tem contribuído com a precarização do trabalho, segundo Tatiana, ao despriorizar a estratégia da saúde da família, ampliar o número de pessoas atendidas por equipe e tratar os trabalhadores de forma autoritária, não permitindo que se atue fora de seus próprios parâmetros. 

O modelo privatista, que rejeita os concursos públicos e adota a contratação de profissionais via CLT, também acarreta em outro problema: a fragilização da participação social no SUS. Na reunião, essa foi uma das pautas mais abordadas. Os trabalhadores que participam dos Conselhos Gestores temem se expressar para criticar seus empregadores. Também evitam se organizar, por medo de punições. Muitos daqueles que o fazem sofrem perseguição política.

Mas, após a primeira reunião realizada na APSP, uma porta pode estar sendo aberta para reunir movimentos em prol do fortalecimento do SUS em São Paulo. Tatiana vê essa movimentação com bons olhos: “Foi um sopro de esperança para quem estava lá. Eu avaliei que as pessoas saíram muito empolgadas e muito a fim de continuar essa mobilização, dar mais tamanho, mais visibilidade para que ela possa ir se ampliando”. 
Os próximos passos, segundo ela, são convocar mais representantes de movimentos para integrar as reuniões, que acontecerão mensalmente. Mas também promover debates com pesquisadores e pensadores do SUS, para estruturar e fortalecer as propostas que serão apresentadas aos candidatos à prefeitura. E, em momento oportuno, promover debates com os postulantes. Ela aproveita para fazer o convite para o próximo encontro, dia 4/4, a partir das 19h30 na sede da APSP.

Quais os planos da APSP para este ano eleitoral?

Eu acabei de assumir, em março, como coordenadora da APSP, nessa nova gestão. Por conta da pandemia, a Associação deu uma desmobilizada muito grande, ficou muito parada. É uma associação muito importante, uma das mais antigas, que nasceu nos anos 1970, na luta da Reforma Sanitária. E tem abrangência no estado de São Paulo todo. Historicamente, é bem importante para a mobilização, além de ter uma articulação muito intensa com a Faculdade de Saúde Pública da USP.

É uma entidade que faz muitas formações para trabalhadores, tem um fórum de formação, promove uma formação política. Mas ela estava meio parada, e a gente resolveu retomar para mobilizar. É daí que vem essa discussão com a Faculdade de Saúde Pública, com os professores de lá, sobre a importância de fazer um debate sobre a atual conjuntura do SUS, considerando as eleições deste ano. Geralmente, a associação promove debates com os candidatos, após a apresentação do programa, e faz discussões com os candidatos à prefeitura.

Como a Associação avalia o estado do SUS em São Paulo, hoje?

A gente tem avaliado que São Paulo está com muitos problemas. Tem uma coisa que é essencial na discussão: olhar pro modelo de gestão por Organizações Sociais da Saúde (OSS). O estado de São Paulo está a vanguarda desse processo, que está se espalhando para todo o país. O município começa a fazer esse movimento nos anos 2000, na prefeitura da Marta Suplicy, e isso vai se ampliando. A própria gestão de Fernando Haddad foi a que mais ampliou os contratos de gestão. Começou com uma reorganização, dividindo a cidade em contratos e territórios, e entregou esses territórios para a gestão das OSS. Antes disso, os contratos não eram de gestão, as OSS contratavam os profissionais, mas a gestão era pública. Até já existiam indicadores e parametrizações, mas isso não trazia, por exemplo, nenhum corte de recurso financeiro – que é o que hoje também vai levando à pressão do trabalhador e vai ampliando o modelo gerencialista.

Esses contratos foram construídos com base na produtividade, na quantidade de procedimentos e de consultas que os profissionais fazem. Quem define isso é a gestão municipal, esse setor de contratos que faz esses indicadores, e as OSS seguem. O que vai gerando esse modelo de contratualização, mas não implica mudanças em indicadores de saúde. Já se percebe o aumento, por exemplo, de mortalidade materna e infantil no município – mas se você for ver os números, a maioria das gestantes tem mais de sete consultas. Ou seja, o modelo gerencialista não tem garantido a saúde, só tem garantido mais pressão, adoecimento.

Isso é uma coisa fundamental de ser discutida, porque hoje em dia não existe mais tempo e possibilidade de fazer a construção de um processo de trabalho de um jeito mais democrático. A própria gestão municipal é extremamente vertical e autoritária, e ela vai sobrepondo tarefas e atividades para os trabalhadores fazerem ao mesmo tempo. O programa Avança Saúde, por exemplo, é um modelo de trabalho com prioridades temáticas por mês. Por exemplo: no mês de avanço da saúde da mulher, são feitas atividades nesse sentido, as UBSs ficam abertas aos sábados… E ainda há a pressão que vem da ONA [Organização Nacional de Acreditação], que é uma acreditação super articulada com o modelo privado. Seus parâmetros foram colocados para certificar as unidades básicas, por conta do recurso que São Paulo recebeu do BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] para reformá-las. Em contrapartida, a prefeitura tinha que oferecer uma certificação de qualidade dentro desse modelo, que é completamente inadequado para avaliar a Atenção Primária. É um modelo privatista também.

O problema está no modelo de gestão por OSS, mas São Paulo também tem uma gestão municipal muito despreparada para cuidar das estruturas. E isso recai sobre os trabalhadores, que estão esgarçados desde a pandemia, que tiveram de se afastar, que ficaram sobrecarregados, que trabalhavam aos fins de semana. E aí você emenda essas propostas da gestão com o modelo gerencialista, junto de uma epidemia de dengue. Essa situação do trabalhador hoje vai gerando alta rotatividade, o adoecimento é enorme. Ninguém mais quer ser gerente no município de São Paulo, porque é de um sofrimento muito grande. Esse é um elemento importante que as pessoas trouxeram na reunião.

É por isso que o debate em São Paulo tem que ser político, em defesa de um SUS municipal, e trazer uma mobilização maior. Todos os problemas estão relacionados a isso. A atenção primária no município de São Paulo é muito fragilizada, historicamente, porque não consegue sair do modelo queixa-conduta. A gente nunca conseguiu sustentar o fortalecimento de uma atenção primária no município. Há sempre quebras políticas muito grandes. Primeiro veio o PAS [Plano de atendimento à saúde, da gestão de Paulo Maluf, nos anos 1990]. Depois, foi implementada a AMA [Assistência Médica Ambulatorial, programa da gestão de José Serra, criada em 2005], que é uma coisa que só tem em São Paulo. A AMA ocupou espaços das unidades básicas de saúde. No momento da implantação da AMA, havia uma separação: ela atenderia a demanda espontânea e a UBS ficaria só com o agendamento. Contra toda a lógica. Sempre foi discutido que quando a UBS abre o acolhimento para demanda espontânea, ela faz a vinculação com o paciente, é super importante. Foi mais uma quebra.

Você pode falar um pouco das características da gestão do prefeito atual?

Atualmente, há uma nova quebra na gestão: a secretaria implantou esse modelo que se chama Acesso Avançado, sem diretriz clara para as unidades. Ele acaba, praticamente, com os agendamentos. As pessoas chegam na unidade para ser atendidas na hora, o que tem gerado muita reclamação, muita fila, muito escândalo na imprensa. E estabelece, de um jeito autoritário, o que todos têm que fazer, sem dar chance para as equipes das unidades refletirem, avaliarem e pensarem qual é o modelo de agendamento que eles vão escolher, considerando o perfil do seu território e da equipe. Nesse modelo, 70% da agenda, no mínimo, tem que estar aberta. E os 30% de agendamentos ficam restritos para gestantes, crianças.

Isso tudo gera um novo modelo de pronto-atendimento. Ou seja, mais uma ruptura com a atenção básica. Tivemos também uma despriorização do modelo estratégico da saúde da família. A gestão de Ricardo Nunes deu uma precarizada muito grande. Intensificou as metas, endureceu a questão de produção na saúde. Eles acabaram com as equipes NASF [Núcleos de Apoio à Saúde da Família] no meio da pandemia, no momento em que estava todo mundo mais adoecido, com mais sofrimento psíquico, com sequelas da covid. Substituíram por um modelo de equipe que chamavam de MAB, Equipe Multipersonal de Atenção Básica, que deixou de fazer o apoio matricial, ficou só nos atendimentos.

A gestão também fez cortes de contratos, com redução de profissionais, de equipes. Teve ampliação de população por equipe de saúde da família, hoje o município chega a ter equipes que atendem mais de 4 mil pessoas. Antes, a gente trabalhava com 3 mil. Foi feita uma reterritorialização, no meio da pandemia, inclusive. Ou seja: aquela pessoa que era atendida por seu agente comunitário e sua equipe, no meio da pandemia teve as referências trocadas. No meio de uma emergência sanitária, onde o vínculo e a referência são algo extremamente importante, foi feita essa quebra.

Hoje, a prefeitura diz que ampliou a cobertura de atenção básica, mas a verdade é que isso aconteceu aos custos do aumento de pessoas atendidas por equipe, de um jeito precarizado. Também teve cortes nos contratos, com redução de profissionais. Tem sido um momento bem difícil para a atenção básica, e a retomada da pandemia também está complicada. Hoje, São Paulo perdeu muito da estratégia comunitária e coletiva que já teve.

Na saúde mental, também enfrentamos várias dificuldades. Os Caps [Centros de Atendimento Psicossocial] entraram em modelos superprodutivistas, com uma dificuldade enorme de consegui qualificar a rede para trabalhar em uma lógica antimanicomial. Houve, inclusive, fechamento de leitos de pronto-socorro de emergência psiquiátrica na época da pandemia. Nós temos visto uma dificuldade muito grande de retomar essa discussão de uma saúde mental comunitária e antimanicomial.

As filas de especialidades estão enormes. Também por causa do pós-pandemia, mas esse já era um problema crônico. E a gente não observa um trabalho consistente para resolver isso: tentar trabalhar especialidades mais articuladas com atenção básica em rede. Poder fazer uma avaliação mais consistente. E também pensar em intervenções nesse sentido.

Tem uma série de lacunas e fragilidades que foram se ampliando há muito tempo, mas que também têm a ver com o modelo de gestão da saúde de São Paulo. Na reunião, as pessoas foram mapeando alguns desses problemas. Acho que a gente isso mostra a importância de fazer um movimento em defesa do SUS de São Paulo. Existem muitos movimentos populares. Inclusive o movimento de trabalhadores das OSS, uma coisa nova, que eu acredito que é decorrente da situação em que eles estão.

Como está a organização dos trabalhadores da saúde, na cidade?

Essa é outra questão que foi levantada na reunião: o enfraquecimento da participação popular dos Conselhos Gestores [órgão colegiado composto por gestores, trabalhadores e usuários do SUS]. Eles tiveram um enfraquecimento também na gestão Nunes. Porque na pandemia, as reuniões foram suspensas durante um tempo. Depois, foram retomadas online. Mas isso traz muita dificuldade de acesso, principalmente para usuários de comunidades mais vulneráveis, que não têm condição de acessar a internet. Historicamente, também eram feitas formações importantes de educação permanente para os conselheiros, que foram suspensas e ainda não retomaram.

Há ainda uma ausência dos conselheiros trabalhadores nas reuniões, nas unidades. Eles não conseguem participar também por não terem as agendas liberadas, por medo de discutir e trazer os problemas e o tipo de retaliação que isso pode acarretar. Têm medo de aparecer também como um fórum de trabalhadores, junto à gestão, e receberem algum tipo de punição. Com isso, a participação popular, o controle social estão bem enfraquecidos.

Mesmo assim, você estava dizendo que há formação de movimentos de trabalhadores, certo?

Existe. Eu acho que é o que a gente precisa fazer é juntar todos eles, para formar um grande movimento, conseguir fazer uma mobilização maior e pensar em como pressionar os candidatos, neste ano de eleição. É preciso rever e a olhar para a atual situação do SUS no município de São Paulo, e manter essa pressão viva, essa mobilização, que é coletiva e de todos os eixos: trabalhadores, usuários, acadêmicos.

Como vocês veem as candidaturas que já estão sendo apresentadas nesse começo de ano?

A gente se aproxima mais de propostas que defendem um SUS público. E, geralmente, os campos mais progressistas geralmente tratam dessa proposta. Então, nós, como associação, defendemos isso. O candidato que se comprometer com propostas mais claras nesse sentido vai ter o nosso apoio. Da mesma maneira que a Frente pela Vida apoiou a eleição de Lula em 2022.

Qual pode ser o papel da APSP, nesse contexto?

Ainda não há nenhum programa de governo. Mas o que nós acompanhamos, com base nas eleições anteriores, é que a campanha de Bruno Covas e de seu então vice Ricardo Nunes trouxe muitas ameaças aos trabalhadores das OSS. Na campanha, eles fizeram uma mobilização para promover o medo nos trabalhadores e na população. Ameaçam os trabalhadores de perderem o emprego e a população de perder o serviço. Isso foi algo muito significativa, que deve acontecer também nas próximas eleições.

Enquanto associação, nós pensamos em promover esses encontros mensais, políticos, e também tentar promover discussões através de lives, sobre esses temas relacionados ao município de São Paulo. Para a gente poder discutir do jeito mais claro nossas propostas. Por exemplo: como é que a gente pode acabar com as OSS? Quem estudou a mudança de modelo e pode dialogar com a gente? Como que isso pode ser feito? Quais são as outras estratégias, dispositivos que a gente tem?

Assim seremos capazes de dialogar de um jeito mais apropriado, o movimento com esses candidatos. Muito provavelmente um campo político vai dizer que é impossível, que não dá mais para acabar com as OSS. Então temos que trazer argumentos e elementos para o debate. Também discutir a atenção primária, discutir o fortalecimento do controle social. A gente entende que qualificar mais a discussão, junto com a mobilização política, é importante nesse momento.

Também pretendemos chamar os candidatos para apresentarem claramente suas propostas, para que possamos entender quais delas estão dentro desse espectro do SUS público e democrático.

E como você avalia a reunião de quinta passada e quais os próximos passos de mobilização?

Eu achei a reunião fantástica. Foi um sopro de esperança para quem estava lá. Porque, às vezes, as pessoas ficam mais sozinhas nos seus movimentos, nos seus grupos. Poder fazer essa ampliação, poder fazer um movimento único. Eu avaliei que as pessoas saíram muito empolgadas e muito a fim de continuar essa mobilização, dar mais tamanho, mais visibilidade para que ela possa ir se ampliando. E virar de fato um movimento que consiga ter representatividade e peso no diálogo e nas negociações.

Nós vamos manter esse calendário mensal, junto com as outras ações, que a gente pode ir complementando, ajudando na formação também. A próxima reunião acontece na sede da APSP, no dia 4 de abril, a partir das 19h30.

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